sábado, 22 de dezembro de 2018

Crónica 113 [O Que Passa]

«Repara. Ainda ontem parecia que eu tinha acabado de ver o fogo-de-artifício na dobra para o ano novo. E agora o ano novo já ‘tá a morrer. E daqui a dias outro fogo vai rebentar e iluminar – como se fosse, ao mesmo tempo, as exéquias de 2018 e a aclamação de 2019. Ano morto, ano posto. [Não leves a mal – o trocadilho.] E assim há-de ser nos próximos anos, cada vez mais rápidos, menos conscientes, com mais trabalhos, com menos memórias. Parece que ainda ontem tudo começava de novo – e, afinal, vamos a ver, tudo já acabava, tudo já acabou. É assim – até morrermos.
[...]
«Pois, mas repara – qual é o problema? Isto não há volta a dar. Há dias ‘tava deitado, de madrugada, a ver as manchas de humidade no tecto do quarto e as teias de aranha a ondularem, marionetas, fazendo sombras, zombadoras, com os restos da claridade. Mas é difícil – repara –, talvez impossível, as coisas obscurecerem por completo. Os teus olhos encontram sempre uma réstia de claridade. Se quiseres ver. Se não quiseres, também não haverá grande mal. É assim – a vida.
[...]
«Sim, mas... Pronto, tens razão – há mal quando não se quer ver. Se não se procurar para além do sebo da ponta do nariz, sim, tens razão, a coisa não alumia, não se aclara, não te dá a ver o dia após o outro dia – p’ra começar de novo. Talvez, bem, uma solução é fazer balanços, ir avaliando. Mas um balanço muda como muda a tua matemática do tempo. Daqui a dias vais fazer contas: não de meses, nem de estações, nem sequer de anos únicos – mas de lustros, de décadas, de toda uma vida, se tiveres esse azar. Os espaços entre os números com que vais contar a tua vida hão-de ser maiores – e, mesmo que pareça contraditório, esses espaços, ainda quando maiores, hão-de ser galgados com mais rapidez, com o tempo mais sôfrego.
[...]
«Não te importes. Eu falei em azar, sim – qual é o problema, outra vez? Azar ou sorte. Não tens nada ao teu controle, submisso, debaixo do teu poder. Pões na terra, escreves, deitas água, levantas paredes. O que é que te interessa se árvores, palavras e casas vivem depois de ti? Fizeste o teu trabalho – ‘tá feito. Bem, mas eu falava em teias. Vais ver, ou não vais – isto pode ir, como digo, para um lado ou para o outro; azar ou sorte; enfim –, vais ver, nas teias no tecto, o que fizeste e o que viste fazer. E vais ver que foste injustiçado e que foste injusto. E que não quiseste ver o que era p’ra se ver. Que não quiseste saber. Que não agiste quando e perante o que te parecia certo.
[...]
«Exacto. E muito mais. Que devias ter regado com mais frequência aquele cântaro onde puseste um alecrineiro e um pé de segurelha. A segurelha ‘tá praticamente morta – como este ano. Mas o alecrim aguenta-se. Eu não sou supersticioso, mas o alecrim... É preciso cuidar dele. Não queiras ser responsável por faltar água e sol e terra a um alecrineiro*.
[...]
«Sim – é um exemplo estranho. Mas o alecrim é resistente; e também é sagrado – como nós, resistentes e sagrados. Mas há mais coisas, tantas... E vais ver como foste traído, insultado, maltratado, apoucado, o diabo... Podes usar as piores palavras – o pior que pode acontecer, ao fazeres isso, é exagerares um pouco. Vais ver, no fim de contas, que te faltaram à palavra. E que também tu faltaste à palavra.
[...]
«Sim, também tu, também eu. Não é preciso dar a palavra para faltar à palavra. Os nossos maiores compromissos não carecem de voz ou de palavras rabiscadas no papel. Convém saber. Convém ter consciência. Convém não deixar o tempo correr.
[...]
«Deixar o tempo correr é deixar a memória perder o apuro, ficar menos vigilante. Por isso, há que reparar – e lembrar. Há que recordar o que se puder – o mal e o menos mal. E depois – há que tomar conta, cuidar.
[...]
«Sim, cuidar do que passa. O que passa é tudo o que nos resta. Bem, se não nos virmos antes, continuação de uma Boa Festa. Vemo-nos no próximo ano. Até logo.»

[* Esta crónica estava, guardada, no alforge destes últimos anos. Quando mudei de casa o alecrim secou – e morreu. Não me volta a acontecer.]

[Crónica publicada no JM, 22-XII-2018.]

sábado, 8 de dezembro de 2018

Crónica 112 [Um Diálogo (2)]

portanto – já ‘tás a abrir o bico – por causa deste verão de s. martinho retardatário – também eu vi – quando caía a tarde – há dias – quando a tarde tombava sobre a minha – e a tua – cabeça – vi os pés e os calcanhares das nuvens a abrasar – e eu disse – amanhã vai abrir um parêntesis – no tempo incerto dos nossos invernos – clementes – mas de frio molhado e escarninho que morde os ossos – abre parêntesis – fecha parêntesis – amanhã o calor começa – amanhã o calor acaba – retorna o frio – regressa a chuva que vem não vem – metem-se as alergias pelas narinas adentro – pela garganta abaixo – voltamos ao mesmo – às nuvens frias como se fossem abóbadas ajoujadas de chumbo – há que trabalhar – e descansar – que é como quem diz – deitar-se na cama – e esperar o sono vir – se vier – antes disso – és bom filho – faz-te bom filho – é preciso visitar a mãe – telefonar ao pai – és bom cidadão – e pagador – faz por isso – já ‘tás a mexer no smartphone – há que abrir o email sem medos – receber uma conta – tirar a referência – o valor – coçar o casco da cabeça com as unhas negligenciadas – tortas – disse-te alguém – de certeza – por causa do arco imperfeito das unhas – e as linhas quebradas da engomadura do colarinho da camisa – e a cor das calças que não diz com o padrão da camisa – portanto – não tens descanso – trabalhaste o dia – queres encher o focinho com um litro de vinho tinto fora a quarta parte – mas tens a conta p’ra pagar – e hoje não é sexta-feira – nem sequer é sábado – é dia como outro dia – interrompido – e a conta tem de ser paga até amanhã – precisas de ir ao multibanco – vai-te embora – já falamos
           
já voltei – tenho outras contas atrasadas – tenho de ir à loja do cidadão – a vida ‘tá cara como lume – mas isso tu sabes – quer dizer – saber sabes – não te faz é grande diferença – ‘tás-te a borrifar p’ra isto tudo – não vale a pena torceres o pescoço – enfim – não leves a mal – além disso – tenho o carro na oficina – ‘tá a fazer a mosca – quando engata encrenca – parece que vai avariar – assim mais ou menos como tu – pronto – como eu também – daquela abelha já não espero grandes jornadas – entre o mel e a porcaria ‘tá visto quem ganha – o que é que se há de fazer disto tudo – trago sempre grandes ideias p’ra falar contigo – quando combinamos um café – mas depois a conversa não engata – encrenca – dá-se a constipação na alma da amizade – mas tu entendes – nós dois sós – juntos – com palavras – somos a síntese da amizade – o ensaio sem ponto final da filosofia quotidiana do milénio terceiro – palavras cruzadas para quê – mais daqui a pouco vou p’ra casa – abro o youtube – tento ver um vídeo do jordan peterson – aprender a carregar o nosso fardo – aceitar o sofrimento e a dor – aceitar que é o melhor que nos acontece – aceitar – mas custa – custa – dá trabalho – aos poucos vai-se lá – digo eu – nestes 30 e tal anos – nesta juventude retardatária – como este inverno de s. martinho – tu o disseste – há dias eu vi um menino a chorar agarrado à cintura da mãe – neste mesmo café – passava já das vintenas das horas – e a mãe dizia – e o pai dizia – ao menino – que ele ‘tava tontinho – mas ele só queria ir p’ra casa – há algum mal nisso – mete tu agora aforismos sapientes nisto – há gente que não quer fardos – obrigações – cardos – esforços – cuidados – vagas contra o conforto – como o choro de quem depende de nós – mas é preciso parar – recolher – pôr comer ao lume – deitar-lhe sal e pimenta – cuidar – depois pôr a dormir – ver se as portas estão bem fechadas – fechar de novo as bocas do gás – o gás – por falar nisso tenho de comprar uma garrafa p’ra pôr de reserva – esquecer essa tontice da felicidade – essa putaria perigosa – terminante – absoluta – carnívora – pânica – sem pergunta – sem resposta – sem contestação ou réplica – aspirar apenas a um recto e magro contentamento – pode ser sentar-se e puxar de um cigarro – tomar longamente de um fôlego – aceitar um defeito próprio – ou uma falta – ou uma agressão – e adormecer – depois do cuidado carregado – nutrido – sossegado
           
força / toma conta de ti
juízo na cabeça / não bebas muito
deita-te cedo / agarra-te à jorna
um abraço forte / outro p’ra ti

[Crónica publicada no JM, 08-XII-2018.]

sábado, 24 de novembro de 2018

Crónica 111 [Comunhões]

O homem suspendia o fôlego – para não dar tréguas ao desvio da atenção, medindo forças com a concentração esquiva. Cessava a respiração durante segundos imperiosos, cerrava os olhos sobre o barro nu – desprovido, ainda, de formas reconhecíveis, mas já plenamente burilado na sua cabeça. E punha as mãos a moldar. Os serões passava-os deste jeito – a uma mesa de trabalho na loja de ferramentas ferrugentas e cheiro velho a vinho seco. A mulher – entre outras distracções indesejáveis – vinha deitar sentido: jantar; companhia para ver a novela; a cadeira vazia ao lado do filho que precisava de ajuda nos cálculos; dois ou três recados com língua rápida entre o abrir e o fechar da porta. [“Ah, ‘tás aí outra vez...”; “É sempre esta conversa, agora – sai do trabalho e vem a correr p’ra casa fazer bonecos”; “Gostas mais disso do que...”] [No dia da comemoração das bodas de estanho, o homem ofereceu à mulher uma miniatura de ambos com trajes de casamento. A mulher agradeceu com estas palavras: “Tem diferença… do meu vestido. E a gravata que tu levaste… tinha outra cor.”] Tirando raras ocasiões, este casal via-se de manhã e encontrava-se à noite – ele, de pés gelados, na madrugada, acordando a mulher no segundo ou terceiro sono.
           
Este outro homem, na mesma rua, no prédio um ou dois números abaixo, ouvia de noite para vociferar de dia. Queixava-se de ouvir bater martelos, de sentir arrastar mobílias, de perceber gente a rir e a falar, de escutar uma criança a chorar. [Os vizinhos há muito que não lhe davam troco.] Como seria de esperar, dormia pouco – e dormia mal. Deitava-se na cama e, para receita de descanso, só conhecia esta – apurar os ouvidos como sentinelas na noite bélica. Uma vizinha, mãe solteira, viu-se obrigada a rechaçá-lo, num sábado de manhã. “Onde é que já se viu, uma pessoa mandar vir, protestar por causa de um bebé durante a noite? O senhor pensa no seu que ‘tá certo? O senhor não tem juízo? ‘Tá louco?” [Por detrás da mãe, num andarilho, o bebé sorria, curioso, e levantava os bracinhos.] O homem retirou-se, vexado, rangendo dentes durante toda a manhã; deitou-se, cansado, apagou a luz da mesa-de-cabeceira e, sem dar conta, expulsou da guarita as sentinelas. Nas noites seguintes, não se importou com o choro – ou com os outros barulhos verdadeiros ou imaginários. Pode parecer insólito – mas começou ele a sentir uma estranha comunhão com a criança que ouvia. [É insólito – e humano; do sofrimento – e de uma criança – pode emergir um dever de comunhão.] Dias depois, voltou a descer até ao piso de baixo, pediu perdão com mesuras de cavalheiro e ofereceu uma prenda para o bebé.
           
O terceiro homem vivia no piso alto do prédio. Era um misantropo noctívago atacado de afasia. [De noite, de longe a longe, arrastava o sofá da sala – nunca satisfeito da esquadria na geometria da sala; e relembrava velhas músicas da adolescência numa viola com a terceira corda – a de Sol – sempre desafinada.] Fora o trabalho onde se arrastava como um sonâmbulo indefinido, dedicava-se a noites frenéticas – a nutrir inimizades na tela do computador, nos fluxos das redes sociais. Eram rixas ideológicas, polémicas mórbidas, argumentos capciosos, rancores levianos, insultos verborrágicos – vícios podres; com verbo gongórico no teclado, ainda que grunho na fala, de toda a gente – amigos, conhecidos e desconhecidos – fazia inimigos: todos estúpidos, claro está, todos ignorantes. [Eram inimizades imaginárias – de sentido unilateral. Ele achava que tinha inimigos; os “inimigos”, volvidos os primeiros tempos, não mais se lembravam dele.] Depois de uma noite de refrega e de injúrias, este homem foi obrigado a usar as escadas do prédio. [O elevador não funcionava.] Dois ou três andares descidos, deu de caras com um vizinho, em quem nunca tinha reparado – talvez lhe tivesse rosnado em resposta a um cumprimento, algum dia. O vizinho, reconhecendo-o como o ofensor no Facebook [ou noutra coisa qualquer] na madrugada passada, não teve freio; deu-lhe uma cabeçada no nariz; e foi-se embora. Pode parecer estranho – mas à medida que as tonturas se iam dissipando, o homem, no chão, sozinho, começou a sorrir.

[Crónica publicada no JM, 24-XI-2018.]

sábado, 10 de novembro de 2018

Crónica 110 [Os Fugitivos]

A mendiga parou à porta da boutique de pão – a mão encarvoada pousada no cabelo da sua menina, penteando os caracóis pretos. Pararam, olharam, viram prateleiras de pães alvos e pardos, vitrines de bolos luzidios de açúcar, chávenas de café com leite de onde serpenteavam fios de calor. Mãe e filha escrutaram as pessoas – que satisfaziam a fome, o desejo, o vício do convívio fátuo. Um casal mirou de volta, a medo temperado de incómodo, de repulsa; tentaram suportar a visão da parelha famélica, do lado de lá do vidro, durante minutos. Levantaram-se. [Cafés e sandes ficaram incompletos sobre a mesa.] Não aguentaram a penúria. Não ajudaram. Debandaram. [Há vidas duras – pensaram, já longe; e referiam-se a si próprios – que não puderam comer em paz, sem espectros esquálidos de olhos sobre eles.]
O homem fazia o que queria – era uma máquina perdulária de combustão rápida alimentada por caprichos. Em resumo, a sua vida: vários carros de chapa torcida; uma perna levada à faca e feita mais curta; estudos, vários, interrompidos; quatro ou cinco empregos sucessivos para matar o tempo; relações talhadas à medida das horas correntes; recusa em meter ombros a compromissos, em levantar fardos; actos e opções como zurrapa passageira em pipa rota – nunca cheia, sempre sedenta. Todos viam isto: o pai baixava os olhos e deitava o medo do confronto, em estilhaços, na tijoleira da sala; a mãe escapulia-se para o quarto do lado; o irmão não perguntava e metia-se no computador; os amigos riam-se, nervosos. Todos temiam dizer – mostrar – arrostar – puxar a máquina para os carris. [Ele guardava-lhes rancor quando berrava em silêncio nas manhãs de ressaca; não perdoava a omissão dos fugitivos que viam a sua dissolução; queria mãos – podiam ser garras, ou arpões – que o resgatassem. Eles, nas suas tocas, não davam fé. No fim de contas, cada qual estava só consigo, cada um permanecia metido em si mesmo.]
A menina sentou-se à mesa, para o almoço de família do domingo. Olhou, cheirou e fez cara de trovão. Disse que não – aquela comida, não. Começaram os familiares a desenrolar mimos, palavras melosas em bocas de bico doce, promessas de recompensas, exortações temerosas, trejeitos ansiosos. A menina exigiu ovo, salsichas, batata frita, sumo de maçã; desfez, em cacos, no chão, um copo; a pulmões estridentes encheu a sala e os ouvidos; ameaçou a mãe, de punhos afiados; pontapeou o pai, que se levantou; esgadanhou a irmã mais velha, que a tomou nos braços; insultou o avô, feio e tonto, mordendo gemidos inaudíveis. Toda a gente se evadiu – a mãe e a avó para os tachos da cozinha; o pai para o supermercado; a irmã para o telemóvel; o avô também.
Ele tinha feito planos para um negócio. Convocou família, amigos, conhecidos. Ouviu incitamentos como estribilhos e frases feitas de entusiasmo. Planeou; deitou mãos à obra; terçou com as armas que tinha – trabalho, o seu pouco de discernimento, o seu quinhão de desesperança, meia medida de ilusão. Quando a coisa começou a dar no porco, ouviu, atónito, de algumas das pessoas que tinha convocado: “Pois, eu não te disse na altura, não queria ser pedra no teu sapato, mas aquela opção que tomaste eu sabia que não era a melhor...”; “Eu era p’ra te dizer, mas depois esqueci-me, quando disseste que ias fazer assim e assado, se calhar havia outra forma...”; “Não te importes, eu vi que se calhar era demasiada areia para a tua camionete, não me leves a mal dizer isto assim, sou teu amigo, mas o que interessava era tentares e eu não queria que me levasses a mal se não te apoiasse...”
[Cá estou, de novo, a carregar nas tintas frias do mundo.]
Portanto: omissos – derrotados pelo conforto – pelo sossego frívolo – pela felicidade sôfrega – abstracta – covardes – fugitivos – presos em jaulas individuais – desalojados do tempo oportuno – nós – todos – deslassados – peças de um jogo – desirmanado – de regras intransitivas.

[Crónica publicada no JM, 10-XI-2018.]

sábado, 13 de outubro de 2018

Crónica 109 [Maternidades e Infâncias]

Mulher e homem acordaram com a enxerga de palha molhada. O homem abriu o lençol e o cobertor, revolveu nas pontas dos dedos uma camada da humidade que sentiu na cama e mastigou de aborrecimento. Sem olhar para a mulher, levantou-se, vestiu-se e saiu da porta para a rua.
A mulher deixou-se ficar mais uns minutos na cama. Disse alto à filha mais velha, de um quarto para o outro quarto: “Maria, traz-me o café.” A criança trouxe uma aguadilha preta bem adubada de açúcar. A mãe verteu um pouco do café bom da xícara para o pires, arrefecendo-o, soprou, aspirou um gole e ordenou: “Maria, vai chamar a Umbelininha.”
A criança missionária levantou as costas e o queixo, em dois passos estava no terreiro, subiu a vereda e deu uma carreira da vila até o outro sítio da freguesia. Daí a duas ou três horas, estavam a mãe e a parteira dentro do quarto de dormir, com as portas trancadas.
Antes, avisou-se as crianças daquela casa: “Não façam barulho, estejam quietos, que vai chegar um menino.” Um dos irmãos mais novos, para pacificar a espera – e a inquietude –, foi vigiar, de pescoço esticado até ficar entontecido, a passagem do avião que iria deixar cair o menino das alturas celestes. [Era assim que vinham os bebés – explicava-se.]
No quarto, Umbelina deu princípio ao seu ofício de mãos e de rezas inaudíveis. A mãe saiu da cama, agachou-se, mordeu o lençol torcido e fechou os olhos. Fora do quarto, nem o mais pequeno farrapo de um gemido se pôde perceber. Quando as crianças ouviram, por fim, um choro primevo, uma avioneta passava nos ares.
A filha mais velha, dois ou três dias corridos, foi inquirida pelas senhoras dos senhores ricos da vila: “Então, rapariga, já tens mais uma maninha?” “Tenho, tenho. As senhoras não viram? Foi aquele avião que passou aqui há dias que trouxe.” E as senhoras escancaram as bocas, como hienas taralhoucas, como cascavéis súbitas saídas de uma rocha, rindo do saber inocente das crianças.
            
Era um bebé gorducho e glutão – era um bebé voraz. [Bebé e voraz – duas palavras na aparência desagregadas, feias quando na mesma vizinhança; mas correspondem à verdade.] A mãe levantava-o do berço, punha-o no colo, embalava-o – e logo aquela boca abria-se para a mama que estivesse mais à boca de mamar. Enquanto a mãe não se descobrisse, o bebé ia cabeceando, arremetia como um aríete, abria e fechava a boca como a metade de um losango que se expandia e contraía, na senda do maná maternal. Depois, com as pequenas narinas esborrachadas contra a pele da mãe, sugava e mastigava com avidez.
A família ficava orgulhosa – estas coisas eram sinais de sã maternidade e de sã infância, de fecundidade, de comunhão, de bênção de Deus. Ficavam pai e irmãos pasmados, satisfeitos ou admirados, a ver aquele prodígio de apetite.
Numa madrugada, a mãe exaurida acabou de dar a mamada, desceu a camisola sobre o peito e o tronco, levantou-se e deitou o bebé, de costas, no berço. Depois, sentou-se de novo no sofá e logo entrou no sono.
Quando despertou – não sabia que tempo havia passado –, ouvia um manso gorgolejar. [Mansidão e gorgolejo – duas palavras aparentemente contrárias, quando juntas – e feias quando se referem a um bebé; mas foi assim que foi.] A mãe olhou – viu a sua camisola molhada de sangue, sobre o peito, e viu o bebé vomitar sangue.
Houve gritos, pressas, choro e angústia – houve um carro desembestado no caminho para o hospital.
Livrado o bebé de qualquer perigo, o médico desvendou o que a mãe secretamente já sabia – o mamilo esquerdo, de tanto ser sugado, tinha gretado e sangrado; o bebé havia se alimentado do leite – e do sangue da mãe.

[Crónica publicada no JM, 13-X-2018.]

sábado, 29 de setembro de 2018

Crónica 108 [Crónica Caótica (2)]

Duas borboletas monarcas voam sobre um chão urbano devoluto – regateado lentamente por ervas daninhas, silvas, teias de aranhas. As borboletas sobem, em círculos concêntricos cada vez mais apertados, como se guiadas pelo mesmo furacão, como se tivessem por destino o centro de acalmia. Sobem – e unem-se em pleno ar. [Quem vê este acontecimento, respira alguns segundos de suspensão.] Caem depois as monarcas, juntas – quatro asas indistintas como uma só folha caduca, numa paleta desbotada –, e desaparecem por entre as ervas.
           
Dois conhecidos dão uma mãozada, no meio da cidade ruidosa. Falaram: “Então, rapaz, foste à tosquia? Essa cabeça… isso foi de gilete e tudo.” “Pois é – foi por solidariedade.” “Solidariedade?” “Sim – solidariedade para com a minha mãe.”
           
Três crianças – três irmãos – enfiam-se por uma levada adentro. [Daí a horas hão-de chegar a casa, esfomeados e cansados. A mãe mandará, depois de uma resonda de estremecer paredes e sacudir pilares, que eles descansem os pés em três banheiras com água e sal.] No meio da jornada, surge uma matilha de cães – um dos cães ladra – as crianças param – outro cão rosna – o irmão mais velho tenta dizer, para os cães, mas sobretudo para os irmãos mais novos, palavras de sossego, de paz, de plena harmonia entre homens e bichos – três cães avançam – dois mordem o ar, um com um fio de baba no canto da boca negra – os irmãos tentam recuar – o irmão do meio, de pés petrificados, diz que será melhor não se mexerem – um cão roça a perna dele – o irmão mais novo chama o nome do mais velho – e olha para ele em súplica – o mais velho dá-lhe a mão, range os dentes, fala em calma, em firmeza, em não arredar pé, em nunca fugir – a matilha avança – todos os cães ladram – o mais velho diz, baixinho – “Olhem ali. Não se importem com os cachorros. Olhem ali, pró mar.” [Um barco navegava, solitário, à frente das Desertas.] Quando os irmãos voltam os olhos para o chão – a medo, à espera de uma sorte abençoada –, a matilha ia-se sumindo entre os troncos das acácias e dos eucaliptos.
           
[Qual a relação entre duas borboletas, um filho solidário com uma mãe doente de cancro e três irmãos ameaçados por uma matilha de cães? Não sei – e, francamente, não interessa. Nesta toada, termino esta crónica da mesma forma que terminei outra pretérita crónica caótica – com meia onça de ego.] Naquela tarde, um homem, amigo do meu falecido pai, quando viu pela primeira vez a minha cara nas páginas deste JM, avisou-me para ter cuidado – que isto de escrever coisas nos jornais podia dar problemas, que nunca se poderia saber das consequências, que era perigoso por causa da política. [Eu agradeci com sinceridade a preocupação e disse que não haveria problemas – que não me interessava trilhar por agora esses caminhos; o velho amigo do meu pai não se convenceu.] Outro homem, naqueloutra tarde, disse-me que lia e apreciava as minhas crónicas – e, rindo, avisou-me para ter cuidado porque, de contrário, acabaria eu por entrar – a sério – na política. [Tentei esboçar uma réplica qualquer, mas só pude ficar calado.] Talvez a Madeira, hoje, seja isto – seja sobretudo isto: tudo é política, nada existe para além da política. [Sim, eu sei – tudo é política; uma coisa, porém, é saber que assim é; outra coisa é querer que assim seja.] Talvez eu exagere – talvez não exagere; talvez um dia comece a escrever – a sério – sobre política; talvez me digam, na altura, que só escrevo histórias – e fábulas; talvez me digam que deveria voltar a escrever histórias.]

[Crónica publicada no JM, 29-IX-2018.]

sábado, 1 de setembro de 2018

Crónica 107 [António]

Chamavam-lhe “Antnunhe” – diminutivo, já se vê, vocábulo matizado consoante o vagar, a distância e a intensidade da acrimónia.
Foi encarregado de armazém; alcançando este lugar no baixo funcionalismo público, subiu destarte uma escada social de um degrau apenas. Mais não lhe era possível – mais não lhe era permitido. Mais não podia perder.
Mas Antnunhe perdeu. Subiu a escada – tropeçou – e foi cuspido para trás. Era trafulha – e desgraçou-se pelo álcool. [Uma desgraça antiga – consanguínea – hereditária – genética – solidária.] De bom grado meteu a cabeça num cepo ensopado à espera de uma lâmina.
Franqueava o armazém a quem não era de direito; ia por descaminhos levados a contrabandos dados; aceitava subornos de borras líquidas e águas brancas que lhe abrasavam a garganta.
Antnunhe foi admoestado, repreendido oficialmente, suspenso. Finalmente, foi despedido – ou, como disseram os colegas, cúmplices ou rivais, “cuspido”. [Era uma questão de tempo – e de paciência. Ainda assim, o despedimento foi desfecho que surpreendeu – a família, os vizinhos. Ele é que não ficou muito surpreso. Encolheu os ombros – e fechou os braços.]
Foi p’ra casa – com morte aprazada.
No sítio da freguesia rural onde vivia – e vivia numa caldeira de vozes ferventes e blocos nus, com latrina de madeira ao lado, sobre uma fossa metida na terra –, só um vizinho, ido da cidade nos fins-de-semana e feriados a construir lentamente a sua casa, lhe dava um ou dois dias de trabalho.
Só este vizinho o tratava como um homem. Mas Antnunhe era cada vez mais um destroço mal-afeiçoado cabeceando pelos dias.
Quando trabalhava com o vizinho amigo, de tempos a tempos rebentavam-lhe bolsas de pus, debaixo da roupa amarelada, nas feridas em carne viva; deitava um forte a mijo e a suor etilizado; o estômago não aguentava duas colheres de um caldo de carne; sem vinho antes, entrementes e depois, não conseguia trabalhar; e, com vinho, vomitava.
Num sábado, o vizinho amigo, depois de meio dia de trabalho perdido com Antnunhe ingrato e estragado a rabiçar atrás de uma árvore, disse-lhe agastado: “Antnunhe, vê lá a tua vida. Assim não pode ser. Bebes o que tens a beber – mas vai com calma, com medida. Ninguém olha p’rá tua cara. Tu tens mulher – e ela não te tem respeito. Tu tens um filho – e disseram-me, eu sei, chamas-lhe coisas sujas, imundícies. É uma criança – pensa nele. Um dia, ele falta-te ao respeito também. Antnunhe, assim nem eu… – nem eu consigo te deitar a mão.” Disse. E, ao fim da jorna, acrescentou, como sempre: “Antnunhe, saudinha da boa é o que te desejo.”
A mulher de Antnunhe, que era e parecia mais velha – uma vez perguntaram ao casal se um era filho e outra era mãe –, tinha-lhe ódio. A vizinhança dizia – e era verdade – que ela havia se amancebado com um colega de trabalho. O colega começou a dar-lhe boleia, a aparecer, a trazer compras, a ser intruso em casa.
Barregão e barregã passaram a aconchegar adentro as costelas escanzeladas de Antnunhe. O vizinho amigo dizia que as malhas que lhe davam, rearranjando-lhe a configuração interna das entranhas, eram de molde a deixar poucos vestígios. Era uma maneira calculada – discreta, esperta – de matar.
Mas houve excepções: uma nasceu da foice da mulher, que lhe cortou a carne da cara – da sobrancelha esquerda até à pálpebra inferior do olho direito. [Foice irada mas misericordiosa, esta – fintou duas vistas, a ponta do focinho, o resto das ventas e o gasganete.]
Deste jeito foram vivendo – deste jeito foi morrendo.
Numa tarde, o vizinho amigo disse-lhe: “Antnunhe, vou de férias p’rá semana, p’ró continente, não venho cá p’ra dentro.”
Quando voltou, viu a sua loja, onde guardava as ferramentas para a construção da casa, vazia. A única pessoa que sabia da sua ausência era Antnunhe.
A traição foi denunciada quando se reencontraram – Antnunhe passou como um cão de lombo derreado e olhos fugitivos.
Meses passaram; Antnunhe morreu; foi só mais um nome na necrologia do jornal.

[Crónica publicada no JM, 01-IX-2018.]

sábado, 18 de agosto de 2018

Crónica 106 [O Ressentimento]

Naquela madrugada, uma insónia levantou-me da cama. Saí à porta do quarto, não acendi a luz, bati com a mão na parede – já aconteceu com o nariz, mas assim é menos doloroso –, abri bem os olhos e fui para a marquise.
Nunca há cumprimentos; simplesmente: eu chego – ele chega. Escancarei os vidros das janelas e puxei de uma cadeira, com tento para não fazer barulho.
Ele – Não pagas nada?
Eu – Não tenho bebida em casa. Se tivesse, então é que não me livrava de ti.
Ele – Calma, meu velho. Não sejas de manias. Se tivesses bebida, eu se calhar não tinha aparecido. Enchias o copo, metias à boca, ficavas naquele torpor...
Eu – Torpor não é solução – é um veneno sem gosto a apurar na boca, um vírus oculto a se espalhar debaixo da pele.
Ele – Essa ‘tá boa! Olha, aproveita, e mete isso numa crónica!
Eu – …
Ele – E então?
Eu – Diz. ‘Tou a ouvir.
Ele – Um cigarrinho, ao menos?
Eu – Já vou acender um.
Ele – Andas fugido? Vais dizer que não tens saudades das nossas conversas...
Eu – A gente fala praticamente todos os dias.
Ele – A gente fala menos – e com mais pressa. Não te faças de manhoso!
Eu – …
Ele – Mais daqui a dias esqueces o meu nome.
Eu – Veneno? Vírus?
Ele – Deixa-te de coisas. Eu tenho dito, mas tu parece que és surdo – tens de te lembrar sempre, de te lembrar dos males que fizeste, dos males que te fizeram. Precisas de mim p’ra isso. Ficas mais forte, mais rijo, assim…
Eu – Eu sei, assim eu aprendo.
Ele – Sim… Quer dizer, pode ser – aprender, bem, isso é outra coisa.
Eu – Ok. Agradeço o teu esforço, a tua perseverança, a tua pertinácia de coisa untuosa, peganhenta, grudenta.
Ele – Tu és fo…
Eu – Fala baixo.
Ele – A verdade é que, sem mim, nem sequer sabes quem és.
Eu – É possível.
Ele – Tu, como toda a gente, tens a tua identidade. Precisas dela mais do que pão p’rá boca. E a tua identidade começa em mim. É um bom começo – tu sabes. Depois, eu tenho um coração grande – cabe lá dentro tudo. Multiplico-me. Juntas um grão de ódio…
Eu – E tenho rancor.
Ele – Exacto. É bom. Metes uma penada de remorso…
Eu – E aparece ansiedade e depressão.
Ele – É bom p’ra escrever e tal, não é? Deitas um pozinho de descrença e de falta de moral…
Eu – E sai niilismo.
Ele – Pões uma coisinha de frouxidão…
Eu – E dá covardia e inveja.
Ele – Molhas em presunção…
Eu – Deixa-me adivinhar – arrogância.
Ele – Sempre foste um bom aprendiz – um bom seguidor.
Eu – Portanto, existes tu – e rancor – e ansiedade – e depressão – e niilismo – e covardia – e inveja – e arrogância – e também narcisismo – vingança – iniquidade – desespero – destruição.
Ele – Não exageres. Repara: uma pessoa nunca deve esquecer de que é uma vítima…
Eu – Tens uma família numerosa. E tudo boa gente.
Ele – Deixa-te de ironias. Repara…
Eu – Eu agradeço-te – mas estou cansado, e preciso de ir dormir. Façamos desta maneira: eu deixo esta nesga de vidro aberta…
Ele – P’ra quê?
Eu – Contigo, meu velho, meu Ressentimento, é só conversa. E a conversa, e a lamúria, nunca acabam. Ouve de uma vez. Eu vou fechar a marquise pelo lado de dentro. Ficas aqui. Se quiseres te esfumar daqui p’ra fora, vai. Se não, não te preocupes. Ficas aqui, nesta casa, o tempo que quiseres. [Na marquise, o frio da noite não te incomoda; a mim não incomoda – a ti também não.] Eu sou hospitaleiro – dou-te guarida, vivo bem contigo. Bem, vou andar. Esta crónica é um falhanço. Ainda assim, obrigado.
Ele – Eu sabia. Usaste-me.
Eu – E não deverias ficar admirado. Alguma utilidade haverias de ter. P’ra alguma coisa haverias de prestar.

[Crónica publicada no JM, 18-VIII-2018.]

sábado, 4 de agosto de 2018

Crónica 105 [Três Histórias (2)]

O velho estendeu para a lombada a asa direita [a esquerda ficava-lhe bamba pela cintura]. Estava dentro do vale, na margem alagadiça da ribeira, e foi mostrando como cicerone.
«Lá em cima, acolá, ao lado da casa verde..., a outra – daquela casa já fugiram três mulheres. Três ou mais, já nem sei bem. Primeiro, foi uma filha; queria casar, mas não deixaram casar com quem era de seu gosto; um dia a mãe chegou a casa e encontrou as gavetas refundiadas, a lareira da cozinha a escorrer só um fiozinho de fumo, e da filha nem sinal; nunca mais voltou. A seguir, foi a outra filha – mas essa cá casou como queria; ela e o marido ficaram ali; tempos depois fugiu, não sei bem porquê – diziam que ela tinha se metido com um sujeito da cidade; ela voltou – quer dizer, o marido foi buscar, arrastou ela pelos cabelos pela ladeira acima; durante uns dias só se ouvia gritos e pancume; não me lembro quanto tempo ela aguentou; fugiu outra vez. Depois – bem, depois –, foi a mais velha da casa, a mãe; ficou viúva, arranjou um senhor da outra freguesia, os filhos não aprovaram; vai daí, deve ter pensado, remédio bom p’ra novo também é remédio bom p’ra velho, e fugiu também. Isto, bem, já tem uns anos. Os homens daquela casa, filhos e o resto, começaram a ficar emantados, pareciam aluados, de olheiras, andavam sujos, numa nojentice, começaram a dar na bebida todos os dias. O amigo ‘tá a ver – uma casa sem mulheres... Agora – agora acho que não mora lá ninguém.»
«Daquela banda – não, vigie, acolá –, naquela casa, ali era o diabo. Era um casal que depois teve um casalinho. O homem era daqueles que, já se sabe..., desterrava o dinheiro todo na tasca – a tasca ficava ali em baixo, mas já fechou, agora quem quiser tem que subir mais o caminho ao lado da ribeira, este caminho novo que fizeram; bem, quando não tinha mais dinheiro, nem tinha em casa, chegava – veja-me isto – a pegar em álcool, misturar com açúcar e limão, e metia pela goela abaixo. Não durou muito, ‘tá visto – um dia caiu dentro da levada quando tinha ido regar a meio da noite e azougou; deixou a mulher e um casalinho de filhos. Eles foram ficando ali, p’ra ali jogados, a mulher com o bordado, cada vez mais velha e cega, os pequenos foram crescendo... O filho..., bem, o filho deu num canzana de alto, de força; era um estuporado, por tudo e por nada ficava brabo; por tudo e por nada fervia; chegava a bater na irmã e na mãe. Depois – ouça isto –, de noite, de noite começou a se meter na cama da irmã. Já me viu? A mãe, com medo, não teve outro remédio senão dizer assim: “Vem p’ra aqui, deixa tua irmã. Vem p’ra aqui, comigo já não há problema.” Era o diabo. Há uns tempos, parece-me que todos três saíram d’acolá. Não sei p’ra onde foram. Hoje não mora ninguém na casa.»
«Agora olhe p’ra ali. Aquelas paredes de casa, lá em cima. O tecto já deu de si... Aquela casa – a gente vê – já não tem bafo de gente há muitos anos; mas antes morava pai e mãe e filho. Um dia de manhã, a mulher e o pequeno, que devia ter na altura mais ou menos a minha idade, desciam por aquele lado da ribeira; tinha chovido muito, tinha chovido toda a noite; quando eles passavam, ali – ali mesmo – cai uma quebrada. Olhe, foi mãe, e foi filho. O homem, sozinho, deu em maniar, andou por aí como azoado da cabeça e avariou de vez. Ele subiu àquela rocha – sim, aquela – e abicou-se.»
«Isto é uma vida, não é? Bem, amigo, ‘tou a gostar deste bocadinho, mas tenho de ir. Inté à vista. Ouça, espere, não me vai pôr estas histórias no jornal, vai? Ainda vão dizer que parece mentira.»

[Crónica publicada no JM, 04-VIII-2018.]

sábado, 7 de julho de 2018

Crónica 104 [Perdão]

Não esperava – não estava preparado – para o que ouviu. Na altura – ou tantos anos passados – as palavras que recebeu – e que lembrava – deixavam-no sempre – ao adolescente – ao ente maduro – do mesmo jeito burro – a boca escancarada – os olhos arregalados – toda a cara caída no limbo do espanto. Ouviu, e ouvia: a velhinha pedia-lhe: “Perdoa-me.”
Poderia ser uma capitulação, uma derrota, silabada com saliva rogatória, num idioma entaramelado pela segunda – ou terceira – trombose. Se outros, que não ele, tivessem sido os receptores da súplica – talvez saltassem, exultantes, a espanejar os rancores, no terreiro desse lugar pequeno da Madeira, na ressaca de eras passadas na injustiça e na violência. [Talvez – mas é duvidoso.]
Se outros, que não ele… Porém, as palavras que ouviu – que lhe resvalavam nos ouvidos, dia inesperado sobre dia inesperado – não foram vitória – e também não foram derrota.
A velhinha tinha sido uma mulher de força, de armas, de resistência – assim parecia, era dito nesses moldes, era o modo como falavam vizinhos e conhecidos. [No Funchal, para onde emigrou a família, saída da freguesia “lá dentro”, esta mulher passou a conhecer toda a gente: grande e pequeno, gente “de ter” e borra-botas de solas esburacadas, o sr. dr. da política e o pedinte que destrocava as notas, gato e cachorro.] Era um colosso, uma fortaleza – pensariam e diriam, com tais palavras se tais palavras estivessem à mão, as pessoas que conheciam a mulher fora do sufocado meio familiar. Mas os filhos, alguns filhos, souberam e sentiram o que não saía da porta para a rua: a rudeza de carácter, a prepotência – a tirania que os subjugou.
E porquê? Não vale a pena gastar muita tinta.
Esta mulher deitava diferenças sobre os filhos; de entre todos elegia uns – e não escondia as suas preferências. Isto tinha começado, verdade seja posta a claro, pelo marido; duas décadas mais velho que ela, tinha como predilectos os filhos que eram parecidos com ele – os louros e alvos. Mas ele morreu – e morreu cedo. Célere e imediata – e longeva – veio a vingança. Os restantes filhos, os morenos, foram os preferidos da mulher; os louros foram até o fim os martirizados.
[Nunca se deu por isso, portas afora. [[Se se deu, não se fazia caso. Esta mulher cedo chegou ao patamar dos veneráveis.]] Neste seio familiar não morou a igualdade; ali a justiça não teve portas abertas e guarida; o amor entre homens e mulheres do mesmo sangue… bem, passava em veias distintas e trocadas.]
[Gastemos um pouco mais de tinta.] A mulher deixava a pele das filhas mais velhas eivada de hematomas: havia beliscões de dedos que torciam no sentido dos ponteiros do relógio – um relógio, dois relógios; se houvesse dedos e carne macia, mais corda se dava ao tempo e à dor; havia vergastadas de varas de salgueiro, prometidas de manhã, dadas à noite, em dias inesperados que se tornavam certos – e esperados. Havia beliscões e vergões – e chapadas em filhas casadas e mães de filhos. [Os genros, as noras, os filhos – todos tremiam; uns de medo; outros por dissimulação, mesquinhos por terem a carne livrada.]
Aos filhos preteridos reservou um destino – o de serem evas e adões primevos, obrigados a aprender o princípio de tudo, expulsos do éden materno para o chão imundo; aos preferidos, estendeu-lhes, lá fora, um chão imaculado. A uns e outros, deu-lhes lâminas fratricidas.
O que é um perdão? O que é um pedido de perdão? Passados os tempos, sujos de esquecimento, para que servem estas coisas reclamadas? Para o neto, então e agora – servem para nada.

[Crónica publicada no JM, 07-VII-2018.]

sábado, 23 de junho de 2018

Crónica 103 [Explicações]

“Explicação do Poeta”,
de Daniel Faria

«Pousa devagar a enxada sobre o ombro
Já cavou muito silêncio

Como punhal brilha em suas costas
A lâmina contra o cansaço»


Explicação do cronista, em tempos de futebol, a olhar para o computador: segura a duas mãos a enxada; levanta-a; deixa-a cair para trás. Explicação da enxada: começa de novo; levanta os dedos em ângulo recto sobre o teclado; deixa-os cair – mas evita dar erros sublinhados a cor de sangue. Explicação do sangue: há que mantê-lo fluido; há que calafetar as veias. Explicação do calafate: tapa bem os buracos da tua casa; cerra as entradas de lagartixas; fecha as saídas de oxigénio; persegue o ideal de autarcia.
A autarcia: se não começar pelos desejos, não começa por lado nenhum. O oxigénio: mistura-o a teu gosto; com fumo de cigarro, por exemplo; não o mantenhas demasiado puro. O cigarro: não há dias sem marcos, sem ritmos, sem balanços – sem pontos de entrada e de saída. O dia: pesa-o de acordo com os teus pesadelos. O pesadelo: se um peixe falar esperanto enquanto fuma uma cigarrilha – tudo bem; se um homem comum tomar uma simples navalha e atacar, comum e simplesmente, alguém – tudo mal. A navalha: lembra-te do ‘Chavelha’, quando a enterrava no bucho de alguém – “Guarda-me esta até amanhã”; usa-a marinada em metáfora; substitui-a por algo que fira e que cicatrize logo – uma memória, por exemplo, colhida aonde te levem os pés. A colheita: um pão azedo, vindo da nossa eira, traz um conduto doce; se não, deita-lhe vinho. O vinho: deita mais, ou menos, enxofre – como queiras; fizeste o vinho, terás de bebê-lo. O imperativo: bate o pé – na dança, na opinião, na perversidade; no que for, bate o pé – há gente que tem pés mais pesados do que os teus.
A opinião: em caso de encurralamento, defende-te; depois, no rescaldo da refrega, não mintas a ti próprio – e penitencia-te; por vezes, ou sempre, estás – apenas e tão-só –, errado. O curral: deita, no meio dos encurralados, opiniões bastantes e terminantes; afasta-te e deixa cozer; volta quando estiver pronto a servir. A perversidade: veja-se, para melhor dilucidação, a explicação seguinte. A política: a arte de mudar de posição; a arte de mudar consoante a posição. A posição: contra factos e argumentos, há poder. O poder: subestima, sobrestima, defende, ataca – como quiseres; não o percas – se perderes, prepara-te para pagares pelos teus erros e para saldares as tuas dívidas. O erro e a dívida: foge à primeira oportunidade; manobra os ruídos certos. [A ironia: não te canses; não descanses; não t’importes; não uses parênteses.]
O ruído: é necessário preencher os vazios entre os silêncios. O silêncio: o veneno que não mente. A mentira: um pântano é simultaneamente alfobre de morte e fonte de vida. A vida: quem procura terra firme deve começar por drenar o seu próprio paul. O paul: um corpo, uma mente, as mãos. As mãos: uma caneta; um teclado; uma enxada; uma navalha. O início: há que cair e voltar a levantar-se. A criação: há que tombar e erguer-se de novo. A queda: quanto mais pequenas e constantes, maior o seu valor. A constância: subverte em silêncio e em solidão. A subversão: preservação; compromisso; lentidão; quietude; o espírito frenético e plácido no corpo possante e decadente. A contradição: alfobre de morte – fonte de vida.
Segunda explicação do silêncio: conhece por dentro a tua fortaleza. Segunda explicação do ruído: conhece por fora a tua fortaleza. Explicação da fortaleza: mede todas as palavras. Explicação da palavra: a água lava tudo – disse um ancião –, mas não lava línguas bífidas de ressentimento, línguas rugosas de frivolidade, línguas gretadas de omissão. Segunda explicação da palavra: [   ]

[Crónica publicada no JM, 23-VI-2018.]

sábado, 9 de junho de 2018

Crónica 102 [Crónica Caótica]

Dois homens falavam, com os pés sobre a grade da adufa, à frente da tasca. [Semilhas, feijão, regas, madrugadas ao alto, dias tardios, pouco dinheiro, costas que doíam.] Quando se despediram, disse o que tinha a cara mais curtida do sol e do vinho: “Olha, ‘tou bastante contente... ainda bem que a gente se encontrou. Daqui a uns anos a gente encontra-se outra vez, aqui mesmo, pode ser? Se houver saúde e se ‘tivermos vivos... Sabes o que é que eu queria? Queria ir ao funeral dos meus amigos. [O ouvinte contraiu as beiças num ricto amarelado.] Percebes? Há dias diziam-me assim: não gostavas que os teus amigos fossem ao teu funeral? Eu disse que sim – e disse que também gostava de ir ao funeral dos meus amigos. Bem, foi bom este bocadinho. Força.” Entraram nos carros e foram embora.
           
Uma pessoa ouve, lê, pasma. Ele é Jack Kennedy, é George Orwell, é Churchill, é Lampedusa, é Huxley, é o Fernando Pessoa das “Pedras no caminho” [“Guardo todas, um dia vou construir um castelo”.] [Um castelo ou um pardieiro apócrifo – é igual.] Ele é citações cansadas, vindas a despropósito e a armar ao pingarelho. Enfim, parece que o “Citador” online anda a bater válvulas – e parece que há gente que só ontem começou a virar frangos, sobre lenha húmida, ou que anda a mondar silvado com mãos macias e unhas de manicura.
           
Um homem aproximou-se de outro. Meteu o dedo à frente dos olhos do receptor, olhou para a testa dele e abriu a boca: “Tu nunca mais t’atrevas a falar assim comigo, senão largo-te uma relampada na ouvideira que ficas a zunir até ao ano que vem, ‘tás a compreendestes?” O outro deixou correr uns segundos – e ripostou: “Da próxima vez que falares assim comigo, largo-te uma batata na tampa da cabeça que racho-te até ao forro das grãs, ‘tás a atremastes?” A seguir, ficaram fechados numa suspensão – sem ponteiros e sem perturbação do exterior. Finalmente, sacudiram-se a rir, de costas curvadas e palmas a bater umas nas outras e nas pernas. “Vai-se tomar uma cerveja?” “Vai-se – mas não vai ser cerveja. Hoje ‘tou a tomar pastilhas.”
           
A nossa época criou – ou passou a valorizar – uma competência especial, uma vocação inédita, um talento sem par – a actividade permanente nas redes sociais [no Facebook]. Sem mais questionamentos, dúvidas ou hesitações, indivíduos há que são considerados relevantes – na opinião pública, no mundo da política, no clima cultural e mental – simplesmente porque estão no Facebook – e porque aí são constantes, pletóricos, cirúrgicos, em ‘posts’ e comentários e etc. Além disto – ou em relação com isto –, há indivíduos que, na construção do eu, da sua imagem, do seu perfil, têm tanta coragem, tanto denodo, tanta boa-fé, tanto aprumo moral que... precisam de um perfil falso – ou de perfis falsos – para o resto.
           
[Apenas mais um parágrafo caótico e mal-vestido – uma história de ego, porque também mereço e porque já era para a ter contado.] Um dia – lá vão muitas quinzenas –, passava eu no centro do Caniço. Saiu de dentro de um ‘snack-bar’ um homem alto – mais alto do que eu, o que é raro –, entroncado, sulcado e calejado pelo tempo. [Posso estar enganado, mas pareceu-me reconhecê-lo – era um dos homens que, nos finais dos dias da semana, estacavam às portas das tascas nas redondezas da Igreja de São Pedro.] Chegou-se ao meu pé. [Com o braço direito, empurrei a minha mulher para trás de mim e esperei.] Primeiro, falou – dir-se-ia – para um interlocutor imaginado: “Deixa-me aqui cumprimentar este senhor.” Depois, estendeu a mão e acrescentou: “Gosto muito das coisas que escreve. Muito obrigado.”

[Crónica publicada no JM, 09-VI-2018.]

sábado, 26 de maio de 2018

Crónica 101 [Down]

Ele tinha sido o último de uma longa fileira de crias. [Dois ou três anos depois de sair da mãe, ele e os irmãos foram levados a fazer pose perante a objectiva de um fotógrafo; arrumaram-nos em escadinha; e ele ficou no resto direito da fotografia – o mais novo; o mais pequeno.] Quando acabou o parto, feito de gritos e horas revolvidas, a mãe pôde ver um bebé de cabeça achatada, angular, que tinha, a guarnecer os olhos, pálpebras carnudas. Era Síndrome de Down; era, dizia o pai, ‘monguále’.
Não houve causa para alegrias: a família sobrevivia no meio de uma enxurrada por estancar de carências e aflições; eram muitas bocas para pouco pão; era muita canalha para tão pouca paciência. Mas também não foi caso para grandes tristezas: uma boca – rasgada – a mais, um crianço a mais – era o que Deus queria e seria o que Deus quisesse.
O menino cedo deu em resistir a estar quieto; corria muito, ria sem parar – fugia sempre, correndo e rindo, com a língua pendente da boca. A mãe dava os seus berros e mandava os irmãos alcançá-lo. [O pai sacudia os ombros.] Mas, enquanto fizesse barulho – de pés descalços sobre os chãos ou com gargalhadas –, sabia-se que a criança estava por perto, em lugar certo – percebida, ouvida, vigiada.
O primeiro pancume veio aos sete anos. O menino saltava, do lado de fora da janela da cozinha. De repente, parou. No quintal, ao lado de um toco de palmeira de onde agora brotavam ervas de cheiro, encontrou um melro preto; a ave estava rígida, de patas esticadas e papo para o ar; sobre as penas, que já se precipitavam em cinzento, pousavam moscas azuis e verdes; formigas entravam nas cavidades oculares e faziam as primeiras colheitas de provisões. [A morte estava fresca – mas depressa haveria de apodrecer.] O menino agachou-se e ficou deste feitio durante alguns minutos. Pegou na ave, correu até à cozinha e disse à mãe, que começava a desconfiar do silêncio: “Mã, olha.”
Foi o primeiro pancume que levou. [Partiram-lhe os dois dentes de leite que restavam.] Foi o seu primeiro – talvez único – rito de passagem.
A partir desse momento a sua crónica poderia ser contada, se houvesse alguém para contar – dia a dia, surra a surra, com rigor, em vários volumes –, tomando como capítulos as diferentes malhas. O menino sujava-se, levantava a saia às irmãs, caía e raspava os joelhos; o adolescente atacava os pratos de grão-de-bico que ficavam do almoço para o jantar, de libido danada e frenética deixava espalhados pela casa lenços húmidos, roubava umas patacas à carteira da mãe; o adulto não trazia o dinheiro inteiro dos biscates na vizinhança, roubava cigarros ao maço do pai, demorava-se na sexta-feira à noite, quando fazia coisas que os vizinhos bilhardavam, acelerados pelo desregramento moral. Fosse o que fosse, em idade mais tenra ou mais madura, sobejavam sempre razões para uma mão aberta, uma mão fechada, um vime, um bocado de pau, uma correia, um fio de luz… O pai dizia à mãe, sem variar, nas três idades: “Ah rapariga, calma, o pequeno é ‘monguále’, espera, ouve…” E podia dizer o que quisesse – na carnadura do pequeno haveria de saraivar.
O pai faleceu; depois foi a mãe. Em ambas as exéquias, os irmãos tiveram de tirá-lo logo do cemitério. De gritos roucos, agarrava cabelos, mordia canhotos, arrancava flores, jogava-se para o chão sob o féretro.

[Crónica publicada no JM, 26-V-2018.]

sábado, 12 de maio de 2018

Crónica 100 [Mães]

Nessa casa – nesse quarto – estava uma cama: um poiso nocturno de várias cabeças, de vários corpos – cinco crianças, uma mulher. [O primeiro sol do dia não entrava ainda pelas grossas gretas das paredes de blocos nus.] A mulher levantou-se, vagarosa, mas não conseguiu deixar de tocar com o calcanhar gretado na cabeça do filho mais novo. [O menino não despertou – ninguém acordou.] Tomou a sua única roupa, os sapatos ressequidos, uma mala parda – vestiu-se e municiou-se do pouco que ali havia. [Fez isto em silêncio – mas com uma pressa sôfrega.] Chegou-se à porta, abriu e tirou o cadeado, saiu; fechou a porta, colocou o cadeado por fora e fechou-o. Daí a um quarto de hora – calculou ela levantando a cabeça para os matizes da manhã anunciada – passava, lá em baixo no caminho, a camionete para a cidade. Ela ia apanhar a camionete.
Os meninos continuaram a dormir mais um par de horas. Acordaram e descobriram: que estavam sós, fechados, sem luz, sem água, sem comida. Vieram os brados, que trespassaram as paredes. A vizinhança e a família ouviram, entreolharam-se confusos e pasmados, rangeram os dentes, levantaram as mãos ao céu. Amaldiçoaram este caos moral; depois ajudaram as crianças; e esperaram, durante várias semanas, a volta da mulher.
Ela finalmente voltou; às palavras que foi sofrendo na subida do caminho, principiou de responder com rugas de embaraço; por fim, virou-se, retesou o corpo de orgulho [um tanto vacilante, diria quem pudesse reparar] e disse: “Ninguém tem nada a ver com a minha vida.”
*
A menina tinha esse mau hábito – em vendo um animal a dormir, aproximava-se no seu passo devagar, em jeito de emboscada; parava, agachava-se – e começava a afagar o bicho. Podiam ser cães, gatos, galinhas, patos, um porco num chiqueiro [uma vez]. [Quando esta história chegou a mim, lembrei-me que Jorge Luis Borges, num poema, dizia que entre os justos – entre as pessoas que «estão salvando o mundo» –, está «O que acaricia um animal adormecido.»]
A mulher que gerou esta filha, em face do perigo, nada mais podia fazer do que andar armada de vigilância constante. [Um gato arranhou, um dia, a menina; um cão tentou também mordê-la.] Repreensões não tinham efeito – nem uma desesperada palmada.
Na verdade, à filha esta mãe não poupava cuidados, atenções, carinhos e regras nutridas de boa civilidade. [Até aceitava – como ficou contado – um ou outro pequeno capricho ocasional, à laia de contraponto.] Mas nesta tarefa estava sozinha. O marido – o homem que lhe coube em sorte, num casamento contratado – não prestava os mesmos tributos à graça que Deus lhes tinha deparado. Até ver, era indiferente – e incapaz de ter amor e de mostrá-lo à filha invisível. 
De vigilante que era, a mulher tornou-se apreensiva. Algo mudara. A menina começou a acordar com pesadelos e a andar distraída, aborrecida, desobediente, desafiante. A missão educadora parecia estar a ser subvertida por algum agente do caos.
Num dia, a mulher chegou a casa – e viu. O marido – o pai – tentava forçar a filha à mais hedionda ignomínia. A mulher viu – e, resolvida e em silêncio, foi à cozinha; tomou uma faca; aproximou-se por detrás; e passou a faca na jugular do homem.
Quando as autoridades chegaram, ela estava a sossegar a filha, que finalmente adormecera. Levantou-se e disse: “Sim, fui eu. E tenho orgulho disso.”

[Crónica publicada no JM, 12-V-2018.]

sábado, 14 de abril de 2018

Crónica 99 [Desencontros]

Um homem pressiona o telemóvel contra a orelha direita; diz: “Oh pá, tem paciência, mas não falo mais com aquela gente. Não falo. Sempre que falo com eles parece que levo uma malha no juízo. Se quiseres, agora, vai lá tu e resolve.”
Um homem desce a alameda; vai pensando na altura do tratuário; um cão castanho, a farejar o ar, de olhos cobertos de capas opacas, vem do lado oposto; chocam ambos – o crânio do bicho contra a tíbia do homem. Continuam o caminho para onde iam.
Um homem entra numa tasca. O tasqueiro levanta e deixa cair o queixo, inquirindo com mudez. O freguês pede: “Um café de Setembro!” O ecrã da televisão é varrido pelas cores do filme ‘Alice no País das Maravilhas’ [ou seria ‘Alice do Outro Lado do Espelho’?], de Tim Burton. Todos os fregueses – cinéfilos involuntários – estão, ou acabam por ficar, atentos, submergidos, de boca entreaberta. Às perguntas do tasqueiro – “Mais alguma coisa?”, “Dentinho de favas ou de moelas?” – respondem os homens do lado de cá do balcão com um grunhido e um aceno de cabeça.
Na padaria, uma jovem mãe está sentada a uma mesa vazia. Põe a sua bebé sobre a coxa esquerda e enlaça-a com o braço esquerdo; estende este braço, depois o outro, agarra o smartphone e dentro dele fica perdida. A bebé vai lançando os olhinhos em redor, saltando, parando, vogando. Um homem barbudo, feio, enternecido como se alguém o tivesse puxado para outro lugar, começa a fazer caretas furtivas de brincalhão. A bebé ri.
Dois adolescentes – vagarosos, de olhos pesados e com ramelas – vão à cata de cotos de cigarros. Param num cinzeiro à porta de um edifício e começam a escolher. Levantam cinzas sopradas; tomam beatas secas, beatas com milímetros de cigarro por fumar – deitam umas ao chão, outras levam à boca e aos bolsos. Depois desta colheita, vão à procura de terreno mais fértil. 
Um homem, gordo e desconjuntado, vai em ziguezague pela estrada adiante. A cada passo fincado no chão, o maxilar inferior cai-lhe trémulo – como se estivesse na iminência de se desprender da cabeça. Para este homem nada mais existe senão o destino da sua jornada – se é que tem destino; se é que se trata de uma jornada. Não toma atenção a carros, motos, semáforos, sinais, outros peões – por onde passa tudo tem de parar, esperar, ficar suspenso. Não vê nem ouve ninguém – nem o homem que, dentro de um Toyota, o segue com atenção aguçada; nem a mulher que, dentro dum Ford, comenta para o marido: “Vê-me só aquele jeito. Há gente, mesmo, que não tem juízo.” [O marido, enfim, devolve: “Deixa ‘tar. Nã t’importes.”]
Uma mulher e um homem, conhecidos de muitos anos, encontram-se no passeio. Ela está com pressa; ele está com vontade de falar. Ele: “Então, como vão as coisas?” Ela: “Vai-se andando, e lá?” Ele [que se mete à frente de um passo fugitivo que ela deu]: “Olhe, isto é o diabo. Eu não sei p’ra onde é que isto vai. Já viu? É a saúde, o hospital, é as viagens, é os impostos. Mas isto vai mudar. [Ela parece que ouve mas está surda; um só pensamento chocalha na massa cinzenta: “Tenho de me ir embora p’ra casa pôr o comer ao lume p’rós pequenos.”] Tem de mudar – e vai mudar. Desta vez há políticos na oposição aqui – quer dizer, não é toda a oposição, já se sabe –, mas há deles que podem chegar ao poder. Mais do que podem: pela primeira vez, podem – e querem!” Ela: “Basta que sim. Bem, até à próxima.” E foge.
Assim vista – assim inventada, talvez, que vejo eu?, que sei eu? –, a realidade é feita de desencontros – de desencontros entre palavras, entre gente, entre vidas.

[Crónica publicada no JM, 14-IV-2018.]

sábado, 31 de março de 2018

Crónica 98 [Passagem]

Era um homem que só fazia o que lhe dava na gana.
Trabalhava o que havia a trabalhar – devagar, com um fio pouco amolado de brio, mal afiado de compromisso. De resto – pois, de resto, era cigarros, ganzas, noitadas, discotecas, mulheres e bebedeiras de focinho bem atacado e manhãs do dia seguinte de cabeça a pulsar como o badalo de um sino. Para um vintão, enfim, era uma vida de sonho.
A mãe dizia-lhe, a avó dizia-lhe, o tio solteiro – um valdevinos saído do mesmo molde que ele – dizia também. [O pai – o pai era morto.] Diziam-lhe: a juventude é boa, é p’ra se viver, mas cuidado – era preciso deitar sentido às coisas, pôr a cabeça no seu lugar, não descarrilhar, tomar responsabilidades. [Etc.] O tio solteiro acompanhava este discurso com sorrisos matreiros. [Era uma forma de se expressar – incompetente, sim, mas verdadeira na mensagem. O tio conhecia bem estes caminhos – porque, na verdade, nunca tinha tomado outras derrotas.]
Ele ia respondendo: “‘Tá tudo controlado. Não há problema. Não faço mal a ninguém.”
Um dia, o tio – que a espaços lançava mão do seu alforje de leituras mal digeridas – perguntou-lhe: “E neste tempo de passagem, o que vais andar a fazer? Encher as ventas outra vez, não?”. Ele: “De passagem?” O tio: “Sim, passagem, a Páscoa, crucificação de Nosso Senhor, ressurreição, passagem – de um lugar para outro, da morte para a vida.” Ele sorriu. O tio, depois de servir mais dois copos de uísque: “Tu nunca lestes a Bíblia, pois não?” Ele: “E o tio já leu? Tem lhe dado muito jeito?” – e riu-se. O tio: “Tu tens uma vida despreocupada, rapaz. ‘Tá bem. E não tens nada de que te arrependas?”
Ele ficou quieto: um estilete aguçado de memória tocou-lhe nas costas. Sem freio, contou ao parente mais velho acerca de um tormento.
Uma tia e um primo mais novo costumavam visitá-lo e à mãe. Eram pobres, tristes, nervosos, calados. A tia ficava a um canto – ouvindo as repreensões da mãe pelas escolhas mal discernidas. O primo mais novo procurava-o – entrava de manso no quarto, levado da curiosidade e da esperança de ter um amigo com quem pudesse jogar no computador. Ele, nessa sexta-feira, frustrado com qualquer frivolidade, irritado pelo incómodo, enxotou o primo com violência – fazendo-o embater, com as costas, na aresta aguçada do alumínio da janela.
“Primo?”
“Sai daqui!”
Isto contou ele ao tio. E o tio disse: “Para culpa, não é nada mau. Já é um começo.”
Era a Páscoa, de novo. Na sexta-feira, a mãe falava alto ao telemóvel. Ele perguntou: “O que é que se passa?” A mãe: “A tua tia ‘tá aflita e aos gritos. Teu primo levou p’ra casa uns gandulos – já não é a primeira vez – e ela não sabe o que fazer da vida dela.”
Ele ficou quieto. Depois levantou-se e disse: “Já venho.”
Pegou no carro, meteu-se na via rápida, virou na terceira saída, desviou-se de uma pedra e estacionou. Tocou à campainha, entrou, virou-se para o primo mais novo: “O que é isto? Não tens respeito? Manda esta gente embora.”
De repente, estava ao alcance de uma matilha de adolescentes furibundos de força mal medida – e o primo mais novo era um deles.
Uma hora depois chegava ele a casa – combalido e de lábio inchado. A mãe gritou: “Já viste o que te fizeram?” Ele deixou-se ficar quieto: “Não tem mal, mãe. Não se preocupe. Não me parece que eles soubessem o que ‘tavam a fazer.”
O sábado passou. No domingo, ele repetiu o caminho da sexta-feira. Encontrou o primo – triste, nervoso, em súplica. 
“Primo?”
“Não há problema, primo. ‘Tou aqui.”

[Crónica publicada no JM, 31-III-2018.]

sábado, 17 de março de 2018

Crónica 97 [o lar]

esta é a forja
sabes que podes ser tudo – tudo – o que te disserem para ser – o que te baterem para ser – és um entre vários – todos iguais – diferentes – os mais – ou os menos – importantes – deves confiar na identidade – no signo do martelo – que em ti forem gravados – todas as manhãs olha bem a tua testa – aí verás – assim terás – aceita todos os gestos – os trejeitos – os arremedos – são os elos sem princípio nem fim da comunhão – dentro e fora da forja – sai – mas não te esqueças de voltar – sazonal – destemperado – ao umbral da oficina – para seres retemperado pelo fogo – pela eclosão contra a bigorna – e um dia – premido entre as paredes – emparedado entre as superfícies – vais gostar do calor da fornalha – vais querer empunhar o martelo 
este é o ninho
voa – ou trepa – e entra de patas descalças e limpas – deita-te após substituíres alguns ramos podres – nunca te levantes sozinho para olhar as estrelas – desperta silencioso – cabisbaixo – lesto – sobretudo acorda igual – ao que sempre foste – ao que sempre te fizeram ser – lembra-te que não precisas de acordar como insecto couraçado para te fazerem cair – ou como larva para seres sugado – basta errares o teu lugar no ninho – ou debicares palavras – ou cresceres penas de uma outra cor
este é o cofre
confia nas aritméticas que compõem o sistema – o cifrão é emotivo e depois orçamental – ou vice-versa – mais é menos – e menos é mais – nada dá resto zero – tudo é debitado e creditado na tua folha – segredos e murmúrios – obrigações e cilícios – quartos e gavetas e celas – risos e esgares – lágrimas e sal na mesa – frustrações e facas serrilhadas – pratos esboucelados – os números misturam-se com os caracteres em moldes de cunha – e sempre chega o tempo da cobrança – no cofre – nesse cofre fechado por dentro – faz por ter as contas em dia – são caras as sete chaves – por isso ouve – ouve muito – diz pouco – ou nada digas – quando saíres – ou quando fores saindo – até tu cumprirás – não o negues – um auspicioso futuro de contabilista de sentimentos
esta é a fortaleza
levanta-te e desenha um mapa – a tracejado assinala todo o território inimigo – a fortaleza como ilha cercada por bárbaros – sobe às atalaias – vigia – se não quiseres ser tu o bárbaro ou o judas submerso nas catacumbas – insidioso de barba acobreada – limpa as facas dia sim dia não – deita-lhes sebo contra a ferrugem – contribui com pedras para a muralha – se não tiveres pedras o teu esqueleto servirá bem como substituto – os ossos afinal acabam por fossilizar e petrificar – presta tributo – presta sempre tributo – traz alimentos e vinho e água limpa – certifica-te – como competente fiel de armazém – que o aprovisionamento é basto e rápido – ou doa a tua própria carne – na fortaleza sitiada tudo acaba por ser aproveitado
esta é a casa
cada injustiça é uma desculpa para fazer injustiças – cada rancor eleva a pira dos rancores – cada grito de cria é mais uma flama a aquecer a casa – cada mecha de cabelos grisalhos é mais um espaço ocupado no lastro do poder
este é o lar
[e se assim não o for – faz de conta – há sempre benefício em ser vítima – em ser um carrasco justificado a haver]

[Crónica publicada no JM, 17-III-2018.]

sábado, 3 de março de 2018

Crónica 96 [Preconceitos]

Falemos de preconceitos – de preconceitos contra: tímidos; velhos; pilosidade abundante; calvície; gente que escapa a categorias simples; gordos; indivíduos que não são progressistas [leia-se – que não são “pá frentex”]; conservadores; indivíduos de direita; direitistas que não acrescentam logo – “Mas democrata!”; ilhéus; gente da cidade; gente dos subúrbios; indivíduos que não fazem piercings, tatuagens e colorações capilares; gente que carrega livros – e que os lê; solitários; quem não se importa com os preconceitos mais mediatizados – e mais diabolizados; quem não abomina os preconceitos mais mediatizados – e mais diabolizados; quem assume que tem preconceitos; quem mete os polegares nos bolsos; quem mete as mãos inteiras nos bolsos; indivíduos que não têm “personalidade forte” [leia-se – que não são rudes e caprichosos]; avarentos; poupados; indivíduos que assobiam em público; quem conta piadas amarelas; quem ri de piadas amarelas; quem ri com estardalhaço; corcovados; desengonçados; feios; cicatrizes; quem tem calma; quem não tem calma; quem olha nos olhos; quem olha com intensidade; desastrados; indivíduos que têm sotaque; loquazes; calados; quem não se limita a ouvir; quem não atura queixumes; gente que dá conselhos sem pedido e aviso prévios; competentes arrogantes; competentes humildes; competentes que exigem competência; enfim; católicos; melancólicos; padres; bons sermões; padres celibatários; celibatários em geral; quem defende a disciplina do celibato para os padres; a bíblia; uma biblioteca; fumadores; viciados em substâncias mortíferas e sujas; viciados em hábitos mortíferos e sujos; carne mal passada; pessoas que comem carne mal passada; pessoas que comem carne; curvas – barrigas, rabos, mamas; gente que nomeia, arrola, descreve e analisa; gente que mostra que, no comércio dos preconceitos, há vários mercados, produtos e redes de distribuição; palhaços; o horrendo; cronistas que não escrevem sobre os dias correntes; cronistas que escrevem sobre coisas estranhas e esquivas; cronistas que não fazem parágrafos; quem não se assusta; quem sorve a sopa; quem não se indigna; gente de origens humildes; pobres altivos e orgulhosos; pobres mal-agradecidos; ponderados; homens e mulheres que dizem sempre – “E quem é que vai pagar isso?”; descrentes; descrentes ou ateus plácidos e tranquilos; gente que não odeia; homens que se levantam quando chega uma mulher; mulheres que não se levantam quando chega um homem; pessoas que não dão mimos materiais a crianças; pais ordeiros; pais solteiros; indivíduos que não gostam de animais domésticos; axiomas e aforismos; quem escreve axiomas e aforismos; quem não acredita em axiomas apócrifos e disseminados nas redes sociais; indivíduos que desconfiam das redes sociais; a história – a memória – o passado; línguas mortas; mortos; gente que vai morrer [“Ave, populus, morituri te salutant!”]; a morte; preguiçosos; listas; gente que sabe – ou inventa – coisas e que as declama como listas; indivíduos que contam, dissecam e inventam histórias; gente que escolhe a barricada errada; gente que peca do lado errado; mulheres e homens que não são feministas; homens; mulheres; heterossexuais; indivíduos que não falam de sentimentos; indivíduos que não falam dos seus sentimentos; cerimónias e formalidades; indivíduos cerimoniosos e formais; indivíduos que não usam eufemismos e jargões; indivíduos.

[Crónica publicada no JM, 03-III-2018.]

sábado, 17 de fevereiro de 2018

Crónica 95 [Destino]

Há um funcionário medíocre, encafuado por detrás do balcão entre impressos a esvoaçar pela repartição, de olhos vesgos e beiças brutas; amiúde, lembra-se ele do aluno brilhante que tinha sido outrora.
Há um homem levado sempre ao colo – do hospital onde nasceu aos corredores do emprego e do partido –, escondido do seu próprio demérito, à força de cunhas metidas e palavras de patrocínio; esse homem acabou por ser diligente, bondoso, afável – uma fonte de serviço útil e benfazejo aos seus pares. 
Há uma mulher que sonhou com a maternidade – mas que só pode ser mãe para os sobrinhos, os amigos, os pais, os tios.
Há um aluno que partia pernas de cadeiras, que pintava mesas e paredes com “gamses” de cores desfalecidas, que batia nos mais moços, que fugia das professoras e da mãe, umas e outra de régua e cinto na mão – e que veio a ser um empresário de sucesso, benfeitor da comunidade, parlamentar de verbo torneado e aguerrido.
Há uma família modelo – filhos que obedeciam e respeitavam, mãe que dirigia e cuidava, pai que protegia e providenciava; anos mais tarde, as fundações da família caem em ruínas para dentro da casa – um filho racha a cabeça a outro filho, por causa de dinheiros a haver e partilhas quebradas; toda a prole tem por desporto verbal predilecto jogar as culpas da vida envenenada para cima dos pais velhos divorciados de fresco.
Há um pai que bebeu, gastou, roubou, insultou, maltratou, que desapareceu – e apareceu corroído de tumores nas entranhas podres; no hospital, a filha visita-o todos os dias – constante vigilante à cabeceira; a filha junta as suas lágrimas às do pai.
Há um amigo que é amigo, que diz que é amigo, que sempre soube o que era o melhor para os seus amigos, que por eles fazia e faz tudo – mas que não tem amigos.
Outro homem, desde o início, não se importa com amigos – calcula e dispõe, selecciona e desgasta, faz dos outros instrumentos; a este homem não faltam, porém, auxílio, dinheiro, favores, refúgios de portas abertas e caminhos atapetados de escarlate. [Quem uma vez disse que este rei ia nu – que todos viam, cegos, vestes de seda dourada onde só havia nudez e artifício – foi de pronto proscrito.]
Finalmente, há um homem que cresceu numa casa onde as bebidas alcoólicas corriam mais abundantes que o leite – que a água. Pensou, decidiu-se – disse-o até, um dia, em voz alta, sozinho: nunca. Hoje emborcava – sozinho, escondido, plácido, pacífico – quase uma garrafa de uísque por dia.
De um ponto a outro ponto estende-se uma linha – o mais direita possível para que se possa extrair um sentido desta geometria, desta vida. O ponto de partida tem já em si – iludimo-nos nós, eternas crianças – o gérmen da chegada. Mas a verdade é que não: não há conclusões tiradas inscritas previamente em premissas oferecidas; não há berços dados que correspondam a caixões determinados; não se sabe aonde se vai chegar – não se sabe, por vezes, de onde é que se partiu. Pontos / linhas / direituras / sentidos / partidas / chegadas / premissas / conclusões – meras ilusões. [Ilusões e filosofia de três tostões – como a que está nesta crónica feita de pressa e frivolidade.]
A verdade é que não temos destino.

[Crónica publicada no JM, 17-II-2018.]

sábado, 3 de fevereiro de 2018

Crónica 94 [Subidas e Descidas]

A procissão fúnebre descia as escadas abicadas sobre a vila.
Levava à testa um homem, que ia dizendo dos cuidados a ter nos degraus frios e sem medidas certas. Depois, iam quatro crianças – três meninas, um menino –, vestidas de branco, que na lonjura lá em cima haviam-se ajudado a um pequeno, ainda que pesado, fardo. Sobre os seus ombros equilibrava-se um caixão, branco por fora, por dentro perfumado de flores, com um menino morto – um anjinho ido para o céu.
A tarefa não era fácil: suportar uma carga era uma coisa – suportá-la com gravidade, outra. As mães disseram aos infantes que haveriam de levar o esquife: “Juízo” / “Tento na língua” / “Não façam barulho” / “Vão com respeito” / “Livrem-se de rir” / “Cuidado para o caixão não virar e cair”. Na descida da calçada feita de calhaus, porém, os pés doíam, o peso mordia os ombros, o sol abrasava, o aborrecimento entrava franqueado nas jovens mentes.
Três meninas e um menino, pois. Ele, travesso e irrequieto, afinal o irmão mais velho do bebé falecido, levado de um impulso que desafiaria qualquer compreensão adulta, experimentou descer o ombro esquerdo e empurrar devagar, com a mão direita.
O caixão virou, caiu, abriu-se, descobriu o pequeno defunto. As crianças riram-se – nenhuma reação seria, ao princípio, mais natural e instintiva. O adulto – o pai – apressou-se a compor esta descompostura, mastigou em seco e, com transtorno, contraiu a cara enxuta de lágrimas inaugurais.
Aí terminavam as escadas. Mais adiante ficava o cemitério.
*
O menino que sobreviveu ao irmão cresceu.
Saiu como saíam os homens da sua família – da mesma amassadura, da mesma fornada. Era baixo, ensocado, rijo, de pele queimada – e de apetite por zaragatas e brigas. Trabalhava com um objectivo: avaliar as cifras de dinheiro que vencia pelos copos de aguardente que podia pagar na tasca do regedor. [Se ganhasse bebia – se não ganhasse não bebia. Não queria fiados – não admitia róis. A honra é assim: eleja-se a que mais convier; feita a escolha, não há avanços ou recuos – não há subidas ou descidas.]
Não se metia com ninguém – mas dava as boas vindas a quem o apoquentasse; uma vez enterrou uma curta navalha de que era inseparável – uns cinco centímetros de gume – na barriga de um abusador, que foi para casa de mãos tensas a estancar o sangue.
Levava, na freguesia, esta vida simples, sem remorsos ou arrependimentos. 
Um dia um trastalhão – quase dois metros de altura, cento e tal quilos – entendeu em pegar com ele, na tasca. O nosso anti-herói disse: “És grande, mas não és dois.” [Por poucos minutos houve tréguas silenciosas.] Depois de sair à porta da tasca, reparou que estava a ser seguido. Desta vez, escolheu controlar o apetite e ser cauteloso – caminhou para as escadas que, da vila, subiam até ao seu sítio, lá em cima. O perseguidor ia zombando: “‘Tás a fugir? Tens medo? Não fujas!”
Ele galgou os primeiros degraus e disse: “Agora podes vir. ‘Tou aqui. Não fujo mais.” Nestes segundos, neste local, o limbo da memória abriu-se e invocou a imagem de um caixão a cair. [Seria um primeiro remorso? – um remorso inaugural?] Ele sacudiu-se. Puxou da navalha e esperou para usar da vantagem de estar em terreno mais elevado. O gigante subiu, imprudente – e ele, desviando-se de um soco, vibrou a lâmina. O outro, golpeado na têmpora esquerda, ficou estonteado, perdeu o equilíbrio, caiu, e durante as horas seguintes cobriu de sangue este trilho de subidas e descidas. 

[Crónica publicada no JM, 03-II-2018.]

sábado, 20 de janeiro de 2018

Crónica 93 [Um Diálogo]

Filipe – O que fazer, então, quando a esterilidade nos entorpece?
Dinarte – Não sei.
F. – Mas percebes o que quero dizer?
D. – Penso que sim. Não sei.
F. – Esterilidade e torpor – uma redundância. Não é?
D. – Pode ser.
F. – Se calhar ‘tás a pensar – “Este acordou com os pés de fora do ano novo”. Não?
D. – …
F. – Projectos, ideias, sonhos – tantos. Como manter a cabeça à tona?
D. – À tona?
F. – De água. À tona de água.
D. – Não sei.
F. – Como realizar, entre milhares de ideias enxundiosas, pelo menos uma, enxuta, consequente?
D. – Enxundiosas?
F. – Sim.
D. – Pois. Não...
F. – … Tu, por exemplo, há quanto tempo não escreves um verso?
D. – Tem tempo, tem algum tempo. Exactamente quando, não sei dizer.
F. – E porquê?
D. – …
F. – Não sabes dizer.
D. – Não, não sei. Quando nada há para escrever, que posso eu escrever?
F. – Pois. Há horas assim.
D. – Como esta.
F. – Como esta?
D. – Sim. Quer dizer, não sei.
F. – Amaldiçoada esterilidade de tempos de paz.
D. – Amaldiçoada esterilidade de tempos frívolos – de tempos de guerra surda.
F. – Uma maior precisão nos conceitos – muito bem.
D. – Precisão dos… É possível. Não…
F. – … Não sabes. 
D. – Não.
F. – Há alguma coisa que saibas?
D. – Ninguém sabe nada de relevante quando as perguntas estão mal formuladas.
F. – É o meu caso. A questão da esterilidade.
D. – Talvez.
F. – Esta conversa ressuma penúria.
D. – Bom sinónimo.
F. – Sinónimo?
D. – Esterilidade; penúria; infertilidade; escassez.
F. – Torpor; inércia; langor; prostração.
D. – Isso é outra coisa.
F. – Este diálogo é um beco sem saída.
D. – Não sei. Parece-me, sim, uma estrada sem fim.
F. – E então?
D. – E então – continua.
F. – P’ra onde?
D. – Não sei.
F. – Mais uma linha – mais uma deixa – mais uma inutilidade.
D. – Menos uma leitura.
F. – Não tenho lido nada.
D. – Se não leres, não te é dado o direito de escreveres.
F. – Como assim? Direito dado por quem?
D. – Não sei.
F. – Penso que percebo o que queres dizer. É assim o mundo – cheio de escritores – vazio de leitores.
D. – Bem… Não sei.
F. – Mas é interessante essa ideia – uma relação matemática entre leitura e escrita. 20 000 palavras lidas dariam direito, sei lá, a 500 ou 600 palavras escritas. Seria uma contabilidade por partidas dobradas, lançada num livro – a um lado o débito, a outro o…
D. – … ‘Tavas bem lixado, nesse caso.
F. – ?
D. – Não é essa a medida, quase 600 palavras – 3000 e tal caracteres –, de cada uma das tuas crónicas? Partindo do princípio de que são crónicas.
F. – Não são?
D. – Não sei.
F. – Estávamos ambos lixados, na verdade.
D. – Não sei.
F. – Tu fazes afirmações inusitadas, cirurgicamente inusitadas, e depois desfias um rosário de indefinições.
D. – Não sei. Talvez.
F. – Assim como o pirómano que ateia um fogo e depois fica, em deleite, a contemplar o espectáculo, negando qualquer responsabilidade.
D. – Não sei. Em todo o caso, as cinzas sempre podem ajudar a fecundar a terra – ou o papel…
F. – … Em todo o caso, aprecio estes diálogos contigo, a sério que aprecio. Temos de combinar o próximo.
D. – OK. Quando?
F. – Não sei. Depois combinamos.

[Crónica publicada no JM, 20-I-2018.]

sábado, 6 de janeiro de 2018

Crónica 92 [Palavras]

São simples, não custam nada, estão aí prontas a usar – as palavras dos últimos dias correram, e correm algumas ainda, desemaranhadas e crédulas. [Feliz – Santo – Bom – Natal / Boas – Festas – Entradas – Saídas / Feliz – Bom – Excelente – Ano – Novo.]
Com elas, com elas apenas, vem locupletada a promessa de mudança – assim pensamos, numa época que não se quer melancólica, preocupada, prosaica; e assim ficam descansados e encantados corpos, bolsos, consciências e razões.
Mas palavras há que são engodo, engano, evasão e álibi.
Eu não quereria trazer à liça a impertinente – equivocada e ilusória – destrinça entre palavras, ditas e escritas, e acções. Mas para esse caminho vão, sem cessar, os meus passos mentais – porque nunca, até hoje, alcancei mais e melhor. [E o que alcanço digo-o agora – lá está – em palavras de crónica.]
Mas parece-me que a verdade é esta: dizemos e escrevemos [– e infectamos o silêncio]; controlamos e domamos as palavras; aligeiramos, deste modo, a imperiosidade e o controlo dos actos; esquecemo-nos de fazer, de agir, quando o ar é agitado por votos e pregões beatíficos e bem-querentes; pomos ditos e escritos a fazer as honras da casa, a fazerem a vez – a serem competentes simulacros; livramo-nos de fardos que haveriam de pesar uma vida inteira no prato menos polido da balança.
Ouve-se e lê-se – ou melhor, ouço e leio – e, Deus me perdoe, não consigo deixar de pensar: que quem somente tem palavras nada mais tem – e, com efeito, de nada mais necessita; que há homens e mulheres que desfraldam muitas palavras – e cuja conduta constitui a melhor refutação para as palavras desfraldadas.
Nesta Festa – porque já vou ditando esta crónica aos dedos como quem dá a mão a Sísifo, viro aqui o meu leme – vi coisas de que quero falar.
Vi um sacerdote idoso, numa igreja, a ensaiar crianças com cordofones sobre os colos. De dedo descaído solicitava atenção, pedia a afinação de uma corda dupla, ajuizava do acerto de uma melodia tocada a solo. Falava, mas falava pouco. De velhas mãos maestras, num lado, e de dedos novos a calcar cordas e braços de madeira, no outro, haveria de brotar música.
Vi uma criança a fazer festas na cabeça e na cara de um primo mais velho – bem mais velho, à beira da uma quarentena de anos. Não era costume – não tinha sido costume nos últimos anos – e o homem ficou perplexo, incomodado até, mas não se atreveu a dissuadir o infante.
Vi outra criança que não se importou de receber uma prenda poucochinha e utilitária – duas folhas de dinheiro, simples e coloridas na sua frieza. Vi a criança agradecer como se grande oferenda fosse – e agradecer usando palavras tão-só como acrescento, como reforço.
Vi um rapaz dar um bocado de bolo de chocolate – penso que era bolo; e seria de chocolate – a um cão abandonado que abocanhou a dádiva completamente.
Palavras há que são empecilhos.
E há palavras que trazem, na Festa, advertências e alertas – como muitos sentirão – inoportunos. Escutei uma mulher dizer que as pessoas são esquecidas; e que lhes fazia bem lembrar e conhecer as fomes e os abusos de algumas elites sebosas e abrutalhadas que havia antigamente. 
[Já me ia no esquecimento – no que toca ao direito e ao dever de desejar, para mim e sobretudo para vós, também sou gente, também sou filho de Deus. Portanto – um Bom Ano Novo.]

[Crónica publicada no JM, 06-I-2018, p. 15.]

domingo, 24 de dezembro de 2017

Crónica 91 [Tempos]

Sei que sou madeirense porque penso no tempo da Festa – ou, se mais vos aprouver, do Natal – o ano inteiro. [Talvez a minha espécie esteja em vias de extinção. Não sei.] E, agora que festejamos, dei por mim a pensar em outros tempos – dentro e fora da Festa.
Com efeito, volta e meia, é isto que acontece: a minha infância dá de caras com este eu bojudo, barbudo e careca. E não sei o que dizer. Quero falar, o menino que fui também quer falar, mas parece que não nos entendemos – porque não falamos já a mesma língua, porque fazemos as perguntas erradas, porque ficamos emaranhados num jogo de culpas dadas e arrancadas.
“O que andas fazendo, Mascarilha? Andas esquecido de mim?”
“O que estás a fazer, Fantasma? Deixa-me da mão!”
Na segunda metade da década de 80, um menino ficava horas – horas, sim, digo-o sem hipérbole – de olhos colados a uma montra no final da Rua Ivens. Via e estudava e comparava uns bonecos de acção, paradigmas de estilo e de bravura bélica – concentrados em pouco menos de 10 cm de altura e petrificados em invólucros de cartão e plástico transparente. Mais tarde, quando pôde, o rapaz foi usando a semanada completa para comprar um ou outro ‘G. I. Joe’. Depressa, porém, fugiu-lhe o entusiamo por entre os anos da idade que ia a galope. E a esta fuga juntou-se uma tristeza inexorável – que o rapaz tentou mitigar interrogando as caras mumificadas dos bonecos. Era uma tristeza de quem chega tarde.
A meados da década de 90, um adolescente regressava a casa, numa noite, após um dia de escola e de trabalho. Ia sentado, numa das cadeiras de plástico do fundo solitário do autocarro amarelo, moldando o corpo aos solavancos. Deu por si a pensar no dia, na noite, na vida. [O que pensou ficou-lhe sulcado na mente – como se de repente um prelo tivesse começado a imprimir ou uma chama tivesse lavrado uma queimadura; por isso, quando quer, quando não quer, este jovem é sugado de volta a essa noite.] Pensava que estava cansado, combalido, que estava sozinho – e que havia graça e bondade em estar cansado e em estar sozinho para desfrutá-lo. Pensou que era merecedor de um resto de noite de descanso, que havia contentamento apesar de descontentamento – e que, no futuro, voltaria às curvas cada vez mais difusas desta Estrada do Visconde Cacongo, a caminho do Jardim Botânico, a caminho de uma casa que hoje está soterrada.
Coloca-se a ficha na tomada e surgem as vestes luminosas do pinheiro de Natal. São as luzes de 2017 que olhamos – e são as luzes de 1987 que nos olham de volta. Os olhos piscam com as gambiarras e com a luz do filme na televisão – e rapidamente ficam cansados. [É uma maçada.] Desligamos o pinheiro até acabar o filme. Ligamos. Desligamos quando o sono desmerecido sobeja – há que poupar na conta da luz porque, na verdade, a vida está difícil. [Em 1987, em 1997, as luzes ficavam a fazer companhia ao Menino Jesus no presépio.]
Passam os anos, passam as Festas [ou os Natais]. Mudam os marcos do tempo, muda a substância do tempo – tiramo-lo de um lado para pôr noutro, subtraímo-lo além, acrescentamo-lo aqui. Mas o resultado deste cálculo parece ter um destino inexorável: diminuir, chegar a zero, desaparecer – assim como vi desaparecerem os entusiasmos, os contentamentos, de outrora.
“O que andas fazendo, Mascarilha? O que estás a fazer, Fantasma?”

[Crónica publicada no JM, 23-XII-2017, p. 17.]