sábado, 27 de maio de 2017

Crónica 76 [O Carvoeiro]

Ele levantou o copo e segurou-o entre os olhos e a luz difusa do tecto: “Olha, vê como ‘tá clarinho. Isto tem parte de americano e parte de canim.” Disse isto e engoliu de uma vez, de boca e garganta abertas, o quarto de litro. Depois bateu com a base do copo na mesa, baça de sebo. “Pega mais”: e, do garrafão de plástico, deitou num copo pequeno – já não de quarto de litro – do mesmo vinho. Tentei impedir – ele não fez caso. Tentei alvitrar uma escusa – mas subiram-lhe os cantos da boca, contraídos de desaprovação. “Vai, bebe.” Eu bebi – e ele narrou. 
“Contaram-me, quando era pequeno, que o meu bisavô, parece-me, naqueles tempos dos antigos…”
O bisavô, ou outro ascendente para ele remoto, subia sozinho às serras, sem dizer a ninguém o destino concreto. Levava semilhas e inhame – sempre coisa pouca para uma jornada de tempo e desfecho incertos. Procurava um lugar de boa e alta vegetação – o mais encoberto possível. Ali trabalhava e dormia os dias precisos. Cortava uma ou duas árvores; abria um buraco na terra; deitava nele as árvores defuntas e ferrava-lhes lume. Logo que as labaredas levassem bom avanço, jogava-lhes terra em cima – de jeito a fazer uma fornalha subterrânea, vagarosa e fumarenta. Era um alquimista desesperado, esfomeado. Da madeira ele queria fazer carvão.
E carvão haveria de ter – para vender, na cidade –, contra a lei e os outros homens: os fiscais; os pastores com o gado e os camponeses que vinham recolher lenha. Contra, afinal, todos os estupores malditos – diria ele com certeza –, que deviam se meter na vida deles e não impedir um homem de matar a fome. [E também a sede – parte do dinheiro ganho seria deixado em tabernas de vinho e aguardente.]
Este homem tentava passar despercebido nas serras – como se fosse uma versão obscura de um fauno. Mas era difícil: do lugar onde exercia o seu múnus subia fumo; até, por vezes, um qualquer descuido tornava a floresta em redor num viveiro de labaredas; e, no fim da tarefa, recolhido o carvão, ele virava costas a uma cavidade vazia e enegrecida na terra, que assim ficava como o vestígio de um qualquer ritual pagão.
Por isso, na verdade, acabava-se por saber que havia um carvoeiro na serra. E, da mesma forma que ele entrava, tentava sair – rapidamente e sem estardalhaço. Trocavam-lhe, todavia, numa ou noutra ocasião, as voltas. Num dos primeiros regressos sofreu uma emboscada por camponeses – um magote deles. Não alcançou a sair ileso – duas foices, em mãos diferentes, abriram-lhe um talho no braço e traçaram-lhe, na testa, uma linha que se tornou cicatriz contínua, profunda, roxa, como uma segunda fileira de sobrancelhas. A realidade é que, ou por fome, ou por vingança, este homem – ou outro como ele, também de mãos negras – deitava por vezes a mão a um cabrito transviado.
O meu interlocutor parou a narração e deitou mais vinho nos copos. Eu estranhei a abundância de pormenores relativos a um passado que ele não tinha presenciado. Ele disse que sempre gostou de ouvir histórias e que esta, em particular, era-lhe cara. E assim acrescentou: “Parece-me que até podia ser eu, não é? E quem é que ia se pôr a julgar?”
E rematou, usando palavras que eu não esperava e que não recordo com exactidão – talvez por causa do vinho. Mas a mensagem era esta: havia, nas entranhas esconsas desta terra, um ódio feito de disputa, transgressão, vigilância, sangue e lume. Havia – e há, nas entranhas e na superfície.

[Crónica publicada no JM, 27-V-2017, p. 2.]

sábado, 13 de maio de 2017

Crónica 75 [Cães]

Ponho no papel alguns fragmentos rasgados de histórias.
Um homem confessou que, quando jovem, poucos momentos lhe eram tão gratos como aqueles em que se refugiava no quarto – a virar fólios de poesia – acompanhado do seu cão, que ficava deitado na cama. Eram audíveis apenas as respirações sintonizadas de ambos, homem e animal, em comunhão silenciosa.
Uma avó avisou os dois netos – o cão já não tinha direito a um lugar entre a família. A roupa no estendal havia sido passada pela máquina trituradora dos caninos do bicho. Portanto, o cão teria de ir embora – e que eles, os meninos, ficassem cientes disso. Eles arregalaram os olhos de medo; porém, minutos depois, estavam ocupados com brincadeiras, com outros pensamentos. Um dia deram pela falta do cachorro mas concordaram, sem preocupação, que andaria nas vizinhanças a deambular – e que voltaria, como todos os dias voltava, para casa. Desceram à cidade. De dentro de uma carrinha – o veículo do canil para transporte de animais –, um cão, que reconheceu as suas vozes, largou a ladrar com desespero. Foi a vez de os meninos reconhecerem, com comoção: era o seu cão que ladrava, que ali estava em prisão, que de casa tinha sido expulso, para sempre.
Um rapaz a entrar na puberdade era alvo de zombaria pelos rapazes mais velhos da casa ao lado. A zombaria tornou-se violência – davam-lhe um carrolaço furtivo quando passava na vereda de terra batida. O rapaz foi aguentando, calado, durante meses. Na volta de um dia de escola, encontrou na vereda o cão dos vizinhos – uma bola inerme de pêlo que mexeu a cauda quando o viu. Aos olhos dele, o animal pareceu patético. Pensou o rapaz, furibundo, que não era tarde nem era cedo. Seria aquela a sua vingança. Puxou a culatra do pé atrás e deu um pontapé – como se quisesse chutar uma bola de futebol pelos ares – na mandíbula do cão. Ouviu-se um som único, metálico, de osso contra osso, de dentes a bater em dentes.
O adolescente tinha exames nos dias seguintes e estudava os manuais, como peripatético solitário, no quintal da casa. Solitário, não – o cão da família estava deitado à sombra e virava o focinho para o deambular do estudante, o qual, por sua vez, para fazer a revisão da matéria, olhava para o cachorro e explicava em voz alta. O bicho abanava a cauda e fazia subir e descair as orelhas. Anos depois, a mãe ligou ao jovem adulto, que já estava na universidade. O cão tinha-se arrastado até à porta de casa e aí havia tombado, a espumar. Tinha sido envenenado.
[Como acontece amiúde nestas crónicas – nestas histórias –, começo por querer narrar coisas suportáveis, contentadas. Mas os dedos sobre o teclado acabam por dedilhar palavras outras. Neste caso, e em substância: digo o que vi – e o que vejo; falo do que me contaram – e do que me contam. Há cães soltos e desguardados; cães assustadiços e de olhos aflitos no meio do asfalto após as chuvas; cães abandonados longe do lar, para que não encontrem o caminho de volta – que perseguem, nos primeiros quilómetros, o carro que o dono, de olhos no retrovisor, faz acelerar; cães acorrentados; cães presos por correntes curtas e apertadas como garrotes; cães com correntes que lhes corta a carne; cães atolados em imundícies; cães de pêlo a cair, de peles despregadas dos ossos. Cães – que, na sua desgraça, são vítimas e testemunhas do atraso civilizacional dos homens.]

[Crónica publicada no JM, 13-V-2017, p. 2.]