sábado, 10 de novembro de 2018

Crónica 110 [Os Fugitivos]

A mendiga parou à porta da boutique de pão – a mão encarvoada pousada no cabelo da sua menina, penteando os caracóis pretos. Pararam, olharam, viram prateleiras de pães alvos e pardos, vitrines de bolos luzidios de açúcar, chávenas de café com leite de onde serpenteavam fios de calor. Mãe e filha escrutaram as pessoas – que satisfaziam a fome, o desejo, o vício do convívio fátuo. Um casal mirou de volta, a medo temperado de incómodo, de repulsa; tentaram suportar a visão da parelha famélica, do lado de lá do vidro, durante minutos. Levantaram-se. [Cafés e sandes ficaram incompletos sobre a mesa.] Não aguentaram a penúria. Não ajudaram. Debandaram. [Há vidas duras – pensaram, já longe; e referiam-se a si próprios – que não puderam comer em paz, sem espectros esquálidos de olhos sobre eles.]
O homem fazia o que queria – era uma máquina perdulária de combustão rápida alimentada por caprichos. Em resumo, a sua vida: vários carros de chapa torcida; uma perna levada à faca e feita mais curta; estudos, vários, interrompidos; quatro ou cinco empregos sucessivos para matar o tempo; relações talhadas à medida das horas correntes; recusa em meter ombros a compromissos, em levantar fardos; actos e opções como zurrapa passageira em pipa rota – nunca cheia, sempre sedenta. Todos viam isto: o pai baixava os olhos e deitava o medo do confronto, em estilhaços, na tijoleira da sala; a mãe escapulia-se para o quarto do lado; o irmão não perguntava e metia-se no computador; os amigos riam-se, nervosos. Todos temiam dizer – mostrar – arrostar – puxar a máquina para os carris. [Ele guardava-lhes rancor quando berrava em silêncio nas manhãs de ressaca; não perdoava a omissão dos fugitivos que viam a sua dissolução; queria mãos – podiam ser garras, ou arpões – que o resgatassem. Eles, nas suas tocas, não davam fé. No fim de contas, cada qual estava só consigo, cada um permanecia metido em si mesmo.]
A menina sentou-se à mesa, para o almoço de família do domingo. Olhou, cheirou e fez cara de trovão. Disse que não – aquela comida, não. Começaram os familiares a desenrolar mimos, palavras melosas em bocas de bico doce, promessas de recompensas, exortações temerosas, trejeitos ansiosos. A menina exigiu ovo, salsichas, batata frita, sumo de maçã; desfez, em cacos, no chão, um copo; a pulmões estridentes encheu a sala e os ouvidos; ameaçou a mãe, de punhos afiados; pontapeou o pai, que se levantou; esgadanhou a irmã mais velha, que a tomou nos braços; insultou o avô, feio e tonto, mordendo gemidos inaudíveis. Toda a gente se evadiu – a mãe e a avó para os tachos da cozinha; o pai para o supermercado; a irmã para o telemóvel; o avô também.
Ele tinha feito planos para um negócio. Convocou família, amigos, conhecidos. Ouviu incitamentos como estribilhos e frases feitas de entusiasmo. Planeou; deitou mãos à obra; terçou com as armas que tinha – trabalho, o seu pouco de discernimento, o seu quinhão de desesperança, meia medida de ilusão. Quando a coisa começou a dar no porco, ouviu, atónito, de algumas das pessoas que tinha convocado: “Pois, eu não te disse na altura, não queria ser pedra no teu sapato, mas aquela opção que tomaste eu sabia que não era a melhor...”; “Eu era p’ra te dizer, mas depois esqueci-me, quando disseste que ias fazer assim e assado, se calhar havia outra forma...”; “Não te importes, eu vi que se calhar era demasiada areia para a tua camionete, não me leves a mal dizer isto assim, sou teu amigo, mas o que interessava era tentares e eu não queria que me levasses a mal se não te apoiasse...”
[Cá estou, de novo, a carregar nas tintas frias do mundo.]
Portanto: omissos – derrotados pelo conforto – pelo sossego frívolo – pela felicidade sôfrega – abstracta – covardes – fugitivos – presos em jaulas individuais – desalojados do tempo oportuno – nós – todos – deslassados – peças de um jogo – desirmanado – de regras intransitivas.

[Crónica publicada no JM, 10-XI-2018.]

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