sábado, 24 de novembro de 2018

Crónica 111 [Comunhões]

O homem suspendia o fôlego – para não dar tréguas ao desvio da atenção, medindo forças com a concentração esquiva. Cessava a respiração durante segundos imperiosos, cerrava os olhos sobre o barro nu – desprovido, ainda, de formas reconhecíveis, mas já plenamente burilado na sua cabeça. E punha as mãos a moldar. Os serões passava-os deste jeito – a uma mesa de trabalho na loja de ferramentas ferrugentas e cheiro velho a vinho seco. A mulher – entre outras distracções indesejáveis – vinha deitar sentido: jantar; companhia para ver a novela; a cadeira vazia ao lado do filho que precisava de ajuda nos cálculos; dois ou três recados com língua rápida entre o abrir e o fechar da porta. [“Ah, ‘tás aí outra vez...”; “É sempre esta conversa, agora – sai do trabalho e vem a correr p’ra casa fazer bonecos”; “Gostas mais disso do que...”] [No dia da comemoração das bodas de estanho, o homem ofereceu à mulher uma miniatura de ambos com trajes de casamento. A mulher agradeceu com estas palavras: “Tem diferença… do meu vestido. E a gravata que tu levaste… tinha outra cor.”] Tirando raras ocasiões, este casal via-se de manhã e encontrava-se à noite – ele, de pés gelados, na madrugada, acordando a mulher no segundo ou terceiro sono.
           
Este outro homem, na mesma rua, no prédio um ou dois números abaixo, ouvia de noite para vociferar de dia. Queixava-se de ouvir bater martelos, de sentir arrastar mobílias, de perceber gente a rir e a falar, de escutar uma criança a chorar. [Os vizinhos há muito que não lhe davam troco.] Como seria de esperar, dormia pouco – e dormia mal. Deitava-se na cama e, para receita de descanso, só conhecia esta – apurar os ouvidos como sentinelas na noite bélica. Uma vizinha, mãe solteira, viu-se obrigada a rechaçá-lo, num sábado de manhã. “Onde é que já se viu, uma pessoa mandar vir, protestar por causa de um bebé durante a noite? O senhor pensa no seu que ‘tá certo? O senhor não tem juízo? ‘Tá louco?” [Por detrás da mãe, num andarilho, o bebé sorria, curioso, e levantava os bracinhos.] O homem retirou-se, vexado, rangendo dentes durante toda a manhã; deitou-se, cansado, apagou a luz da mesa-de-cabeceira e, sem dar conta, expulsou da guarita as sentinelas. Nas noites seguintes, não se importou com o choro – ou com os outros barulhos verdadeiros ou imaginários. Pode parecer insólito – mas começou ele a sentir uma estranha comunhão com a criança que ouvia. [É insólito – e humano; do sofrimento – e de uma criança – pode emergir um dever de comunhão.] Dias depois, voltou a descer até ao piso de baixo, pediu perdão com mesuras de cavalheiro e ofereceu uma prenda para o bebé.
           
O terceiro homem vivia no piso alto do prédio. Era um misantropo noctívago atacado de afasia. [De noite, de longe a longe, arrastava o sofá da sala – nunca satisfeito da esquadria na geometria da sala; e relembrava velhas músicas da adolescência numa viola com a terceira corda – a de Sol – sempre desafinada.] Fora o trabalho onde se arrastava como um sonâmbulo indefinido, dedicava-se a noites frenéticas – a nutrir inimizades na tela do computador, nos fluxos das redes sociais. Eram rixas ideológicas, polémicas mórbidas, argumentos capciosos, rancores levianos, insultos verborrágicos – vícios podres; com verbo gongórico no teclado, ainda que grunho na fala, de toda a gente – amigos, conhecidos e desconhecidos – fazia inimigos: todos estúpidos, claro está, todos ignorantes. [Eram inimizades imaginárias – de sentido unilateral. Ele achava que tinha inimigos; os “inimigos”, volvidos os primeiros tempos, não mais se lembravam dele.] Depois de uma noite de refrega e de injúrias, este homem foi obrigado a usar as escadas do prédio. [O elevador não funcionava.] Dois ou três andares descidos, deu de caras com um vizinho, em quem nunca tinha reparado – talvez lhe tivesse rosnado em resposta a um cumprimento, algum dia. O vizinho, reconhecendo-o como o ofensor no Facebook [ou noutra coisa qualquer] na madrugada passada, não teve freio; deu-lhe uma cabeçada no nariz; e foi-se embora. Pode parecer estranho – mas à medida que as tonturas se iam dissipando, o homem, no chão, sozinho, começou a sorrir.

[Crónica publicada no JM, 24-XI-2018.]

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