sábado, 17 de fevereiro de 2018

Crónica 95 [Destino]

Há um funcionário medíocre, encafuado por detrás do balcão entre impressos a esvoaçar pela repartição, de olhos vesgos e beiças brutas; amiúde, lembra-se ele do aluno brilhante que tinha sido outrora.
Há um homem levado sempre ao colo – do hospital onde nasceu aos corredores do emprego e do partido –, escondido do seu próprio demérito, à força de cunhas metidas e palavras de patrocínio; esse homem acabou por ser diligente, bondoso, afável – uma fonte de serviço útil e benfazejo aos seus pares. 
Há uma mulher que sonhou com a maternidade – mas que só pode ser mãe para os sobrinhos, os amigos, os pais, os tios.
Há um aluno que partia pernas de cadeiras, que pintava mesas e paredes com “gamses” de cores desfalecidas, que batia nos mais moços, que fugia das professoras e da mãe, umas e outra de régua e cinto na mão – e que veio a ser um empresário de sucesso, benfeitor da comunidade, parlamentar de verbo torneado e aguerrido.
Há uma família modelo – filhos que obedeciam e respeitavam, mãe que dirigia e cuidava, pai que protegia e providenciava; anos mais tarde, as fundações da família caem em ruínas para dentro da casa – um filho racha a cabeça a outro filho, por causa de dinheiros a haver e partilhas quebradas; toda a prole tem por desporto verbal predilecto jogar as culpas da vida envenenada para cima dos pais velhos divorciados de fresco.
Há um pai que bebeu, gastou, roubou, insultou, maltratou, que desapareceu – e apareceu corroído de tumores nas entranhas podres; no hospital, a filha visita-o todos os dias – constante vigilante à cabeceira; a filha junta as suas lágrimas às do pai.
Há um amigo que é amigo, que diz que é amigo, que sempre soube o que era o melhor para os seus amigos, que por eles fazia e faz tudo – mas que não tem amigos.
Outro homem, desde o início, não se importa com amigos – calcula e dispõe, selecciona e desgasta, faz dos outros instrumentos; a este homem não faltam, porém, auxílio, dinheiro, favores, refúgios de portas abertas e caminhos atapetados de escarlate. [Quem uma vez disse que este rei ia nu – que todos viam, cegos, vestes de seda dourada onde só havia nudez e artifício – foi de pronto proscrito.]
Finalmente, há um homem que cresceu numa casa onde as bebidas alcoólicas corriam mais abundantes que o leite – que a água. Pensou, decidiu-se – disse-o até, um dia, em voz alta, sozinho: nunca. Hoje emborcava – sozinho, escondido, plácido, pacífico – quase uma garrafa de uísque por dia.
De um ponto a outro ponto estende-se uma linha – o mais direita possível para que se possa extrair um sentido desta geometria, desta vida. O ponto de partida tem já em si – iludimo-nos nós, eternas crianças – o gérmen da chegada. Mas a verdade é que não: não há conclusões tiradas inscritas previamente em premissas oferecidas; não há berços dados que correspondam a caixões determinados; não se sabe aonde se vai chegar – não se sabe, por vezes, de onde é que se partiu. Pontos / linhas / direituras / sentidos / partidas / chegadas / premissas / conclusões – meras ilusões. [Ilusões e filosofia de três tostões – como a que está nesta crónica feita de pressa e frivolidade.]
A verdade é que não temos destino.

[Crónica publicada no JM, 17-II-2018.]

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