sábado, 6 de janeiro de 2018

Crónica 92 [Palavras]

São simples, não custam nada, estão aí prontas a usar – as palavras dos últimos dias correram, e correm algumas ainda, desemaranhadas e crédulas. [Feliz – Santo – Bom – Natal / Boas – Festas – Entradas – Saídas / Feliz – Bom – Excelente – Ano – Novo.]
Com elas, com elas apenas, vem locupletada a promessa de mudança – assim pensamos, numa época que não se quer melancólica, preocupada, prosaica; e assim ficam descansados e encantados corpos, bolsos, consciências e razões.
Mas palavras há que são engodo, engano, evasão e álibi.
Eu não quereria trazer à liça a impertinente – equivocada e ilusória – destrinça entre palavras, ditas e escritas, e acções. Mas para esse caminho vão, sem cessar, os meus passos mentais – porque nunca, até hoje, alcancei mais e melhor. [E o que alcanço digo-o agora – lá está – em palavras de crónica.]
Mas parece-me que a verdade é esta: dizemos e escrevemos [– e infectamos o silêncio]; controlamos e domamos as palavras; aligeiramos, deste modo, a imperiosidade e o controlo dos actos; esquecemo-nos de fazer, de agir, quando o ar é agitado por votos e pregões beatíficos e bem-querentes; pomos ditos e escritos a fazer as honras da casa, a fazerem a vez – a serem competentes simulacros; livramo-nos de fardos que haveriam de pesar uma vida inteira no prato menos polido da balança.
Ouve-se e lê-se – ou melhor, ouço e leio – e, Deus me perdoe, não consigo deixar de pensar: que quem somente tem palavras nada mais tem – e, com efeito, de nada mais necessita; que há homens e mulheres que desfraldam muitas palavras – e cuja conduta constitui a melhor refutação para as palavras desfraldadas.
Nesta Festa – porque já vou ditando esta crónica aos dedos como quem dá a mão a Sísifo, viro aqui o meu leme – vi coisas de que quero falar.
Vi um sacerdote idoso, numa igreja, a ensaiar crianças com cordofones sobre os colos. De dedo descaído solicitava atenção, pedia a afinação de uma corda dupla, ajuizava do acerto de uma melodia tocada a solo. Falava, mas falava pouco. De velhas mãos maestras, num lado, e de dedos novos a calcar cordas e braços de madeira, no outro, haveria de brotar música.
Vi uma criança a fazer festas na cabeça e na cara de um primo mais velho – bem mais velho, à beira da uma quarentena de anos. Não era costume – não tinha sido costume nos últimos anos – e o homem ficou perplexo, incomodado até, mas não se atreveu a dissuadir o infante.
Vi outra criança que não se importou de receber uma prenda poucochinha e utilitária – duas folhas de dinheiro, simples e coloridas na sua frieza. Vi a criança agradecer como se grande oferenda fosse – e agradecer usando palavras tão-só como acrescento, como reforço.
Vi um rapaz dar um bocado de bolo de chocolate – penso que era bolo; e seria de chocolate – a um cão abandonado que abocanhou a dádiva completamente.
Palavras há que são empecilhos.
E há palavras que trazem, na Festa, advertências e alertas – como muitos sentirão – inoportunos. Escutei uma mulher dizer que as pessoas são esquecidas; e que lhes fazia bem lembrar e conhecer as fomes e os abusos de algumas elites sebosas e abrutalhadas que havia antigamente. 
[Já me ia no esquecimento – no que toca ao direito e ao dever de desejar, para mim e sobretudo para vós, também sou gente, também sou filho de Deus. Portanto – um Bom Ano Novo.]

[Crónica publicada no JM, 06-I-2018, p. 15.]

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