segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Crónica 36 [A Festa]

O Natal na Madeira, ou a Festa – assim mesmo, com éfe grande, como ainda é designada, sobretudo nos meios rurais, a quadra que por estes dias se inicia, e que vai das Missas do Parto até os Reis ou, melhor, o Santo Amaro.
O nome “Festa” tem sido cada vez mais substituído pela denominação “Natal”. Mas o que é madeirense é a Festa. E de que é feita? Todos nós o sabemos.
Das casas limpas como só nesta época, e abertas aos visitantes, que perguntam se “O Menino Jesus mija” – ou seja, se há algo para molhar a garganta; das Missas do Parto; da Missa do Galo – da eucaristia no espaço do templo e do divertimento no espaço do adro; dos licores de vários sabores e cores; das broas de diversos sabores e feitios; do bolo de mel; do perfume das tangerinas; das searinhas; da carne de vinho e alhos; das lapinhas – as rochinhas com papel pardo ou as escadinhas com o Menino Jesus no topo; da lapinha que, como escreveu em 1957 Antonino Pestana, um escritor da nossa terra, «é pejada de anacronismos, mas […] alegre, viva, rica de verdura, farta de frutos […]; [e] traduz a beleza da nossa terra e a alma da nossa gente»; dos sapatinhos; do pinheiro a enfeitar as casas; das gambiarras; da exuberância das luzes nas ruas do Funchal; e de muito mais. [Já agora, uma sugestão de leitura: o relevante artigo de Nelson Veríssimo, «Natal madeirense», na revista Povos e Culturas, n.º 11, 2007, pp. 79-86, e disponível online.]
A Festa, pois, feita: de mudanças; de permanências; e de memórias, em especial da infância.
Também tenho as minhas. Ajudar a enfeitar a lapinha, inserindo nela, junto de um elenco já de si feito de uma mescla de figuras sagradas e profanas, os meus bonecos de acção G. I. Joe – acto criticado, mas tolerado como só às crianças se tolera. Comprar as prendas com a minha mãe – incluindo os brinquedos. Ouvi-la contar como o Natal, quando ela era criança, compreendia sempre uma ida à mercearia para comprar o que não se podia consumir no resto do ano: uma bola de queijo, cacau em pó e alguns – mas parcos – doces. As sandes de galinha e a canja oferecidas pelo meu pai, no seu bar, aos clientes que saíam da Missa do Galo na capelinha de S. Paulo, na Carreira. Acordar no dia de Natal e saborear uma sandes de carne de vinho e alhos para o pequeno-almoço. Ver o filme Die Hard 2, ou Assalto ao Aeroporto, de 1990, com o actor Bruce Willis, e adormecer a ouvir cantar a música final, “Let It Snow”, cantada por Vaughn Monroe: “Oh, the weather outside is frightful, / But the fire is so delightful. / And since we’ve got no place to go, / Let It Snow! Let It Snow! Let It Snow!”. [O que seria da minha geração sem televisão?]
E ouvir, hoje e na minha meninice, as pessoas dizerem: “Já lembra o Natal”; ou “Já lembra a Festa”. Esta expressão integra, pelo menos, dois significados, dois fenómenos, duas atitudes. Em primeiro lugar, a lembrança do Natal tal qual era vivenciado na infância e na juventude – naquele tempo em que não havia horários, em que o tempo não era regateado. E, depois, o estabelecimento de um marco de festividade no tempo cíclico anual, suspendendo, tanto quanto possível, a rotina e as agruras de que foi feito o ano que termina – e que passou depressa – e de que será feito o ano que começa – e que ainda mais depressa passará.

[Crónica publicada no JM, 12-XII-2015, p. 2]