segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

Crónica 66 [O Menino]

Acordou o menino; esfregou com os canhotos da mão a pálpebra esquerda, fazendo deslocar do seu lugar passageiro uma ou duas ramelas. Abriu bem os olhos claros. [Também poderiam ser castanhos estes olhos.] Pressentiu alguém na cozinha e levantou-se. Os aromas que enchiam este apartamento – que, pelo contrário, poderia ser uma humilde choupana – fizeram-no atirar-se certeiro, com os pequenos pés a bater completos na tijoleira – ou no chão de terra batida –, à mãe que cozinhava. Parou diante da progenitora, aprumado como um pequeno soldado às ordens do oficial, de queixo subido em esquadria com a ponta do nariz. Parou – e sorriu. [À espera: de um afago; e de uma taça de Chocapic com leite morno – que bem poderia ser, ao invés, um pão ázimo, quente e achatado, coberto de mel.] A mãe elevou-o até ficarem ambos nariz contra nariz. [Depois abraçaram-se.]
No escritório do pai – que poderia igualmente ser uma oficina de carpinteiro –, ficava por detrás da porta entreaberta a olhar para o interior, para os gestos do homem que folheava um dossier – ou que manejava uma plaina sobre uma tábua. [Fosse como fosse, caíam ao chão, sempre, papéis mal agrafados ou aparas finas de madeira.] O menino vigiava, vinha eu dizendo, o pai; e este, sentindo-o, voltava-se já sabedor da traquinice. A criança voltava a recolher-se atrás da porta, deixando todavia entrever o seu pequeno semblante, que oscilava para a frente e para trás, ora descobrindo-se, ora ocultando-se. O pai erguia-se e dizia em voz alta: “Quem é que ‘tá aqui? Quem é?” [Isto poderia ser dito em português ou, vá lá, em aramaico.] O miúdo levava a mão à boca, para abafar o riso. O pai abria a porta e alçava aquele corpo franzino, de tez clara – ou morena –, até ficarem ambos nariz contra nariz. [Seguia-se um abraço.] Depois, o pai libertava alguns minutos do trabalho e construía, para a criança, a partir de sobras, uma fisga – ou um origami.
Na cidade, ou no meio do deserto poeirento, esta trindade – pai, mãe, filho – passeava após cumpridas as obrigações religiosas. [Num domingo, pois; ou num sábado.] Encontraram uma família vizinha, outra trindade – pai, mãe e filha –, a quem cumprimentaram e com quem desfiaram um cordial novelo de prosa. O menino reparou na menina, de cabeça baixa e com uma lágrima, como um losango, a escorrer-lhe pela bochecha rosada. [Era uma carinha de camacheira a da menina – poderia, de igual forma, ser uma carinha trigueira.] Os vizinhos disseram que havia feito birra e que com ela tinham ralhado. O menino, que ouviu isto de olhos arregalados e pregados nos pais, pois sabia que também ele fazia birras – por causa de um tubo de Smarties ou uma mão-cheia de tâmaras –, aproximou-se da menina. Baixou a cabeça – o que lhe era raro –, afagou a bochecha molhada e aí lhe deu um beijo. Levantaram ambos os rostos e sorriram.
Os adultos não tomaram sentido desta cena – como também não deram fé de que, logo, se afastou o menino em direcção a um homem sem-abrigo, de cara flagelada pelo álcool – que poderia, como um fac-símile, ser outrossim um leproso de andrajos manchados de cor tinta. O menino parou, a um metro e meio desta figura de mão içada em concha, de quem todos se afastavam, e estendeu a mão – alta. O pai, que acabou por ver, deu um salto e veio recolhê-lo.
Esta criança poderia existir na Madeira contemporânea – ou na Galileia de há cerca de dois mil anos.
[Na véspera do Dia, é esta a minha crónica. Feliz Natal.]

[Crónica publicada no JM, 24-XII-2016, p. 2.]

sábado, 10 de dezembro de 2016

Crónica 65 [Duas Histórias]

O veículo branco cruzava as águas negras do asfalto. Quase tudo, naquele caminho, naquela ruralidade, era noite. De longe à lonjura, alguns oásis luminosos surgiam – postes de luz que deixavam perceber melhor linhas ora descontínuas, ora contínuas, acácias, eucaliptos, novelos. Ali, não era a escuridão que constituía o intervalo da luz. Ao casal que viajava somente restava confiar nos faróis vagarosos para aclarar a vista e expurgar destas profundezas caóticas algum rumo. Iam, ele e ela, em sossego, conversando, maravilhados pelo negrume primordial. Andados alguns quilómetros, entraram numa curva apertada de ângulo e de visão – entre as várias em que a estrada era pródiga – e ele, o condutor, obrigou-se a parar a navegação. [Não houve travagens ou guinadas bruscas.] Em cima da curva, no meio do caminho, estava uma figura – um homem, vestido de um preto total; ao lado dele, um animal, um cão – também de um preto incessante. [Estes entes existiam porque tinham contornos – pouco mais. Outro carro teria abalroado esta parelha sem cuidado.] Nem maravilhados já, nem assustados ao princípio – ficaram os viajantes estranhados com a aparição. O homem descoberto, de flanco para o carro, olhou e arreganhou os dentes, que surgiram alvos à luz dos faróis. [Mais tarde, o casal ainda discutiu, por várias vezes, se aquele sorriso era sardónico ou complacente ou zombador.] Ele, o condutor, ainda abriu a janela e disse: “Chefe, cuidado com a curva.” Ela exigiu logo que a janela fosse fechada e que se fizessem ao remanescente da estrada. O vulto foi se afastando, devagar, para o cotovelo interno da curva.
O barco de pesca – um atuneiro – regressava com a exaustão a lhe ranger no cavername satisfeito de peixe. Era noite, e os homens do mar, afora as excepções necessárias, dormiam. Ali, naquele atlântico fora do tempo, não havia longe nem perto. A luz que havia vinha de dentro daquele viajante colectivo. E assim a proa ia andando – dividindo o caminho negro que ora se alterava, ora colaborava na jornada. Um velho pescador, a sofrer uma insónia súbita ou esperada, levantou-se do beliche, colocou o boné na calvície, e subiu das entranhas do barco até se descobrir ao ar salino. Postou-se a estibordo e fincou as mãos na borda do casco, com os contornos do castelo de proa nas suas costas como uma presença ensombrada. Assim ficou, durante vários minutos. Subiu, então, a borda, e começou a urinar no mar. Esta tarefa costumeira, enfim, não lhe ofereceu – nunca lhe tinha oferecido – perigo, mas a verdade é que uma oscilação maior do atuneiro precipitou-o ao mar. Ninguém havia dado conta. O homem não gritou. [De que lhe serviria?] E o barco continuou o regresso. Andadas poucas milhas, um dos companheiros subiu à popa e pôs-se a olhar, habituando os olhos às oscilações ténues entre as trevas do mar e o ocre da espuma das ondas. Guinou, com brusquidão, a cabeça e cerrou os olhos. Viu: um boné, quase indistinto, nas águas, que caminhava sobre a ressaca deixada pelo barco. [Tempos depois, ao pensar nestes acontecimentos, disse que lhe pareceu que o chapéu perseguia o barco.] Deu o alarme – homem ao mar. Toda a gente acordou – toda a gente se sobressaltou. Por mais que parecesse impossível – e parecia, ou era, segundos alguns –, no mar sem fim, ter sucesso na descoberta do companheiro caído, o barco inverteu a marcha. O pescador foi encontrado.
[Aqui ficam estas duas histórias – de viagem e vigília; de sorte e insólito.]

[Crónica publicada no JM, 10-XII-2016, p. 2.]