sábado, 31 de março de 2018

Crónica 98 [Passagem]

Era um homem que só fazia o que lhe dava na gana.
Trabalhava o que havia a trabalhar – devagar, com um fio pouco amolado de brio, mal afiado de compromisso. De resto – pois, de resto, era cigarros, ganzas, noitadas, discotecas, mulheres e bebedeiras de focinho bem atacado e manhãs do dia seguinte de cabeça a pulsar como o badalo de um sino. Para um vintão, enfim, era uma vida de sonho.
A mãe dizia-lhe, a avó dizia-lhe, o tio solteiro – um valdevinos saído do mesmo molde que ele – dizia também. [O pai – o pai era morto.] Diziam-lhe: a juventude é boa, é p’ra se viver, mas cuidado – era preciso deitar sentido às coisas, pôr a cabeça no seu lugar, não descarrilhar, tomar responsabilidades. [Etc.] O tio solteiro acompanhava este discurso com sorrisos matreiros. [Era uma forma de se expressar – incompetente, sim, mas verdadeira na mensagem. O tio conhecia bem estes caminhos – porque, na verdade, nunca tinha tomado outras derrotas.]
Ele ia respondendo: “‘Tá tudo controlado. Não há problema. Não faço mal a ninguém.”
Um dia, o tio – que a espaços lançava mão do seu alforje de leituras mal digeridas – perguntou-lhe: “E neste tempo de passagem, o que vais andar a fazer? Encher as ventas outra vez, não?”. Ele: “De passagem?” O tio: “Sim, passagem, a Páscoa, crucificação de Nosso Senhor, ressurreição, passagem – de um lugar para outro, da morte para a vida.” Ele sorriu. O tio, depois de servir mais dois copos de uísque: “Tu nunca lestes a Bíblia, pois não?” Ele: “E o tio já leu? Tem lhe dado muito jeito?” – e riu-se. O tio: “Tu tens uma vida despreocupada, rapaz. ‘Tá bem. E não tens nada de que te arrependas?”
Ele ficou quieto: um estilete aguçado de memória tocou-lhe nas costas. Sem freio, contou ao parente mais velho acerca de um tormento.
Uma tia e um primo mais novo costumavam visitá-lo e à mãe. Eram pobres, tristes, nervosos, calados. A tia ficava a um canto – ouvindo as repreensões da mãe pelas escolhas mal discernidas. O primo mais novo procurava-o – entrava de manso no quarto, levado da curiosidade e da esperança de ter um amigo com quem pudesse jogar no computador. Ele, nessa sexta-feira, frustrado com qualquer frivolidade, irritado pelo incómodo, enxotou o primo com violência – fazendo-o embater, com as costas, na aresta aguçada do alumínio da janela.
“Primo?”
“Sai daqui!”
Isto contou ele ao tio. E o tio disse: “Para culpa, não é nada mau. Já é um começo.”
Era a Páscoa, de novo. Na sexta-feira, a mãe falava alto ao telemóvel. Ele perguntou: “O que é que se passa?” A mãe: “A tua tia ‘tá aflita e aos gritos. Teu primo levou p’ra casa uns gandulos – já não é a primeira vez – e ela não sabe o que fazer da vida dela.”
Ele ficou quieto. Depois levantou-se e disse: “Já venho.”
Pegou no carro, meteu-se na via rápida, virou na terceira saída, desviou-se de uma pedra e estacionou. Tocou à campainha, entrou, virou-se para o primo mais novo: “O que é isto? Não tens respeito? Manda esta gente embora.”
De repente, estava ao alcance de uma matilha de adolescentes furibundos de força mal medida – e o primo mais novo era um deles.
Uma hora depois chegava ele a casa – combalido e de lábio inchado. A mãe gritou: “Já viste o que te fizeram?” Ele deixou-se ficar quieto: “Não tem mal, mãe. Não se preocupe. Não me parece que eles soubessem o que ‘tavam a fazer.”
O sábado passou. No domingo, ele repetiu o caminho da sexta-feira. Encontrou o primo – triste, nervoso, em súplica. 
“Primo?”
“Não há problema, primo. ‘Tou aqui.”

[Crónica publicada no JM, 31-III-2018.]

sábado, 17 de março de 2018

Crónica 97 [o lar]

esta é a forja
sabes que podes ser tudo – tudo – o que te disserem para ser – o que te baterem para ser – és um entre vários – todos iguais – diferentes – os mais – ou os menos – importantes – deves confiar na identidade – no signo do martelo – que em ti forem gravados – todas as manhãs olha bem a tua testa – aí verás – assim terás – aceita todos os gestos – os trejeitos – os arremedos – são os elos sem princípio nem fim da comunhão – dentro e fora da forja – sai – mas não te esqueças de voltar – sazonal – destemperado – ao umbral da oficina – para seres retemperado pelo fogo – pela eclosão contra a bigorna – e um dia – premido entre as paredes – emparedado entre as superfícies – vais gostar do calor da fornalha – vais querer empunhar o martelo 
este é o ninho
voa – ou trepa – e entra de patas descalças e limpas – deita-te após substituíres alguns ramos podres – nunca te levantes sozinho para olhar as estrelas – desperta silencioso – cabisbaixo – lesto – sobretudo acorda igual – ao que sempre foste – ao que sempre te fizeram ser – lembra-te que não precisas de acordar como insecto couraçado para te fazerem cair – ou como larva para seres sugado – basta errares o teu lugar no ninho – ou debicares palavras – ou cresceres penas de uma outra cor
este é o cofre
confia nas aritméticas que compõem o sistema – o cifrão é emotivo e depois orçamental – ou vice-versa – mais é menos – e menos é mais – nada dá resto zero – tudo é debitado e creditado na tua folha – segredos e murmúrios – obrigações e cilícios – quartos e gavetas e celas – risos e esgares – lágrimas e sal na mesa – frustrações e facas serrilhadas – pratos esboucelados – os números misturam-se com os caracteres em moldes de cunha – e sempre chega o tempo da cobrança – no cofre – nesse cofre fechado por dentro – faz por ter as contas em dia – são caras as sete chaves – por isso ouve – ouve muito – diz pouco – ou nada digas – quando saíres – ou quando fores saindo – até tu cumprirás – não o negues – um auspicioso futuro de contabilista de sentimentos
esta é a fortaleza
levanta-te e desenha um mapa – a tracejado assinala todo o território inimigo – a fortaleza como ilha cercada por bárbaros – sobe às atalaias – vigia – se não quiseres ser tu o bárbaro ou o judas submerso nas catacumbas – insidioso de barba acobreada – limpa as facas dia sim dia não – deita-lhes sebo contra a ferrugem – contribui com pedras para a muralha – se não tiveres pedras o teu esqueleto servirá bem como substituto – os ossos afinal acabam por fossilizar e petrificar – presta tributo – presta sempre tributo – traz alimentos e vinho e água limpa – certifica-te – como competente fiel de armazém – que o aprovisionamento é basto e rápido – ou doa a tua própria carne – na fortaleza sitiada tudo acaba por ser aproveitado
esta é a casa
cada injustiça é uma desculpa para fazer injustiças – cada rancor eleva a pira dos rancores – cada grito de cria é mais uma flama a aquecer a casa – cada mecha de cabelos grisalhos é mais um espaço ocupado no lastro do poder
este é o lar
[e se assim não o for – faz de conta – há sempre benefício em ser vítima – em ser um carrasco justificado a haver]

[Crónica publicada no JM, 17-III-2018.]

sábado, 3 de março de 2018

Crónica 96 [Preconceitos]

Falemos de preconceitos – de preconceitos contra: tímidos; velhos; pilosidade abundante; calvície; gente que escapa a categorias simples; gordos; indivíduos que não são progressistas [leia-se – que não são “pá frentex”]; conservadores; indivíduos de direita; direitistas que não acrescentam logo – “Mas democrata!”; ilhéus; gente da cidade; gente dos subúrbios; indivíduos que não fazem piercings, tatuagens e colorações capilares; gente que carrega livros – e que os lê; solitários; quem não se importa com os preconceitos mais mediatizados – e mais diabolizados; quem não abomina os preconceitos mais mediatizados – e mais diabolizados; quem assume que tem preconceitos; quem mete os polegares nos bolsos; quem mete as mãos inteiras nos bolsos; indivíduos que não têm “personalidade forte” [leia-se – que não são rudes e caprichosos]; avarentos; poupados; indivíduos que assobiam em público; quem conta piadas amarelas; quem ri de piadas amarelas; quem ri com estardalhaço; corcovados; desengonçados; feios; cicatrizes; quem tem calma; quem não tem calma; quem olha nos olhos; quem olha com intensidade; desastrados; indivíduos que têm sotaque; loquazes; calados; quem não se limita a ouvir; quem não atura queixumes; gente que dá conselhos sem pedido e aviso prévios; competentes arrogantes; competentes humildes; competentes que exigem competência; enfim; católicos; melancólicos; padres; bons sermões; padres celibatários; celibatários em geral; quem defende a disciplina do celibato para os padres; a bíblia; uma biblioteca; fumadores; viciados em substâncias mortíferas e sujas; viciados em hábitos mortíferos e sujos; carne mal passada; pessoas que comem carne mal passada; pessoas que comem carne; curvas – barrigas, rabos, mamas; gente que nomeia, arrola, descreve e analisa; gente que mostra que, no comércio dos preconceitos, há vários mercados, produtos e redes de distribuição; palhaços; o horrendo; cronistas que não escrevem sobre os dias correntes; cronistas que escrevem sobre coisas estranhas e esquivas; cronistas que não fazem parágrafos; quem não se assusta; quem sorve a sopa; quem não se indigna; gente de origens humildes; pobres altivos e orgulhosos; pobres mal-agradecidos; ponderados; homens e mulheres que dizem sempre – “E quem é que vai pagar isso?”; descrentes; descrentes ou ateus plácidos e tranquilos; gente que não odeia; homens que se levantam quando chega uma mulher; mulheres que não se levantam quando chega um homem; pessoas que não dão mimos materiais a crianças; pais ordeiros; pais solteiros; indivíduos que não gostam de animais domésticos; axiomas e aforismos; quem escreve axiomas e aforismos; quem não acredita em axiomas apócrifos e disseminados nas redes sociais; indivíduos que desconfiam das redes sociais; a história – a memória – o passado; línguas mortas; mortos; gente que vai morrer [“Ave, populus, morituri te salutant!”]; a morte; preguiçosos; listas; gente que sabe – ou inventa – coisas e que as declama como listas; indivíduos que contam, dissecam e inventam histórias; gente que escolhe a barricada errada; gente que peca do lado errado; mulheres e homens que não são feministas; homens; mulheres; heterossexuais; indivíduos que não falam de sentimentos; indivíduos que não falam dos seus sentimentos; cerimónias e formalidades; indivíduos cerimoniosos e formais; indivíduos que não usam eufemismos e jargões; indivíduos.

[Crónica publicada no JM, 03-III-2018.]