segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Crónica 31 [A Doença]

Ele é homem, é mulher; ele é velho, é novo. Ele é uma legião de homens, mulheres, velhos e novos – todos de costas viradas, divorciados dos rostos e dos hálitos dos outros.
Quando entra na sala – na casa – no mundo –, ninguém ouve, ninguém vê, ninguém repara, ninguém toca. Nada – não existem essas possibilidades, não se tomam essas oportunidades. É o diálogo sem diálogo. É o monólogo que se alimenta de todas as deixas, de todas as palavras – de todos os silêncios, e acidentes, entre as palavras.
É a palavra pé-de-cabra, a palavra fogo-de-artifício. É uma cela, uma ilha cercada de medos. É uma venda nos olhos, umas luvas de couro – ou de pelica. É uma armadilha de lobos, um camartelo, uma tenaz. É uma mira vigilante – um projéctil desgovernado. É uma arma de destruição massiva. É um campo de batalha a preto e branco, uma lápide com epitáfios sempre repetidos, nunca enfadados de si próprios – ano após ano, era após era.
Está no homem que o recusa para se ilibar. Está no homem que o aceita para se justificar. Está em quem o detesta para, em ilusão, tentar se curar. Está em quem o adora para tentar se iludir. Está, enfim, no homem que de si fala para tentar se distrair da existência.
No seu reino não há partilhas: não se partilha porque nada se quer receber; não se recebe porque nada se quer dar – e nada existe para dar.
É uma doença de milénios – hoje mais veloz, mais persecutória, mais inquisidora. É uma doença de bípedes – cujos pacientes, hoje, estão em estado comatoso. É uma doença que não precisa de vírus – apenas de hospedeiros, de incubadoras. Não oferece possibilidade de contenção – teria de haver tantos cordões sanitários, e tantos lazaretos, quantos nós somos.
É um púlpito de voz cavernosa e enfadonha; é a tribuna das verdades sectárias alcandoradas a doutrinas universais; é o megafone de um homem só, para a plateia dele mesmo; são milhões de megafones a encher as ruas de cacofonias tocadas em uníssono; é uma peça de piano onde somente se usam as teclas brancas; é uma nota pedal sibilante, até não se descortinarem outros sons com que se possa cismar.
É uma crónica de jornal à espera de leitura sedenta, como quem traz o único e verdadeiro método para se matutar nas engrenagens dos dias.
É a anulação da ironia – é o cinismo militarizado. É uma assinatura falsa – é uma assinatura falsificável. É a incapacidade de saber o nosso contributo para o que nos rodeia. É a incapacidade de conhecer o nosso potencial destrutivo.
É o poder simples, que não sai do seu caminho: de tanto estudar Maquiavel esquece Maquiavel; de tanto louvar a Deus esquece Deus; de tanto soletrar a razão esquece-a – ou usa-a como munição.
É o mundo do Dorian Gray – de Oscar Wilde – no qual os «caprichos de Dorian são leis para toda a gente, excepto para ele».
O Eu proclama a irmandade universal nos defeitos – e a excepcionalidade nas virtudes. A Voz proclama-se, destarte, independente e moralmente irrepreensível – procurando, porém, apenas colo, compreensão e liberdade sem freios e com esporas.
É o oitavo pecado mortal – é, ao mesmo tempo, o berço e o braço armado dos restantes pecados.
O que é? Quem é? O egocentrismo – ou o ego locupletado.

[Crónica publicada no JM, 19-IX-2015, p. 2]

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Crónica 30 [Quando]


Quando houver verdadeira consideração pela propriedade pública, pelos bens públicos. Quando se deixar de pensar: “O que é meu é meu; o que é teu é teu; o que é nosso é meu”. Quando os madeirenses deixarem de manifestar o orgulho que sentem pela beleza da sua terra através de actos como atirar uma embalagem vazia para dentro de uma ribeira – ou uma beata para o chão. [Deus me perdoe.]
Quando a geração que pôde usufruir da generalizada melhoria de condições de vida, e do acesso à liberdade, após o 25 de Abril, compreender os anseios, as circunstâncias e os sentimentos das gerações posteriores. [E vice-versa – sim, um pouco também vice-versa.]
Quando houver liberdade de criação – quando o que se fizer e disser, em liberdade e dentro da lei, não revogar amizades e criar inimizades e tentativas de anulação e sabotagem.
Quando este povo, religiosa e culturalmente cristão, passar a ser mais Cristo – e menos Sinédrio.
Quando este povo perder o preconceito de superioridade – e, sobretudo, o preconceito de inferioridade.
Quando a política deixar de se imiscuir em tudo – na família, nas amizades, no trabalho, na vida privada. Quando a política deixar de confundir tudo – ou as pessoas deixarem de confundir tudo por causa dela.
Quando pertencer a um partido não for um elemento fulcral para o futuro profissional e pessoal. Quando não pertencer a um partido não for um elemento funesto para o sucesso profissional e pessoal. Quando pertencer a um determinado partido for um elemento fulcral / funesto [risque-se o que não interessar] para a concretização profissional e pessoal.
Quando houver verdadeiros projectos – económicos, empresariais, políticos, culturais, sociais, associativos… – e não meros projectos pessoais de poder. [Repita-se: projectos pessoais de poder.]
Quando discutir política regional não consistir, no conjunto, em falar da vida interna – das redes, das quezílias, das parcerias – do partido maioritário [e depois, mas só muito depois, dos partidos da oposição].
Quando se deixar de reproduzir chavões, conceitos e adjectivos políticos forjados há 40 anos. Quando se deixar, 40 anos depois, de acreditar em homens providenciais [com mais ou menos maquilhagem política].
Quando nos deixarmos de boas intenções alardeadas que anulam o discernimento e as tomadas de posição.
Quando o medo não for um problema público, ou uma desgraça pública.
Quando se souber que o meio é pequeno, por vezes claustrofóbico – e que assim é pelas atitudes de algumas das suas gentes.
Quando deixarmos de ser convencionais e moralistas – quando deixarmos, por exemplo, de pensar e dizer – e escrever – “quando”.
Quando… Quando? Não sei. Mas, a despeito do que muita gente poderá defender, considero que esse “quando” não é hoje – não é a Madeira do ano da graça de 2015.
[Referi-me, nesta crónica, somente a aspectos culturais e políticos – a mentalidades e psicologia colectiva. Nem por um momento se me varre da mente as adversas condições económicas e sociais por que passa o arquipélago da Madeira – e Portugal, no seu conjunto. Essa, porém, é outra crónica.]

[Crónica publicada no JM, 08-IX-2015, p. 2]