sábado, 28 de maio de 2016

Crónica 49 [O Velho]

O velho descia o cabeço – pernas lentas a pisar passadas íngremes – e caminhava até à tasca do sítio. Chegava e sentava-se numa cadeira de plástico à porta. Aí ficava um par de horas, por vezes mais, até partir para outro lado. O tasqueiro já sabia – nada queria o velho, nada pedia.
Os vizinhos entravam na tasca e iam cumprimentando ou entabulando conversa como quem atira palavras ao ar, à espera de que alguma fosse peneirada pelo velho. Este respondia com monossílabos, uma ou duas interjeições desfalecidas, um virar de cabeça. Um sobrinho, ou o mecânico do sítio, ou ainda um outro velho, ofereciam-lhe, de longe a longe, um copo pequeno de vinho seco. E ele aceitava, simplesmente.
O velho, em novo, casou-se com uma rapariga do sítio: olhares trocados no arraial da paróquia, num Agosto quente, antes de a girândola ser posta a rodar; conversas práticas entre as famílias; e, logo, os trapos, dele e dela, juntados.
Viveram alguns anos num humílimo fogo, de três quartinhos, chegado a um emaranhado de silvado que crescia a olhos vistos – e de onde brotavam lagartixas que vinham à cata de sol sobre as pedras negras. Foram poucos esses anos.
O velho, em novo, decalcou o destino dos que lhe antecederam. E assim foi levando uma vida pesada e vagarosa – feita, em parte, do possível, e em parte do esperado. Usava de deferência para com os senhores que viviam na vila. Trabalhava na fazenda, à jorna, e carregava areia e outras coisas. E bebia – antes, durante e depois.
A mulher, não – não copiou qualquer destino antigo. Tinha a lembrança do pai a agarrar nos cabelos da mãe – um grito reprimido, o coração violento. Não admitiu o possível. Contestou, calada, a vida esperada. Chegou a televisão, as revistas, o sonho de uma outra vida por detrás dos lombos da freguesia. Saiu um dia de casa, calada, abrupta, sem aviso. E não voltou.
O velho, ainda novo, ficou. E tornou-se velho. Não mais soube da mulher. Não houve divórcio. Não sabia, até, o que implicava um divórcio. Hoje, deambulava. Tinha: um par de botas de água; um quarto – um só quarto, os restantes haviam sido devorados por plantas e animais – onde se deitava numa enxerga; um bocado de terra, de herdeiros, de onde por enquanto tirava semilhas para o comer.
Quem o visse não poderia falar de resignação, raiva, tristeza, rancor, ressentimento, pasmo. Quem o visse diria que as suas expressões faciais eram iguais aos seus dias: não havia arrebatamento, mudança, fogo ou enxurrada. Dir-se-ia dele que era um enigma simples – um fóssil apanhado pela erosão.
Um dia viu, no caminho, a mulher – bem vestida, bem arranjada – passar dentro de um carro, em passeio. O que viu não parece ter merecido reacção. Talvez virasse a cabeça de forma mais aguda do que o habitual, mas é duvidoso.
Em todo o caso, nesse dia, o velho tresmalhou-se do trilho costumado. Levaram-no as pernas até onde as canas vieiras – e as canas-de-açúcar – mais silvavam ao vento. Levou-o a humidade salina que adubava os salgueiros na orla marítima. Passou assim pelo cemitério do centro da freguesia. Olhou como se desfocasse o olhar – ou talvez não olhasse. Continuou a caminhar – até outro dia.

[Crónica publicada no JM, 28-V-2016, p. 2.]

sábado, 14 de maio de 2016

Crónica 48 [O Espectro]

Chegou a casa, já madrugada adentro, e atirou-se, abatido, sobre a cama. O quarto de dormir era parte de um pardieiro que tinha acabado de alugar. [Uma janela na cozinha era a única entrada de luz. Fora esta divisão e o quarto de banho, todo o espaço era forrado de uma alcatifa que seria, com certeza, um viveiro de luxo para ácaros.] Era a primeira noite que ali pernoitava. Deitou-se de costas e adormeceu logo.
Acordou com um peso sobre as pernas. Saltou da cama, entre a escuridão, e precipitou-se a acender a luz do quarto. [Não tinha luz na mesa de cabeceira. Não tinha mesa de cabeceira.] Procurou em redor, de olhar acabrunhado, mas nada viu. Vagueou pelo apartamento que ainda mal conhecia e nada encontrou. Encolheu os ombros.
Na segunda noite, deitou-se, menos brusco, e adormeceu a entoar uma música de Bruce Springsteen, “The Ghost of Tom Joad”. [Talvez fosse a versão de estúdio ou a tocada ao vivo com a participação de Tom Morello, guitarrista dos Rage Against the Machine. Fosse como fosse, cantava: «The highway is alive tonight / Where it’s headed everybody knows».] Voltou a despertar com uma pressão sobre os pés. Com a luz de imediato acesa, não encontrou nada que lhe desvendasse o sucedido. Isto, pensou ele, é bem estranho.
O dia de trabalho seguinte foi extenuante e, após uma longa viagem na via rápida – tão longa que, a certa altura, parecia-lhe que não sabia para onde ia –, deitou-se de borco na cama. Não conseguia esquecer as duas noites anteriores. Virou o rosto para a direita e conseguiu enfim fechar os olhos, lembrando-se da “Canção dos Borracheiros” que um dia ouviu ser cantada pelo avô, que era do Porto da Cruz. Tornou a acontecer: um peso sobre os tornozelos – o salto da cama. Dessa vez a sua perscrutação foi feita com olhos esgazeados.
Na quarta noite, novamente o mesmo peso, a mesma pressão exercida – com uma diferença. Foi tal a agitação que caiu da cama e bateu com o nariz no chão alcatifado. O espirro que se seguiu só lhe agudizou a dor.
Na quinta noite, não conseguiu dormir. Pensou na sua descrença – característica da sua geração –, na sua recusa de superstições, no seu desprezo por histórias com pendor sobrenatural. Mas nesse momento pensava em ir à bruxa, em pedir à tia velha para lhe fumigar a casa com alecrim, em solicitar auxílio a um padre. Fosse como fosse, pensava, tudo era, mais do que estranho, aterrador. Não dormiu. E portanto, para maior desconcerto, não sentiu, nessa noite, nada sobre as pernas.
Na sexta noite, por mais que cismasse e se atemorizasse, o cansaço de várias noites mal dormidas não lhe permitiu uma insónia. Adormeceu a pensar na vida que levava – a alienação pelo trabalho, a falta de tempo para a sua humanidade. Matutou ainda, por qualquer razão, na chuva constante e na lama que encontrou antes de entrar em casa. Como se não bastasse, pensou, além de tudo isto só lhe faltava agora um fantasma – um espectro.
Acordou na madrugada. A razão foi a mesma. Levantou-se, mais melancólico do que assustado. Notou, logo, umas pequenas pegadas na alcatifa e no chão da cozinha. E viu – um gato. Ou melhor, uma gata – que, afinal, entrando pela janela da cozinha, tinha vindo nessa e nas noites prévias buscar um pouco de calor, um módico de conforto.
Acabou por adoptar o felino – ou o felino adoptou-o a ele. [O que é que isso interessa?] O que lhe causava inquietação acabou por lhe conceder algum consolo. É assim, por vezes, a vida.
Pôde descansar, finalmente, na sétima noite.

[Crónica publicada no JM, 14-V-2016, p. 2.]

domingo, 1 de maio de 2016

Crónica 47 [A Crise]

O homem aguardava sentado, com as costas aprumadas, num sofá desconfortável, a ler uma peça de Shakespeare. Assim estava quando uma mulher veio chamá-lo. Ergueu-se com prontidão, guardou o livro na pasta e seguiu a mulher até um gabinete. Seria entrevistado para um emprego. A tudo o que lhe foi questionado – que não foi muito, diga-se – respondeu com cordialidade, assertividade, objectividade. No final, o entrevistador ficou uns momentos em silêncio a olhar para o CV e disse: “O seu currículo é variado. O senhor é experiente. Vê-se que é trabalhador. Só tenho pena... A sua idade... Percebe?”
A entrevista acabou aí. Levantou-se, apertou a mão do seu interlocutor com firmeza e saiu do gabinete e do edifício. Na rua, a raiva e alguns laivos de desespero tomaram o lugar da esperança. Porquê ser convocado para uma entrevista quando no currículo figurava a sua idade – e quando a idade seria, enfim, a razão para não lhe ser concedido o emprego?
Tinha entrado há pouco no meio século de idade. Até aos 40 anos esteve numa situação profissional estável e bem-sucedida no sector das vendas. Mas foi despedido.
A partir daí fez, como se costuma dizer, de tudo um pouco.
Uma empresa contratou-o, a recibos verdes, para proceder, numa carrinha, a entregas de produtos agrícolas. Começava cedo e acabava tarde. Ainda assim, após terminar as entregas do dia, ou ainda antes de as realizar, o empregador começou a lhe atribuir tarefas relacionadas, não com a firma, mas com a família. Exigia-lhe que fizesse compras para a sua casa, que levasse a filha a determinado lugar, que fosse buscar uma encomenda para a mulher... Chegava-se a meados do mês seguinte e o ordenado ainda não tinha sido pago. A certa altura, o homem – o escravo, melhor diríamos –, pediu quase pelo amor de Deus para ser pago. Alegou que tinha dois filhos para alimentar – com um vencimento parco – e, ademais, que não concordava que lhe fossem atribuídas tarefas que nada tinham a ver com a empresa. Foi-lhe dito isto: “Se não quiser, há outros que querem...”
Uma estrutura hoteleira empregou-o como recepcionista – falava três línguas estrangeiras com fluência – em regime de part-time. Depois, pelo mesmo vencimento, foi-lhe exigido uma jornada de trabalho em full-time. Ele disse que não consentia. Foi-lhe dito: “Se não quiser, há outras pessoas que querem...”
Uma firma do ramo comercial ofereceu-lhe trabalho a manobrar uma empilhadora num armazém. Trabalhava quase 10 horas diárias com a contrapartida de um ordenado mínimo, ao abrigo de um contrato de seis meses. Um novo gerente chamou-o ao escritório e disse-lhe que gostava do trabalho realizado. Contudo, propôs-lhe que, cessando o contrato, continuasse a trabalhar – mas sem contrato, e sem quaisquer outros papéis. Respondeu que não lhe agradava essa situação. Foi-lhe dito: “Se não quiser, há outros...” E acrescentou o gerente que, em virtude da tarefa, preferia afinal um trabalhador com experiência, sim, mas... mais novo.
Sei que estamos em crise. Todavia, como sempre aconteceu desde que o homem é homem, uma crise aproveita sempre a alguém. E, como se não bastasse, para nossa desgraça vivemos num tempo de falácias e convenções absurdas e perversas. A este tempo corresponde, pois, uma sociedade que, com frivolidade, idolatra a juventude, desprezando de forma violenta os seus cidadãos mais maduros e experientes. É uma injustiça social. É um crime colectivo.

[Crónica publicada no JM, 30-IV-2016, p. 2.]