sábado, 29 de setembro de 2018

Crónica 108 [Crónica Caótica (2)]

Duas borboletas monarcas voam sobre um chão urbano devoluto – regateado lentamente por ervas daninhas, silvas, teias de aranhas. As borboletas sobem, em círculos concêntricos cada vez mais apertados, como se guiadas pelo mesmo furacão, como se tivessem por destino o centro de acalmia. Sobem – e unem-se em pleno ar. [Quem vê este acontecimento, respira alguns segundos de suspensão.] Caem depois as monarcas, juntas – quatro asas indistintas como uma só folha caduca, numa paleta desbotada –, e desaparecem por entre as ervas.
           
Dois conhecidos dão uma mãozada, no meio da cidade ruidosa. Falaram: “Então, rapaz, foste à tosquia? Essa cabeça… isso foi de gilete e tudo.” “Pois é – foi por solidariedade.” “Solidariedade?” “Sim – solidariedade para com a minha mãe.”
           
Três crianças – três irmãos – enfiam-se por uma levada adentro. [Daí a horas hão-de chegar a casa, esfomeados e cansados. A mãe mandará, depois de uma resonda de estremecer paredes e sacudir pilares, que eles descansem os pés em três banheiras com água e sal.] No meio da jornada, surge uma matilha de cães – um dos cães ladra – as crianças param – outro cão rosna – o irmão mais velho tenta dizer, para os cães, mas sobretudo para os irmãos mais novos, palavras de sossego, de paz, de plena harmonia entre homens e bichos – três cães avançam – dois mordem o ar, um com um fio de baba no canto da boca negra – os irmãos tentam recuar – o irmão do meio, de pés petrificados, diz que será melhor não se mexerem – um cão roça a perna dele – o irmão mais novo chama o nome do mais velho – e olha para ele em súplica – o mais velho dá-lhe a mão, range os dentes, fala em calma, em firmeza, em não arredar pé, em nunca fugir – a matilha avança – todos os cães ladram – o mais velho diz, baixinho – “Olhem ali. Não se importem com os cachorros. Olhem ali, pró mar.” [Um barco navegava, solitário, à frente das Desertas.] Quando os irmãos voltam os olhos para o chão – a medo, à espera de uma sorte abençoada –, a matilha ia-se sumindo entre os troncos das acácias e dos eucaliptos.
           
[Qual a relação entre duas borboletas, um filho solidário com uma mãe doente de cancro e três irmãos ameaçados por uma matilha de cães? Não sei – e, francamente, não interessa. Nesta toada, termino esta crónica da mesma forma que terminei outra pretérita crónica caótica – com meia onça de ego.] Naquela tarde, um homem, amigo do meu falecido pai, quando viu pela primeira vez a minha cara nas páginas deste JM, avisou-me para ter cuidado – que isto de escrever coisas nos jornais podia dar problemas, que nunca se poderia saber das consequências, que era perigoso por causa da política. [Eu agradeci com sinceridade a preocupação e disse que não haveria problemas – que não me interessava trilhar por agora esses caminhos; o velho amigo do meu pai não se convenceu.] Outro homem, naqueloutra tarde, disse-me que lia e apreciava as minhas crónicas – e, rindo, avisou-me para ter cuidado porque, de contrário, acabaria eu por entrar – a sério – na política. [Tentei esboçar uma réplica qualquer, mas só pude ficar calado.] Talvez a Madeira, hoje, seja isto – seja sobretudo isto: tudo é política, nada existe para além da política. [Sim, eu sei – tudo é política; uma coisa, porém, é saber que assim é; outra coisa é querer que assim seja.] Talvez eu exagere – talvez não exagere; talvez um dia comece a escrever – a sério – sobre política; talvez me digam, na altura, que só escrevo histórias – e fábulas; talvez me digam que deveria voltar a escrever histórias.]

[Crónica publicada no JM, 29-IX-2018.]

sábado, 1 de setembro de 2018

Crónica 107 [António]

Chamavam-lhe “Antnunhe” – diminutivo, já se vê, vocábulo matizado consoante o vagar, a distância e a intensidade da acrimónia.
Foi encarregado de armazém; alcançando este lugar no baixo funcionalismo público, subiu destarte uma escada social de um degrau apenas. Mais não lhe era possível – mais não lhe era permitido. Mais não podia perder.
Mas Antnunhe perdeu. Subiu a escada – tropeçou – e foi cuspido para trás. Era trafulha – e desgraçou-se pelo álcool. [Uma desgraça antiga – consanguínea – hereditária – genética – solidária.] De bom grado meteu a cabeça num cepo ensopado à espera de uma lâmina.
Franqueava o armazém a quem não era de direito; ia por descaminhos levados a contrabandos dados; aceitava subornos de borras líquidas e águas brancas que lhe abrasavam a garganta.
Antnunhe foi admoestado, repreendido oficialmente, suspenso. Finalmente, foi despedido – ou, como disseram os colegas, cúmplices ou rivais, “cuspido”. [Era uma questão de tempo – e de paciência. Ainda assim, o despedimento foi desfecho que surpreendeu – a família, os vizinhos. Ele é que não ficou muito surpreso. Encolheu os ombros – e fechou os braços.]
Foi p’ra casa – com morte aprazada.
No sítio da freguesia rural onde vivia – e vivia numa caldeira de vozes ferventes e blocos nus, com latrina de madeira ao lado, sobre uma fossa metida na terra –, só um vizinho, ido da cidade nos fins-de-semana e feriados a construir lentamente a sua casa, lhe dava um ou dois dias de trabalho.
Só este vizinho o tratava como um homem. Mas Antnunhe era cada vez mais um destroço mal-afeiçoado cabeceando pelos dias.
Quando trabalhava com o vizinho amigo, de tempos a tempos rebentavam-lhe bolsas de pus, debaixo da roupa amarelada, nas feridas em carne viva; deitava um forte a mijo e a suor etilizado; o estômago não aguentava duas colheres de um caldo de carne; sem vinho antes, entrementes e depois, não conseguia trabalhar; e, com vinho, vomitava.
Num sábado, o vizinho amigo, depois de meio dia de trabalho perdido com Antnunhe ingrato e estragado a rabiçar atrás de uma árvore, disse-lhe agastado: “Antnunhe, vê lá a tua vida. Assim não pode ser. Bebes o que tens a beber – mas vai com calma, com medida. Ninguém olha p’rá tua cara. Tu tens mulher – e ela não te tem respeito. Tu tens um filho – e disseram-me, eu sei, chamas-lhe coisas sujas, imundícies. É uma criança – pensa nele. Um dia, ele falta-te ao respeito também. Antnunhe, assim nem eu… – nem eu consigo te deitar a mão.” Disse. E, ao fim da jorna, acrescentou, como sempre: “Antnunhe, saudinha da boa é o que te desejo.”
A mulher de Antnunhe, que era e parecia mais velha – uma vez perguntaram ao casal se um era filho e outra era mãe –, tinha-lhe ódio. A vizinhança dizia – e era verdade – que ela havia se amancebado com um colega de trabalho. O colega começou a dar-lhe boleia, a aparecer, a trazer compras, a ser intruso em casa.
Barregão e barregã passaram a aconchegar adentro as costelas escanzeladas de Antnunhe. O vizinho amigo dizia que as malhas que lhe davam, rearranjando-lhe a configuração interna das entranhas, eram de molde a deixar poucos vestígios. Era uma maneira calculada – discreta, esperta – de matar.
Mas houve excepções: uma nasceu da foice da mulher, que lhe cortou a carne da cara – da sobrancelha esquerda até à pálpebra inferior do olho direito. [Foice irada mas misericordiosa, esta – fintou duas vistas, a ponta do focinho, o resto das ventas e o gasganete.]
Deste jeito foram vivendo – deste jeito foi morrendo.
Numa tarde, o vizinho amigo disse-lhe: “Antnunhe, vou de férias p’rá semana, p’ró continente, não venho cá p’ra dentro.”
Quando voltou, viu a sua loja, onde guardava as ferramentas para a construção da casa, vazia. A única pessoa que sabia da sua ausência era Antnunhe.
A traição foi denunciada quando se reencontraram – Antnunhe passou como um cão de lombo derreado e olhos fugitivos.
Meses passaram; Antnunhe morreu; foi só mais um nome na necrologia do jornal.

[Crónica publicada no JM, 01-IX-2018.]