sábado, 25 de novembro de 2017

Crónica 89 [Salvação]

O homem estava sentado, de queixo pregado ao peito. Uma mulher, de gadelha cor de prata que brilhava no escuro, cingia completa, de corpo e sombra, este homem – sobre ele lançava fumos, rezas, cânticos e esgares. No fim desta liturgia semanal, disse a velha pagã com voz cava e prenhe de salvação: “Vai. Está tudo bem. Não vais voltar ao que estavas.”
O médico batia com o punho na testa, com arremessos crescentes. Naquela noite, assim como nas últimas noites, virava páginas, lia com sofreguidão, tirava outros livros das estantes, esventrava-os com furor. Mas nada encontrava. Disse: “Foda-se, que raio de doença é que aquele estupor tem?” No cume da fúria, varreu a mesa de trabalho com o braço direito, atirou-se aos dois armários de madeira e lançou-os ao chão. [A mulher encontrou-o, depois, encalhado entre manuais de anatomia e fisiologia.] Semanas e meses haviam rodado – mas nada sabia sobre aquela doença. Não tinha diagnóstico – e não tinha cura. Na manhã seguinte, saiu do gabinete para falar com a família do seu doente. Disse, subindo os braços como quem desiste, como quem tenta lançar um pássaro ferido ao voo: “Não sei. Nunca vi coisa igual. O melhor, de facto, o melhor será vocês levarem-no.” O doente foi levado a uma velha de cabelo cor de prata.
O homem doente deu entrada no hospital e logo ficou agrilhoado à cama. Na noite anterior, na primeira vez que sentiu as vísceras a arder, jogou-se para o chão e começou a esticar e a contrair o corpo como se fosse um peixe a quem roubaram o oceano. Os familiares ficaram horrorizados – rogaram a Deus e aos santos, agarraram-no, abraçaram-no, protegeram-lhe a testa, tentaram deitar-lhe pela garganta abaixo infusões e chás. Mas nada resultou. No hospital, o homem entrou num processo – incógnito, impenetrável – de consumpção centrípeta. Definhava, sumia, mingava, secava, mirrava – e a pele, cada vez mais pregada às dobras dos ossos, ia de trigueira a pálida, de amarelada a lívida. Tornou-se um cadáver que, por enquanto, respirava. O médico que ficou responsável – um dos melhores daquela terra – fez o melhor que pôde para estancar esta sorvedura de ânimo vital.
O homem olhou para o relógio e disse: “Bem, por hoje já dá.” [Um colega acrescentou: “É verdade – a gente vai-se embora deste mundo e ainda fica aí tanto trabalho p’ra fazer.”] Sacudiu à chapada o pó das calças e da camisa, pousou o capacete e saiu do estaleiro. Ao chegar ao pé do carro, encontrou uma antiga namorada. Ficou agastado – e desconfiado. [Tinha sido ele a terminar o namoro.] A rapariga cumprimentou-o, perguntou-lhe pelas andanças da vida, ajuntou mais umas palavras e disse que ia dali para casa. Ele – “boa pessoa, uma jóia de rapaz”, diziam os amigos –, dissipada a desconfiança, ofereceu-se para levá-la a casa. [Afinal, ficava a caminho.] Chegaram: ela saiu do carro; ele quis arrancar logo. Ela parou-o e ofereceu-lhe um refresco. Ele recusou. Ela insistiu. Ele hesitou. Ela disse que não havia nada de mal – que águas passadas não moviam moinhos. Ele entrou em casa dela, bebeu o refresco [uma aguadilha amarelada e xaroposa], agradeceu e foi-se embora. Quando descia, naquela hora parda em que os coelhos saem da toca, não pensava em nada de específico. Antes de chegar a casa lembrou-se, porém, do que dissera à rapariga no fim do namoro: “Não te quero nem p’ra minha salvação.”
No dia seguinte, a família levava o homem, a estrebuchar, para o hospital.

[Crónica publicada no JM, 25-XI-2017, p. 17.]

sábado, 11 de novembro de 2017

Crónica 88 [Memórias]

Dizia o pai: “Vou-te dar uma malha que eu vou-te lavar com vinagre.”
E o rapaz ficava arregalado e entontecido por um cheiro azedo que lhe subia pelas narinas até aos mistérios esconsos da massa aprendiz do cérebro. Imaginava também que ficava, numa picota armada no quintal da casa, de pulsos amarrados e enredados acima da cabeça, a sentir o corrimento do vinagre que o pai lhe esfregava, com diligência de cartógrafo, nas costas descobertas e coaguladas de vergões. [Anos mais tarde, alguém movido de piedade explicou-lhe o propósito: o vinagre serviria para aliviar e limpar a pele da dor e dos hematomas.]
Em abono da verdade, diga-se, nunca aconteceram – nem a malha; nem o posterior banho caridoso de vinagre.
Mas a ameaça, nos anos que se seguiram, rebentava-lhe nos ouvidos e trepava-lhe o nariz nas situações mais inesperadas: quando conduzia; quando passava a esfregona, torcida em água com lavanda, pela casa; quando olhava para uma criança irrequieta. Enrugava as pálpebras, passava a mão esquerda sobre a omoplata direita, abria depois os olhos e procurava, combalido, uma cadeira. Sentava-se; esperava; respondia com grunhidos a quem lhe falava do lado de lá da cortina de som; levantava-se; sacudia a cabeça; e ia à sua vida.
Era um sobressalto costumeiro – que foi, porém, esmorecendo, perdendo força como quaisquer memórias da juventude, escarificadas dos anos, cansadas de serem, afinal, assaltos nas horas mais inesperadas.
Ele, outrora jovem, agora adorava vinagre – comprava-o de sidra com extracto de rosas, por exemplo; tomava três ou quatro gotas diluídas num copo de água, em jejum, pela manhã; encharcava saladas e a carne de vinho e alhos.
*
O homem tinha uma bancada de fruta, no centro da cidade, e esperava, mastigando com enfado, clientes complacentes. À hora de ponta, algumas senhoras compraram pêssegos e uvas. Outra exigiu tabaibos bem descascados: o homem levou a mal, cortou a direito um dos frutos, separando mais carne que casca; a senhora irritou-se, despejou o que já estava no saco transparente e saiu dali.
O homem suspirou, concorrendo em entoação com os travões hidráulicos de um dos horários que passavam.
Pousou as mãos sobre as laranjas e esperou o próximo cliente. Outro homem aproximou-se e disse: “Olha, amigo, dás-me um pêro?” Ele olhou, filtrou os olhos, julgou o aspecto do ente que lhe havia surgido do outro lado da barricada – um boné dos ‘Chicago Bulls’ e nada mais de insólito –, tomou um pêro gordo e pesou-o. “É tanto.” O outro disse: “Não, amigo, dás-me? Não tenho dinheiro. Tenho fome.” Ele disse: “Tem paciência, pá. Não posso oferecer.”
O pedinte desfez-se em ameaças: que lhe rebentava com a barraca; que lhe dava uma malha; que lhe partia os ossos tão rapidamente que nem sequer iria ouvi-los estralar. Prometia – e, enquanto prometia, afastava-se, andava, fugia, corria. Quanto mais longe estava, maiores eram as desgraças prenunciadas – as quais contemplaram, inclusive, o término da vida do ameaçado.
O resto do dia passou. O vendedor, confuso, chegou a casa, sentou-se à mesa e esperou o jantar. A mulher serviu-lhe atum de escabeche. Ele olhou, cheirou, tocou com o garfo e disse: “Desculpa. Não tenho fome.”
Foi-se deitar. Uma noite inteira e não conseguiu dormir: os olhos arregalados de memórias iluminaram, sozinhos, o quarto de escuridão.

[Crónica publicada no JM, 11-XI-2017, p. 17.]