sábado, 23 de julho de 2016

Crónica 54 [O Surdo-Mudo]

Aqui estava o menino.
Sentado, no fundo do palheiro, tremia do frio da noite, sobre a feiteira que havia servido de cama do gado. Limpou uma lágrima com a manga da camisola rota e viu, por entre as sombras, entrar no palheiro, a coxear, um cãozito – dorido, como ele –, que havia sido atropelado ou espancado por alguém. Viu – não ouviu. O cão dele se acercou e pousou a cabeça no colo. Era surdo-mudo o menino. Com a mão, sossegou o bicho, que cessou de ganir.
Era o único surdo-mudo entre os irmãos – entre toda a família. Os pais carregavam-no de trabalho, de sol a sol, e tratavam-no – assim ele o percebeu desde a mais tenra idade – de forma diferente. Por algum motivo supérfluo – e eram muitos os motivos –, apanhava, ora da mãe ora do pai, pancadarias que horrorizavam alguns dos vizinhos, pelos gritos guturais que lhe arrancavam. No fim de um dia assim, era sentenciado a pernoitar no palheiro, com um resto de pão de casa seco. A irmã mais velha, a única parente que dele se compadecia e que o acarinhava, levava-lhe mais alguma coisa para restabelecimento do corpo cansado e fulminado.
[Quando comecei a escrever esta história, quis que ela acabasse mal. Neste momento, não quero.]
Tinha por companhia os animais. Sossegava um cão temeroso ou raivoso com um simples toque da mão. Apanhava pombos e melros que dele não fugiam porque dele não tinham medo. [Quem isto visse diria que era um prodígio – que o mártir havia se tornado messias.]
Passaram os anos e giraram os estados da vida. O menino, agora homem, veio trabalhar para a cidade e aqui alugou um quarto. Um patrão que nele reconheceu valor para trabalhos manuais diversos, tomou-o sob a sua protecção e pagou-lhe justa e condignamente. [Os colegas da firma e os clientes ficavam maravilhados com as suas capacidades. Bastava-lhe colocar uma mão sobre um electrodoméstico avariado – uma máquina de lavar roupa, por exemplo – para diagnosticar e reverter a avaria.] Do vencimento exigiam-lhe os progenitores uma parcela, que ele de início pagou.
Os colegas apreciavam o quanto bastava a cordialidade – ainda que reservada – do homem. Porém, ficavam um pouco impressionados com a voracidade e a desconfiança – os olhos caninos, sempre de atalaia – com que comia, ao almoço, o que trazia na marmita. Uma colega de trabalho, que não era muda – e que percebeu, desvalorizando, estes jeitos –, apaixonou-se pelo seu ar de fragilidade digna – como o de um animal combalido que se erguia, após ser agredido, com um orgulho cabisbaixo. Foram viver juntos e casaram. As pessoas notavam, incrédulas, a cabal comunicação – sem voz, sem som – entre o homem e a mulher: os olhos e os corpos transmitiam e recebiam a informação e, para completar este perfeito circuito, aí estavam os movimentos silenciosos dos lábios e as mãos – sobretudo as mãos.
O amor dela fê-lo levantar os olhos e ter a coragem de cortar com o que o amarrava à casa dos pais. Na última vez que lá foi, o homem atirou às ventas do pai as últimas notas de dinheiro – a última porção do que ganhava. Deu um murro na mesa da sala e partiu-a. Limpou, à saída, os sapatos no tapete da entrada.
À noite, após a mulher – que estava, hoje, grávida de um menino – se ter deitado, e antes de também se recolher, o homem lançava a mão sobre uma das paredes da sala, a tomar o pulso ao lar. [O vizinho do andar superior deveria ter, pensava ele, algum problema na canalização. De resto, pensava ainda, está tudo bem.]
Aqui está o homem.

[Crónica publicada no JM, 23-VII-2016, p. 2.]

sábado, 9 de julho de 2016

Crónica 52 [Teatro dos Dias]

Sobe o pano. Várias imagens afloram à boca de cena do teatro dos dias – teatro de negativos, de sombras. Imagens assim.
Dois jovens, à mesa de café, debruçados sobre duas maquinetas – e uma poncha dividida e amendoins com casca –, comunicam através de trejeitos e dialecto tribais. Tribais – ou internacionais: se fosse outro o país, no hemisfério ocidental pelo menos, dir-se-ia que pouca diferença haveria. Gestos francos e língua franca – num mundo cada vez mais igual.
Uma mulher olha, com olhos de metal, para o comprimento da saia de outra. Ao olhar parece que se ouve, por entre os ruídos dos carros que passam na rua, uma lâmina a arrancar uma faísca de um escudo.
Um homem percorre a estrada sem tratuário – e tosse com estardalhaço. Ao fazê-lo, tenta acertar cada contração com um passo veemente da perna direita no asfalto.
Uma velhota, no lado contrário da estrada – também sem tratuário –, apoia-se, com lentidão, no braço de um homem que veste um colete sinalizador de verde florescente. O sol demora-se, a pique, nas alturas.
Um homem – um caminhante –, sempre de fato, percorre a cidade com um jornal enrolado debaixo do braço. Vi-o muitas vezes, nas suas deambulações, acompanhado – primeiro de dois outros homens, depois de um só. Por fim – hoje –, está só. Numa tarde, nos arrabaldes da cidade, vejo-o vociferar para o vazio, de olhos postos no céu, e agitar com impetuosidade os braços – com o jornal, agora, na mão à laia de arma.
Mais adiante, um homem franzino, num clímax de raiva, atira o telemóvel a uma parede de crespo. [Depois, a atenção fugiu-lhe para uma coluna de fumo que subia, e que gerava sirenes de carros de emergência. Um outro drama tinha lugar.]
Uma senhora, no passeio de uma rua, assusta-se com uma voz – de cólera, de desespero – que explodiu num carro que passou com velocidade.
Dois velhos recordam, à porta de uma clínica médica, uma bebida que há décadas era consumida em festas e arraiais: uísque à portuguesa, ou seja, aguardente de cana com ginger ale. Um deles pergunta: “Olha, e aquela coisa na Inglaterra? Votaram p’ra sair da Europa e agora os políticos que defendiam a saída ‘tão todos a saltar do barco como ratos?” Diz o outro: “Aquilo ainda vai ficar tudo em águas de bacalhau.” Isto dito, o primeiro homem tira do maço de tabaco um cigarro e acende-o. Diz o outro: “Ainda não largaste isso? Olha que ainda vai aumentar o preço e vai trazer imagens de gente doente.”
Um casal de namorados adolescentes – ele enorme, ela pequenina; ele o dobro do tamanho dela – pára no meio da praça. Ela furiosa, ele desesperado; ela a força, ele a fragilidade. Ela olha para a cara dele; ele olha para os ares. [Há uma coluna de fumo ao longe que se torna mais negra.]
Uma adolescente que vestia de preto e uma velhota andrajosa chocam à boca de uma esquina. [O telemóvel da jovem caiu ao chão. Não ficou danificado.] Espantadas, seguraram-se nos braços uma da outra – um choque, dir-se-ia, que se transformou num simulacro, ou numa intenção, de abraço.
Cai aqui o pano deste teatro.

[Crónica publicada no JM, 09-VII-2016, p. 2.]