sábado, 1 de setembro de 2018

Crónica 107 [António]

Chamavam-lhe “Antnunhe” – diminutivo, já se vê, vocábulo matizado consoante o vagar, a distância e a intensidade da acrimónia.
Foi encarregado de armazém; alcançando este lugar no baixo funcionalismo público, subiu destarte uma escada social de um degrau apenas. Mais não lhe era possível – mais não lhe era permitido. Mais não podia perder.
Mas Antnunhe perdeu. Subiu a escada – tropeçou – e foi cuspido para trás. Era trafulha – e desgraçou-se pelo álcool. [Uma desgraça antiga – consanguínea – hereditária – genética – solidária.] De bom grado meteu a cabeça num cepo ensopado à espera de uma lâmina.
Franqueava o armazém a quem não era de direito; ia por descaminhos levados a contrabandos dados; aceitava subornos de borras líquidas e águas brancas que lhe abrasavam a garganta.
Antnunhe foi admoestado, repreendido oficialmente, suspenso. Finalmente, foi despedido – ou, como disseram os colegas, cúmplices ou rivais, “cuspido”. [Era uma questão de tempo – e de paciência. Ainda assim, o despedimento foi desfecho que surpreendeu – a família, os vizinhos. Ele é que não ficou muito surpreso. Encolheu os ombros – e fechou os braços.]
Foi p’ra casa – com morte aprazada.
No sítio da freguesia rural onde vivia – e vivia numa caldeira de vozes ferventes e blocos nus, com latrina de madeira ao lado, sobre uma fossa metida na terra –, só um vizinho, ido da cidade nos fins-de-semana e feriados a construir lentamente a sua casa, lhe dava um ou dois dias de trabalho.
Só este vizinho o tratava como um homem. Mas Antnunhe era cada vez mais um destroço mal-afeiçoado cabeceando pelos dias.
Quando trabalhava com o vizinho amigo, de tempos a tempos rebentavam-lhe bolsas de pus, debaixo da roupa amarelada, nas feridas em carne viva; deitava um forte a mijo e a suor etilizado; o estômago não aguentava duas colheres de um caldo de carne; sem vinho antes, entrementes e depois, não conseguia trabalhar; e, com vinho, vomitava.
Num sábado, o vizinho amigo, depois de meio dia de trabalho perdido com Antnunhe ingrato e estragado a rabiçar atrás de uma árvore, disse-lhe agastado: “Antnunhe, vê lá a tua vida. Assim não pode ser. Bebes o que tens a beber – mas vai com calma, com medida. Ninguém olha p’rá tua cara. Tu tens mulher – e ela não te tem respeito. Tu tens um filho – e disseram-me, eu sei, chamas-lhe coisas sujas, imundícies. É uma criança – pensa nele. Um dia, ele falta-te ao respeito também. Antnunhe, assim nem eu… – nem eu consigo te deitar a mão.” Disse. E, ao fim da jorna, acrescentou, como sempre: “Antnunhe, saudinha da boa é o que te desejo.”
A mulher de Antnunhe, que era e parecia mais velha – uma vez perguntaram ao casal se um era filho e outra era mãe –, tinha-lhe ódio. A vizinhança dizia – e era verdade – que ela havia se amancebado com um colega de trabalho. O colega começou a dar-lhe boleia, a aparecer, a trazer compras, a ser intruso em casa.
Barregão e barregã passaram a aconchegar adentro as costelas escanzeladas de Antnunhe. O vizinho amigo dizia que as malhas que lhe davam, rearranjando-lhe a configuração interna das entranhas, eram de molde a deixar poucos vestígios. Era uma maneira calculada – discreta, esperta – de matar.
Mas houve excepções: uma nasceu da foice da mulher, que lhe cortou a carne da cara – da sobrancelha esquerda até à pálpebra inferior do olho direito. [Foice irada mas misericordiosa, esta – fintou duas vistas, a ponta do focinho, o resto das ventas e o gasganete.]
Deste jeito foram vivendo – deste jeito foi morrendo.
Numa tarde, o vizinho amigo disse-lhe: “Antnunhe, vou de férias p’rá semana, p’ró continente, não venho cá p’ra dentro.”
Quando voltou, viu a sua loja, onde guardava as ferramentas para a construção da casa, vazia. A única pessoa que sabia da sua ausência era Antnunhe.
A traição foi denunciada quando se reencontraram – Antnunhe passou como um cão de lombo derreado e olhos fugitivos.
Meses passaram; Antnunhe morreu; foi só mais um nome na necrologia do jornal.

[Crónica publicada no JM, 01-IX-2018.]

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