segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Crónica 35 [Negativos]

É difícil tomar o pulso ao quotidiano, à rua. É difícil, por vezes, dizer alguma coisa que possa dissipar o caos, destrinçar o relevante do irrelevante. Tarefa delicada esta – a de captar até fuscos negativos da realidade.
Por exemplo.
Uma mulher que anda, apressada, pela manhã, de rosto distorcido de consternação. Outra mulher que corre, ao fim da tarde, de rosto distorcido de cansaço e preocupação.
Uma jovem que caminha para o trabalho; um cão com coleira, sozinho, escolta-a ao longo do caminho, e interpõe-se entre ela e outro cão que surge. Aquele cão não é da jovem mulher.
Um amigo que me diz: “Tenho de organizar a minha cabeça.” Outro que confidencia: “Tenho de organizar o meu dinheiro.” Outro, ainda, que confessa: “Tenho de me organizar.”
Meia dúzia de amigos sentados a uma mesa de café, cada qual hipnotizado pelo visor do telemóvel – janela e espelho particulares em mundos estanques.
Meia dúzia de pedreiros, à hora de almoço, que descansam numa esquina, a olhar para as mulheres que passam – os piropos afogados nos olhos.
O tasqueiro que apoia as mãos abertas no balcão, preocupado com a fuga de clientes. Um cliente à porta a fumar um cigarro. Um bêbedo precoce que pede mais um vinho seco pequeno.
Uma criança sentada no passeio, de lágrima a cair pelo rosto, com um adulto que a olhava, de pé. Dois homens de barba rija, um com um bebé ao colo, embevecidos com o recém-nascido. Uma mãe que acompanha e vigia o filho até à porta da escola.
À hora de ponta, pessoas que ocupam os passeios como se os outros fossem invisíveis. [Também os passeios têm hora de ponta.] Os invisíveis são obrigados a dividir a estrada com os automóveis. Tanta conversa sobre direitos individuais, sobre Direitos do Homem, e, afinal, há pessoas a quem nem se reconhece o elementar direito a um lugar de passagem no passeio.
Um casal de turistas que olha para a igreja, para o mapa, de novo para a igreja, de novo para o mapa. E um transeunte, que antecipa uma pergunta inoportuna por parte dos turistas, que passa ao largo.
Dois homens que discutem política e partidos: “É uma aberração. O Costa, que perdeu, então forma governo?” “Ele perdeu mas entendeu-se com os outros.” “Mas então os outros, os comunistas e os do Bloco, não tinham de ir para o governo também?” “Ah, mas esses cá são mais espertos, não querem se sujar.” “Não vai dar bom.” “É capaz de dar.” “A União Europeia...” “P’rá União Europeia é igual. Eles é que mandam.” Evocaram-se, há dias, os 40 anos do 25 de Novembro de 1975. [Ou não se evocaram – já não sei.]
Um casal jovem, numa esplanada, em silêncio – acendem ambos, em simultâneo, um cigarro colhido no mesmo maço de tabaco. Um rapaz olha para as moedas que guarda na mão, à porta de uma tabacaria. No outro lado da estrada, encostado à parede, um homem olha para um letreiro de néon com uma letra falecida. Um homem que grunhe, no quintal da sua casa, para a mulher.
Um choque entre dois automóveis – nada de grave, não houve feridos, só chapa ligeiramente amolgada – que acontece à frente da esquina onde, semanas antes, um amigo me asseverou que tudo o que eu fazia era relevante. Que era, se bem me lembro, até mais do que isso.
Nada de grave, portanto, não há gente ferida, somente couraças amolgadas – e dias que passam.

[Crónica publicada no JM, 28-XI-2015, p. 2]

sábado, 14 de novembro de 2015

Crónica 34 [Três Histórias]

Contou-me ele. [Passou-se nos anos 70.]
«Vê só. Há alguns anos, quando eu era mais novo, eu tinha uma prima, perto de onde a gente morava... Bem, o meu tio, o pai dela, era um homem... Andava sempre com uma foice ao ombro – assim. Uma foice afiada – até cortava papel. Sim, uma foice. E ele era um estupor. Bem, se ele apanhasse um bicho – um gato, um cachorro – dentro de casa, nem imaginas. Uma vez, então, entra um gato dentro da casa desse meu tio. Ele chegou e reparou que ‘tava ali o gato. “Espera aí que eu já...” – deve ter ele pensado. Vai daí, não faz mais nada: pega na foice e... zás, a foice a zunir no ar, e apanha o gato – metade p’ra um lado e metade p’ró outro. O que é que ele faz depois? Não faz mais nada – chega ao pé da minha prima e diz-lhe: “Agora vai limpar.” Se tu visses... A rapariga – uma rapariguinha; era, como se diz hoje, uma adolescente –, lavada em lágrimas, a limpar o sangue e o debulho do bicho espalhados pela sala. Imagina o que não foi p’ra ela.»
Contou-me ela. [Passou-se nos anos 80.]
«Os meus avós eram muito unidos. Já eram velhinhos mas andavam sempre juntos. Apoiavam-se muito. A minha avó, repara, já não via bem. Ninguém daquela idade estava habituado a ir ao médico, mas a certa altura alguém leva a minha avó ao oftalmologista. Afinal, já praticamente ‘tava cega há anos. O médico receitou-lhe uns óculos e foi como se a mulher tivesse nascido de novo. Lá ‘tava ela toda contente com os seus novos olhos. Mas durou pouco. Logo que começou a usar óculos, o meu avô chega ao pé dela e disse-lhe: “Não gosto de te ver com isso. Tira isso da cara.” E ela tirou. Imaginas?»
Conto eu. [Passou-se nos anos 90.]
Venho do fim de um dia de trabalho na fazenda, com o meu tio. Pergunta ele: “Vai-se tomar um café?” Era eu ainda um adolescente, cheio de aspirações – aspirações de que hoje só guardo farrapos –, contente do cansaço de um dia de trabalho. Chegámos à tasca e vejo um homem, com a idade que hoje tenho, nos meados dos trintas. Este homem falava com um outro homem e tentava ser assertivo – mas mostrava nervosismo, apreensão e uma cólera reprimida. O outro homem era mais velho, talvez muito mais velho. O que lhe era dito era algo como isto: “O senhor não acha que podia mandar cortar aquela árvore? Quer dizer, eu sei que ‘tá no seu terreno, é por isso que eu ‘tou a falar consigo. Já viu se ela cai? Ela ‘tá perigando de cair. Já viu se ela cai em cima da minha casa? Imagine, senhor, se a árvore cai de noite e eu tenho a minha mulher e o meu filho em casa. Se cair e eles morrerem, como é?” Antes de dar uma resposta, que foi imediata, a expressão na cara do velho... Ainda hoje parece que a vejo. E ainda hoje – ou desde sempre – não a consigo descrever. Responde, enfim, o velho: “Se isso acontecer, eu tenho dinheiro p’ra pagar a morte.” Imaginam?
Não é preciso agredir, gritar, ameaçar, insultar com palavras simples e desonestas. Há violência – e há violências, na família e fora dela. Haja olhos e ouvidos: os olhos e os ouvidos certos para reparar na violência subterrânea, indizível, inescrutável – e para fazê-la soar, como sinos em cortejo fúnebre. Haja imaginação para reconhecer a violência – porque, para ela existir, basta existir poder.


[Crónica publicada no JM, 14-XI-2015, p. 2]