sábado, 17 de setembro de 2011

Crónica 6

Bati à porta e ali fiquei, mudo. Sem qualquer palavra vinda do interior, tentei forçar a entrada mas a porta não estava trancada. Entrei.
Vi um homem sentado no chão – as pernas estendidas, as costas apoiadas na parede, a cabeça baixa. Uma arma acariciava-lhe a têmpora direita – e o dedo acariciava o gatilho. Sentei-me calmamente no sofá.
Zé, que há de novo?
É hoje, Filipe.
É hoje o quê?
É hoje que me vou embora.
Conheces o destino para onde vais?
Não me interessa.
Sim, pois claro, essa informação não tem importância.
Vou-me matar e brincas.
Não precisas da arma para isso. Há mais mundo para além daquela porta.
Não aguento o mundo para além…
Junta-te ao clube.
Pá, vai-te foder.

Sabes?, hoje apercebi-me de uma coisa. Somos todos figuras geométricas com arestas e ângulos bem vincados – não prescindimos das nossas medidas e não pensamos em mudar a nossa configuração. Os outros, figuras geométricas como nós, ou bem que se adaptem a nós ou…
Estou farto das tuas filosofias da treta!
Chamar-lhes filosofia é favor teu [e ri nervosamente].
Ergueu-se de supetão e dirigiu-se a mim. O cano da arma sempre colado à têmpora. Levantei-me também.
Tem paciência, pá, hoje não vais.
P’ra quê adiar?
Nem vais adiar – nem hoje nem amanhã.
Porque é que sequer te dás à maçada, caralho?
Fiz um pacto contigo, não te esqueças.
Que pacto? [As palavras cuspidas na minha cara.] Nunca fiz nenhum raio de nenhum pacto.
Fiz eu. Um pacto unilateral. Só assim há amizade – com um pacto, mesmo unilateral.
Tens de rever o teu léxico.
Está certo. Dá-me a arma.
Achas que preciso da tua compaixão? Não preciso da compaixão de um fraco como tu!
Eu sei. Dá-me a arma. 
Zé baixa com lentidão o braço até a arma repousar, suspensa, ao lado do corpo tenso.
Que se foda!
O braço reergue-se mas eu faço suster, pelo pulso, o movimento; fiz pousar, com firmeza, a arma no meu peito.
Vamos lá!
Foda-se!
Sim, vamos lá a ver essa coragem – coragem ou raiva. Afinal o teu dedo não largou de tocar no gatilho.

É p’ra isso que aqui estou?

No sítio onde rememoro, sozinho, numa nebulosa, estes acontecimentos, o tempo não flui, as cores são as de um néon branco, e a ausência de ar não permite o som.
Presumo que a arma tenha disparado acidentalmente.