segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

Crónica 66 [O Menino]

Acordou o menino; esfregou com os canhotos da mão a pálpebra esquerda, fazendo deslocar do seu lugar passageiro uma ou duas ramelas. Abriu bem os olhos claros. [Também poderiam ser castanhos estes olhos.] Pressentiu alguém na cozinha e levantou-se. Os aromas que enchiam este apartamento – que, pelo contrário, poderia ser uma humilde choupana – fizeram-no atirar-se certeiro, com os pequenos pés a bater completos na tijoleira – ou no chão de terra batida –, à mãe que cozinhava. Parou diante da progenitora, aprumado como um pequeno soldado às ordens do oficial, de queixo subido em esquadria com a ponta do nariz. Parou – e sorriu. [À espera: de um afago; e de uma taça de Chocapic com leite morno – que bem poderia ser, ao invés, um pão ázimo, quente e achatado, coberto de mel.] A mãe elevou-o até ficarem ambos nariz contra nariz. [Depois abraçaram-se.]
No escritório do pai – que poderia igualmente ser uma oficina de carpinteiro –, ficava por detrás da porta entreaberta a olhar para o interior, para os gestos do homem que folheava um dossier – ou que manejava uma plaina sobre uma tábua. [Fosse como fosse, caíam ao chão, sempre, papéis mal agrafados ou aparas finas de madeira.] O menino vigiava, vinha eu dizendo, o pai; e este, sentindo-o, voltava-se já sabedor da traquinice. A criança voltava a recolher-se atrás da porta, deixando todavia entrever o seu pequeno semblante, que oscilava para a frente e para trás, ora descobrindo-se, ora ocultando-se. O pai erguia-se e dizia em voz alta: “Quem é que ‘tá aqui? Quem é?” [Isto poderia ser dito em português ou, vá lá, em aramaico.] O miúdo levava a mão à boca, para abafar o riso. O pai abria a porta e alçava aquele corpo franzino, de tez clara – ou morena –, até ficarem ambos nariz contra nariz. [Seguia-se um abraço.] Depois, o pai libertava alguns minutos do trabalho e construía, para a criança, a partir de sobras, uma fisga – ou um origami.
Na cidade, ou no meio do deserto poeirento, esta trindade – pai, mãe, filho – passeava após cumpridas as obrigações religiosas. [Num domingo, pois; ou num sábado.] Encontraram uma família vizinha, outra trindade – pai, mãe e filha –, a quem cumprimentaram e com quem desfiaram um cordial novelo de prosa. O menino reparou na menina, de cabeça baixa e com uma lágrima, como um losango, a escorrer-lhe pela bochecha rosada. [Era uma carinha de camacheira a da menina – poderia, de igual forma, ser uma carinha trigueira.] Os vizinhos disseram que havia feito birra e que com ela tinham ralhado. O menino, que ouviu isto de olhos arregalados e pregados nos pais, pois sabia que também ele fazia birras – por causa de um tubo de Smarties ou uma mão-cheia de tâmaras –, aproximou-se da menina. Baixou a cabeça – o que lhe era raro –, afagou a bochecha molhada e aí lhe deu um beijo. Levantaram ambos os rostos e sorriram.
Os adultos não tomaram sentido desta cena – como também não deram fé de que, logo, se afastou o menino em direcção a um homem sem-abrigo, de cara flagelada pelo álcool – que poderia, como um fac-símile, ser outrossim um leproso de andrajos manchados de cor tinta. O menino parou, a um metro e meio desta figura de mão içada em concha, de quem todos se afastavam, e estendeu a mão – alta. O pai, que acabou por ver, deu um salto e veio recolhê-lo.
Esta criança poderia existir na Madeira contemporânea – ou na Galileia de há cerca de dois mil anos.
[Na véspera do Dia, é esta a minha crónica. Feliz Natal.]

[Crónica publicada no JM, 24-XII-2016, p. 2.]

sábado, 10 de dezembro de 2016

Crónica 65 [Duas Histórias]

O veículo branco cruzava as águas negras do asfalto. Quase tudo, naquele caminho, naquela ruralidade, era noite. De longe à lonjura, alguns oásis luminosos surgiam – postes de luz que deixavam perceber melhor linhas ora descontínuas, ora contínuas, acácias, eucaliptos, novelos. Ali, não era a escuridão que constituía o intervalo da luz. Ao casal que viajava somente restava confiar nos faróis vagarosos para aclarar a vista e expurgar destas profundezas caóticas algum rumo. Iam, ele e ela, em sossego, conversando, maravilhados pelo negrume primordial. Andados alguns quilómetros, entraram numa curva apertada de ângulo e de visão – entre as várias em que a estrada era pródiga – e ele, o condutor, obrigou-se a parar a navegação. [Não houve travagens ou guinadas bruscas.] Em cima da curva, no meio do caminho, estava uma figura – um homem, vestido de um preto total; ao lado dele, um animal, um cão – também de um preto incessante. [Estes entes existiam porque tinham contornos – pouco mais. Outro carro teria abalroado esta parelha sem cuidado.] Nem maravilhados já, nem assustados ao princípio – ficaram os viajantes estranhados com a aparição. O homem descoberto, de flanco para o carro, olhou e arreganhou os dentes, que surgiram alvos à luz dos faróis. [Mais tarde, o casal ainda discutiu, por várias vezes, se aquele sorriso era sardónico ou complacente ou zombador.] Ele, o condutor, ainda abriu a janela e disse: “Chefe, cuidado com a curva.” Ela exigiu logo que a janela fosse fechada e que se fizessem ao remanescente da estrada. O vulto foi se afastando, devagar, para o cotovelo interno da curva.
O barco de pesca – um atuneiro – regressava com a exaustão a lhe ranger no cavername satisfeito de peixe. Era noite, e os homens do mar, afora as excepções necessárias, dormiam. Ali, naquele atlântico fora do tempo, não havia longe nem perto. A luz que havia vinha de dentro daquele viajante colectivo. E assim a proa ia andando – dividindo o caminho negro que ora se alterava, ora colaborava na jornada. Um velho pescador, a sofrer uma insónia súbita ou esperada, levantou-se do beliche, colocou o boné na calvície, e subiu das entranhas do barco até se descobrir ao ar salino. Postou-se a estibordo e fincou as mãos na borda do casco, com os contornos do castelo de proa nas suas costas como uma presença ensombrada. Assim ficou, durante vários minutos. Subiu, então, a borda, e começou a urinar no mar. Esta tarefa costumeira, enfim, não lhe ofereceu – nunca lhe tinha oferecido – perigo, mas a verdade é que uma oscilação maior do atuneiro precipitou-o ao mar. Ninguém havia dado conta. O homem não gritou. [De que lhe serviria?] E o barco continuou o regresso. Andadas poucas milhas, um dos companheiros subiu à popa e pôs-se a olhar, habituando os olhos às oscilações ténues entre as trevas do mar e o ocre da espuma das ondas. Guinou, com brusquidão, a cabeça e cerrou os olhos. Viu: um boné, quase indistinto, nas águas, que caminhava sobre a ressaca deixada pelo barco. [Tempos depois, ao pensar nestes acontecimentos, disse que lhe pareceu que o chapéu perseguia o barco.] Deu o alarme – homem ao mar. Toda a gente acordou – toda a gente se sobressaltou. Por mais que parecesse impossível – e parecia, ou era, segundos alguns –, no mar sem fim, ter sucesso na descoberta do companheiro caído, o barco inverteu a marcha. O pescador foi encontrado.
[Aqui ficam estas duas histórias – de viagem e vigília; de sorte e insólito.]

[Crónica publicada no JM, 10-XII-2016, p. 2.]

sábado, 26 de novembro de 2016

Crónica 64 [Na Camionete]

Vai esta camionete à cunha, cheia de gente, tristeza e cansaço, quase a desmanchar-se por caminhos esburacados, afunilados, íngremes. Vai pela Madeira rural adentro.
Um dos últimos passageiros a embarcar entalou-se à frente, de pé no corredor, perto do chofer. Olhou com desafio – com alguma malícia inócua, talvez – os restantes passageiros. Entre estes, alguns repararam e ficaram tementes, ou resignados – ali onde estavam nada poderiam fazer –, com o que viesse a acontecer. O homem jogou a nuca para trás – e inaugurou um fado magoado. Quem seguiu este concerto – quem não o fez olhou com melancolia, passados poucos segundos, através das janelas embaciadas – não pôde ter outra opinião: estava bem cantado, sim senhor. O condutor atirou uma repreensão – onde é que se já viu uma coisa destas? – mas o artista não se retraiu. Interrompeu a toada e os versos e ralhou de volta – não estava a maltratar ninguém, também ele tinha pagado bilhete, também ele tinha direito a estar ali.
Numa bancada do lado esquerdo, com três cadeiras, aí pelo meio das entranhas deste animal de seis rodas que rastejava, estava uma família – pai, mãe, um filho, outro filho. Estavam arrumados como podiam. O pai começou a instigar, em sussurro, um dos miúdos, o mais novo, a malhar no mais velho. “Vai, anda. Dá-lhe.” O miúdo jogou um soco – ou um beliscão; enfim, coisa ligeira – ao irmão e a mãe, que tomou ciência destas coisas, começou a brigar, em murmúrios, e a tentar civilizar estes homens futuros. O pai pousou as mãos sobre a barriga e olhou, com satisfação alarve, em redor.
Noutra bancada, agora do lado da epístola deste templo móvel – nesta cerimónia do fim do dia, perfumada, ao invés de incenso, com eflúvios corporais ferventes, frios, requentados –, via-se parte de outra família – uma mãe, um filho adolescente. A mãe pensava no jantar, na conta da luz, no trabalho – e sobretudo naquele filho de 15 anos, enorme quando ainda ontem dava três passos e caía, que ali estava, ombro com ombro, ao lado dela.
O filho já mal cabia na cadeira de estofo húmido e roto que lhe punha as pernas dormentes. Ia cabeceando, de sono, de aborrecimento, de pensamentos. Neste dia lembrava-se, por exemplo, do gato cor de ouro que encontrava sempre no passeio do caminho antes de chegar à escola, no centro da cidade. O passeio era ladeado de prédios altos – quem viveria naqueles blocos? – e pavimentado de remendos de cimento com manchas de humidade e pastilhas elásticas vetustas e fossilizadas. O gato, ele sabia-o, permanecia assim no meio desta rota diária em demanda de afagos e atenções, a que correspondia o jovem. Mas nesse dia, quando passou, o felino entoou um miado lancinante – um fado magoado, dir-se-ia. Ao lado do bicho, no recipiente onde os vizinhos lhe depositavam comida, muitas baratas se calcavam sobre o repasto.
Estava o adolescente nesta recordação quando um pé se lhe deslizou no piso escorregadio da camionete e foi parar na canela do vizinho da cadeira da frente. O homem, com uns trinta anos, virou-se desconfiado. O rapaz pediu desculpa. O homem esbofeteou-o. O rapaz, aturdido, ficou sem reacção. E mais agredido foi – uma segunda, uma terceira vez – quanto menos reacção teve. Alheados, ou fingidos, nenhum dos passageiros acudiu. Acudiu a mãe: encheu o punho e atirou-o como uma pedra às ventas do agressor. Este petrificou de espanto. Toda a camionete ficou suspensa. O homem afundou-se de vergonha na cadeira.
A camionete continuou a sua viagem.

[Crónica publicada no JM, 26-XI-2016, p. 2.]

domingo, 13 de novembro de 2016

Crónica 63 [O Que É um Homem?]

O homem, de braços pendentes e pernas oscilantes como um símio, chegava à casa – vazia e arrendada – pela tardinha. Antes de subir o lance de escadas que desembocava na porta de madeira de verniz estalado, lançava, roncando, uma mão à parede de crespo. [Poderia a parede ser de espinhos, ou ter lodo, ou o que fosse; não importava – aquelas mãos estavam dormentes.]
Metia a chave na fechadura como quem desfere um soco contra o abdómen da porta e empurrava-a com um pontapé. A porta batia como uma hecatombe terminal – um dia aquelas dobradiças teriam de ser substituídas – e este acto de violência dava-lhe satisfação. [Não muita – alguma.] Antes de se impelir para o interior, grunhia – ou berrava – duas ou três imprecações obscenas, jorradas com um fio de saliva peçonhenta, que chocariam quem assistisse a esta cena.
A porta ficava aberta para quem quisesse ouvir. Ele esperaria a mulher – que chegaria depois. Enquanto não chegava, havia pretextos para pôr ao lume – ou manter bem quente – um refogado ruidoso de alhos e bugalhos com aguardente em peça e vinho carrascão. Era porque ela se demorava – e o que andaria a fazer? Era porque ela – de certeza – estaria metida com outro homem. [Na verdade, estava a trabalhar – e trabalhava muito por uma recompensa magra.] Era porque o vizinho – um jovem que ocupava o piso superior e que tinha idade para ser filho dele – fazia ranger o soalho. [Na verdade, conduzia este vizinho a sua vida em paz, e os barulhos eram mínimos e a horas lícitas.] Era... muita coisa.
Um dia, farto de ouvir estas má-criações – e certo de que algumas, que empalideceriam até um carroceiro, lhe eram dirigidas –, o jovem bateu-lhe à porta e perguntou-lhe se era ele o alvo de tais palavras empestadas. A reacção do homem foi inesperada e desarmante. Ficou mudo, de garganta gaga e acanhada, e pôs-se a cabecear negativamente. Outras situações semelhantes – mais insultos; mais chamadas de atenção – vieram a surgir. E o homem meneava a cabeça, balbuciava, negava e chegava a invocar o amor de Deus em prol da sua inocência.
Enfim, aquele era um comportamento rápido numa lógica evolutiva e adaptativa – tanto estagiava na latrina como logo emudecia frouxamente e subia pressuroso aos céus. Era um bom exemplo de sobrevivência dos mais aptos – ou dos mais manhosos e cobardes.
O senhorio do prédio sabia destas coisas – ouvia-as, ao longe; e outros vizinhos reportavam-nas também. Um dia deu um aviso ao homem. [Se o aviso foi o primeiro ou o décimo, se foi bíblico ou pragmático, não se sabe.] Desde sempre que, quando emergia nas redondezas a figura do senhorio, o homem calava-se de imediato, enfiava-se como um rato na toca e enclausurava-se fechando a porta. Após o aviso, isto passou a acontecer de forma mais expedita, dobrando o homem ainda mais a cerviz.
A mulher ia chegando e sofrendo, sem diferença nos dias. Tentava desculpar a estirpe daquele traste que Deus se lhe havia deparado em casa. Para ela, as razões de tais posturas deviam tombar sem misericórdia sobre a cabeça dela. Era ela a culpada.
[Discutíamos, eu e um amigo, a pergunta que é o título desta crónica. [Na realidade, fui eu que encetei a discussão.] O meu amigo disse-me que há perguntas que são vãs, presumidas, escorregadias. De qualquer modo, acrescentou, poderia dizer algo – mas sem entrar, por falta de pachorra, nos domínios da filosofia. Assim, contou-me esta história.]

[Crónica publicada no JM, 12-XI-2016, p. 2.]

domingo, 30 de outubro de 2016

Crónica 62 [O Perfil Errado]

Este homem que agora vejo está no meio da casa dos vintes. [Na verdade, não sei se vejo, se recordo, se imagino. Não interessa.] Encontro-o à porta do centro de saúde, sentado como pode, de cabeça baixa e afunilada – esmagada – entre as mãos grossas. Quando ergue a testa pode ver-se que os olhos, com uma capa salina, latejam. Parecia pasmado – e, ao mesmo tempo, lúcido. Ele espera que a porta abra.
Este homem tem uma depressão. Sabe-o porque, quando acorda – ou quando se levanta da cama; há dias e dias que sofre de insónias –, lembra-se de todos os sonhos e pesadelos que teve. Sabe porque todos os pequenos erros – miuçalha, cisco – da sua vida ainda por viver caem-lhe sobre a cabeça com o lastro de trovões.
Soube-o, porque, num dia em que se lançou ao caminho rotineiro, a meio não conseguiu dar um passo mais. Pareceu-lhe que as pernas se infiltravam pela calçada e ganhavam raízes até à bacia. Pensou que só lhe restava esbracejar – coisa que não fez, por não ter força e por temer que também os braços petrificassem, aéreos, acima da cabeça.
De modo que aconchegou-se-lhe à cabeça pesada – como um lampejo insuspeito, contranatura – a ideia de que poderia, de que deveria, pedir ajuda. Não lhe apetecia muito falar. Mas resolveu-se a fazer alguma coisa.
Abriram as portas do centro de saúde – e ele, em conjunto com três velhotes, um homem, duas mulheres, entrou. [Olharam-no de diferentes jeitos – ele com curiosidade, elas com desdém e tristeza.] Esperou, deixou chegar a sua vez e, na secretaria, perguntaram-lhe o que queria. Ele disse que julgava saber que o centro de saúde oferecia consultas de psicólogo; e solicitava, assim, se possível, uma consulta.
As senhoras da secretaria olharam-no de cima a baixo – uma com indiferença, outra com espanto. Perguntaram-lhe se tinha médico de família. Ele disse que não. Disseram-lhe que deveria ter. Ele disse que compreendia, que estava certo – mas que não tinha. Acrescentaram que só este médico poderia enviá-lo à psicóloga. [Ele ficou calado.] Olharam-no com estranheza. Disseram-lhe, para alívio, que ele poderia falar com a enfermeira-chefe – e que ela, então, ajuizando, lhe poderia franquear as portas da psicóloga. Ele esperou.
A enfermeira olhou-o, de cima a baixo, com inquisição e alguma reprovação. Perguntou-lhe se ele estava desempregado. Ele disse que não. [“Graças a Deus.”] Perguntou-lhe se ele era alcoólico. Ele disse que não. [E pensou – “Nesta situação, quem me dera.”] A enfermeira olhou, de baixo a cima, agora com pena. E disse para ele esperar.
Quando a psicóloga chegou passava já das 09:30. A enfermeira-chefe informou-a de que havia um rapaz – ele – que pedia uma consulta. A doutora virou-se para o lado onde ele estava e deslizou a visão – da direita para a esquerda, da esquerda para a direita – como quem fixa a parede por detrás da cabeça dele. [Ele, confuso, olhou para trás.] Nunca o olhou nos olhos. Disse ela que estava à espera de um adolescente que estava com dúvidas – ou crises – vocacionais. [Ele olhou em redor – não viu ninguém à espera; mais confuso ficou.] Ela entrou no gabinete. [Ele esperou.] Passados minutos, ela saiu e olhou – com o mesmo jeito desfocado. Depois disse que, porventura, o adolescente esperado poderia ainda aparecer. E que, portanto, seria melhor que ele viesse noutro dia.
[Auxílio – seja qual for, pedi-lo e merecê-lo só é lícito a quem tem um perfil convencionado. Há perfis certos – e há perfis errados.]

[Crónica publicada no JM, 29-X-2016, p. 2.]

sábado, 15 de outubro de 2016

Crónica 61 [O Ocaso]

Entrou no hospital com um tumor na garganta.
Bem – entrou no hospital porque, pouco a pouco, os ataques de tosse subiram até parecer que lhe partiam as aduelas; porque cuspia sangue – cada vez mais sangue; e porque ficou, de súbito, com o esófago vedado – a saliva, cerca de dois litros que o corpo produz por dia, tinha de ser cuspida. [Por esta razão, já no hospital, a voz foi se lhe embargando até se tornar um gargarejo cavernoso.]
Exames foram feitos – e perdidos, e achados, e refeitos, e só tarde mereceram a atenção de um médico. Depois de os ver, o médico disse aos filhos: “Ele ‘tá frito.” Era um cancro.
Os filhos, entre o odor esterilizado e as paredes descoradas do hospital, ficaram aparvalhados por esta estocada inesperada – por saberem da doença e por só saberem, nesse momento, o quão grave era o estado do pai. Sentado na beira de uma mesa, o doutor responsável e um outro colega começaram a discutir os presumíveis tratamentos, os prováveis desfechos, as soluções.
Não havia solução. O homem ali ficou, no hospital, com uma dieta intravenosa e de morfina enquanto o cancro ia plantando metástases como minas no corpo. Durante pouco mais de um mês mudou várias vezes de quarto. Por fim, recolheu a um quarto de uma só cama – o quarto de isolamento.
Entre as visitas que apareceram, numa tarde o melhor amigo surgiu e ficou, de pé, de braços cruzados, num dos cantos do quarto, em silêncio cúmplice com o homem doente. Este não conseguia articular palavras audíveis; o visitante não disse nenhuma. Não eram precisas palavras – ali, estando as coisas como estavam, só estorvariam. Por fim, o amigo chamou o amigo doente, despediu-se e mostrou o punho com o polegar virado para o tecto. O homem com o tumor respondeu da mesma forma. 
Um dos filhos perguntou, no ocaso desta história, se o pai poderia dar uma volta rápida. Os médicos e os enfermeiros, com humanidade e face ao inevitável, anuíram – contanto que o passeio fosse mesmo curto. Foi reforçada a morfina ao homem e tirou-se-lhe o cateter. Uma enfermeira forneceu-lhe um pacote de açúcar para que, em caso de fraqueza, levasse alguns grãos aos lábios.
O filho levou-o, primeiro, à freguesia natal, no norte da Ilha. O homem percorreu de carro – não quis apear-se – o seu sítio e olhou uma derradeira vez para a infância e para a juventude.
Depois, quis ir ao local onde trabalhava, numa freguesia do sul da Ilha. Aí desceu da viatura e visitou a equipa que chefiava, que o recebeu com reconhecimento e desvelo. Olhou uma derradeira vez para a sua vida.
Tudo isto feito – percorrido todo este caminho –, no carro o homem levou à boca, de imediato e com fúria, o açúcar e começou a tossir com espasmos violentos. O filho pediu-lhe que tivesse calma, disse-lhe que daí a pouco estariam no hospital, e carregou no acelerador.
Quando o dia seguinte nasceu, o pai já não pertencia a este mundo.
Um outro filho, semanas volvidas, viu as coisas que o pai tinha deixado. Encontrou, desgarrado e solitário, um livro de contos policiais de Patricia Highsmith – O Álibi Perfeito. E depois deu de caras com um exame médico feito um ano antes de o pai entrar no hospital – exame que o pai porventura não leu, ou não soube compreender, e que não mostrou ao médico, e que o médico não exigiu que fosse mostrado. Perdida entre o dialecto técnico e especializado que o documento apresentava, o filho pôde ler esta coisa: “Suspeita de neoplasia.”

[Crónica publicada no JM, 15-X-2016, p. 2.]

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Crónica 60 [A Tertúlia]

Sempre que passo, de carro sobretudo, ali estão eles – sentados sob a copa da acácia, na berma da estrada, num lugar padrão do Funchal suburbano.
À falta de melhor palavra, posso dizer que compõem uma tertúlia. São homens, desocupados, alcoólicos – em cima do muro onde se sentam há quase sempre vinho tinto de pacote, do mais barato possível. [É curioso – são filhos de um Baco incompetente e bêbedo que só faz e bebe zurrapas, mas ficam assim sentados, de perna cruzada, com um ar de dignidade cerimonial. Um dia, um dos homens foi ao supermercado das redondezas – há um supermercado próximo, demasiado próximo para o bem deles – comprar um pacote de vinho e dois ou três papos-secos. As moedas miúdas e pretas que levava não eram suficientes. A funcionária do supermercado julgou que ele iria optar pelo pão. Não – com a costumada dignidade, o homem disse que deixaria o pão e que levaria, sim, o vinho.]
O núcleo duro deste grupo é composto por três homens. Na verdade, melhor será dizer que é composto por um homem. Os outros podem, provisoriamente, não comparecer – mas ele lá está, dia sim, dia sim senhor. [Lembro-me dele de há muitos anos, quando eu trabalhava nas obras durante as férias da universidade. Já nessa antiguidade ora ele vinha trabalhar, ora não se lhe tinha dado para isso. Explicaram-me na altura que dependia do que ele já havia emborcado antes de o patrão o apanhar, às 07:40, na berma do caminho.] Era magriço e todas as manhãs lacrimejava abundantemente. A pele era vermelhaça – tinta, na verdade –, como se ganhasse, por osmose, a cor do líquido que bebia com perseverança.
Outro participante tinha sofrido uma trombose que lhe afundara o lado esquerdo da cara. Por vezes, esta carne facial fendia – e ele bebia, dizendo que o vinho curava tudo.
O terceiro homem, de pele amarela, de dentes amarelos, de olhos amarelos, passava de vez em quando, contrariado e sem aviso aos colegas, uma estadia no Trapiche. Enfim, mais dia, menos dia, ele voltava.
Fora o trio, acontecia que outros homens – bêbados ou não, a maior parte das vezes não – iam passando, estacavam, sentavam-se e demoravam-se.
Não me parece surgir ali a violência que o álcool faz transpirar. [Pode ser difícil de acreditar, mas é verdade.] Os diálogos decorrem amenos, sobre tudo o que vem à mente. Se é para passar o tempo, há que enchê-lo de palavras, debruçadas sobre tudo – sobre nada. Emergem, claro, a par e passo, alguns comentários galhardos, uns chistes sem acrimónia, no seio desta tertúlia e entre ela e alguns passantes.
Numa tarde, um conhecido passou do outro lado da rua e mandou uma boca qualquer. Um dos tertulianos mostrou os dentes apagados e gritou: “Vê lá com’é que t’assoas!” O interlocutor riu e continuou a andar. [Por acaso, a uns vinte metros dali, um velho limpava o nariz com um lenço pardo. Ouviu, interrompeu o ronco e virou a cabeça para quem tinha berrado. Percebeu que não era com ele – afinal, pensou, aqueles homens nunca tinham feito mal a ninguém – e terminou o serviço, deixando um traço luzidio na pele glabra sob o nariz.]
Podemos imaginar alguém que chegasse a esta tertúlia e que perguntasse a estes homens: “Porquê aquela vida?” – “Por que não procurar tratamento?” – “A que lugar quereriam chegar, daquele jeito?” Se estes homens quisessem – ou soubessem – responder, diriam porventura que estas perguntas estão mal feitas. Ou, enfim, encolheriam os ombros e não diriam nada.

[Crónica publicada no JM, 01-X-2016, p. 2.]

sábado, 17 de setembro de 2016

Crónica 59 [A Noite]

Na cidade crescia a noite.
Um homem segurava contra a cara uma máquina fotográfica digital. [Estava há vários minutos de vigia.] No momento certo premiu o botão e fixou, dentro da memória da máquina, a fina orla incandescente que o sol derradeiro riscou no horizonte. [Poderia ser, esta orla, uma espada que um ferreiro intemporal batia e moldava até se tornar negra.] Retirou a lente dos olhos, baixou o aparelho – dir-se-ia que era, afinal, um binóculo –, esqueceu de pronto o que fixara e olhou na direcção da esplanada. [É assim este tempo – de olhos com filtros e memórias digitais.] Coçou um braço e cuspiu no chão. Afastou-se.
Estava completa a noite.
Numa mesa da esplanada um grupo de quatro velhos jogava às cartas. Um deles arremessou com rudeza uma carta contra a mesa de plástico e a carta deslizou veloz e caiu ao chão. Os outros olharam com reprovação para esta violação de uma norma não escrita do jogo. O funcionário da esplanada perguntou a este grupo se era preciso mais alguma coisa – mais um café, uma cerveja. Absorvidos – ou ignorando, apenas, esta interpelação –, nenhum dos velhos respondeu. O funcionário não insistiu e olhou com melancolia para a estrada, a ver se esta lhe devolvia mais clientes.
Dois homens chegaram, encostaram as barrigas ao balcão e aqui pousaram os cotovelos. Um deles contou acerca de uma altercação, de uma zaragata numa noite anterior – que ele tinha falado com um tipo que lhe devia duas ou três dezenas de euros, que o tipo havia dito que não se lembrava, que ele ameaçou que o faria cuspir em sangue o dinheiro, que o tipo havia perguntado se essa ameaça seria cumprida por um só homem ou por uma camarilha completa. Que, enfim, a ele lhe tinham subido os bofes. [De maxilar inferior saliente, fez um gesto ascendente, com a mão esquerda arqueada, desde o ventre até à garganta.] E que tinha largado uma batata nas ventas do tipo, arrancando-lhe uma golfada de sangue. [Ouvem-se muitas palavras desta estirpe nas noites deste Funchal – e são quase todas mentirosas. Se não o fossem, uma parcela demasiado grande dos funchalenses encararia o dia seguinte com talhos e nódoas na cara. Mas nunca vi tal coisa.]
Numa mesa, um homem corpulento – um gordo –, com ligeiro estrabismo, careca e barbudo, dedilhava com fúria o teclado de um portátil. [Escrevia e depois contava as palavras. Escrevia e contava. A noite não estava quente mas havia gotas de suor na testa e na careca deste homem.] Pediu um uísque com uma pedra de gelo. Olhou para uma mesa onde estavam um homem e uma mulher.
A mulher olhava para o homem, a reclamar algo – uma atenção, uma palavra, alguma coisa que pulverizasse o silêncio. O homem tinha o focinho metido na luz do ecrã do telemóvel. Havia nesta mulher uma tristeza de quem demorava o olhar sobre as coisas e as pessoas – de quem, após a demora, mudava os olhos com um vagar quase suspenso. Eram dela – e de tantos outros – uns olhos que fixam um ponto, não na lonjura, mas num espaço vazio cerca, por vezes a poucos palmos da cara. Era uma tristeza de lábios afundados – que já não conhece o soslaio, a sobrancelha levantada, a fronte enrugada do riso.
À noite, é assim este Funchal urbano e suburbano, este Funchal dormitório – antecâmara da urbe, antecâmara da vida. Como o vejo, é feito de fúria rangida e melancolia perplexa, de ecrãs luminosos e tempo raso, de cansaço e sonhos suspensos, de vida fermentada em álcool e em espera.

[Crónica publicada no JM, 17-IX-2016, p. 2.]

segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Crónica 58 [Um Drama]

Ela chegou a casa de noite, cansada, combalida, com um recém-nascido nos braços. O marido tinha ido buscá-la ao hospital, já com uns vapores de álcool a emanarem das ventas mal-encaradas. Ela, para além de debilitada, ficou apreensiva, de mão inquieta sobre a testa.
A abertura da porta da casa – que rangeu da ferrugem nas missagras – revelou, à jovem mãe, uma cozinha onde, enquanto cumpriu a sua curta estadia no hospital, a loiça suja ficou empilhada quase até ao tecto. Do resto que viu não vale a pena falar. Daí a pouco, nessa noite, surgiram amigos do marido. Este ordenou à mulher que largasse o que estivesse a fazer e que viesse medir vinho. Depois, tomou o bebé varão e mostrou-o aos amigos sem muito cuidado e com gargalhadas troantes de felicidade temperada com bebida. Disse, várias vezes: “Vejam, parece um ratinho!”
A criança cresceu. Ao início era franzina, segurada nos temperos e destemperos da vida pela mãe desvelada. E desde o início que o menino foi observando a mãe – pequena, bonita, laboriosa e cansada – e o pai – um traste sem préstimo que não valia a baba ressequida que um caracol deixava no chão de cimento durante a noite.
O pai não resguardava a criança das má-criações – e da violência. Uma vez o menino – ainda mal tinha entrado na escola primária – viu a mãe ser atirada com um empurrão – teria sido um empurrão? – de um canto ao outro da sala. Correu e tentou, com o seu corpito, proteger a mãe.
Veio o divórcio – com ameaças, bilhardices, intromissões. Toda a gente virou-se contra a mulher: os amigos do casal, as amigas, as vizinhas. Que ele, o marido, era um bom trabalhador. [Não era – pouco antes da separação havia sido despedido por incúria e consumo de álcool.] Que punha em casa, na mesa, tudo o que era preciso. [Não punha – punha ela, enquanto ele gastava quase todo o salário na tasca do Sr. João.] Que era, afinal, um bom homem. [Enfim.]
A criança foi crescendo e, a despeito do que foi obrigada a ver, tornou-se vivaça e extrovertida, sempre sob a atenção da mãe.
Ao fim do dia, voltavam juntos para casa – a mãe com um ou dois sacos de compras que os seus diversos trabalhos de mulher-a-dias, mal remunerados e mal apreciados, pagavam. Na paragem de autocarros, o miúdo divertia os espectadores com tiradas galhardas e perspicazes. A mãe olhava, embevecida.
A criança tornou-se adolescente. O menino franzino que aquela mulher pequenina concebera havia sobejado. Começou a dar-se com más companhias e a ter – enlaçadas com um braço sobre o ombro e o pescoço – namoradas.
A criança tornou-se – a despeito do que teve de ver – um jovem inconveniente, de posturas gastas de adolescente, de palavras embaraçosas. [Uma frase não era frase se não contivesse um grão de vernáculo.] A mãe, pesarosa do que ia vendo, apreensiva – de mão inquieta sobre a testa –, chamava-lhe à atenção. Preocupava-se com a saúde do jovem e com as companhias dos cigarros – e Deus sabe do que mais. Exortava sempre, quando ele chegava a casa várias horas após ela – cada vez menos regressavam juntos no mesmo autocarro –, a que se alimentasse.
[Eu queria que esta história acabasse bem – mas não é possível.]
Da criança graciosa brotou um homem agressivo. Uma vez, com fumos de álcool a lhe saírem das beiças – para horror da mãe –, levantou-lhe a mão. [Assim ficou durante longos segundos, suspenso.] Baixou, manso, o braço. Depois, aparvalhado e a cambalear, foi para o quarto.

[Crónica publicada no JM, 03-IX-2016, p. 2.]

sábado, 20 de agosto de 2016

Crónica 56 [Rescaldo]

Parecia-lhe que o pior – aquilo que ninguém imaginava acontecer: um inferno de fumo negro e casas como fornalhas – havia já passado. Mas, no dia seguinte, após um jantar leve, olhou – vigilante – pela janela, com os dedos da mão direita pousados sobre o lábio inferior. E viu: subiam, das entranhas de umas ruínas calcinadas, três ou quatro moradias acima na estrada, umas baforadas de fumo esbranquiçado. O monstro – aquele bocado do monstro – tinha ficado adormecido; e agora respirava, com pequenos haustos perversos, indiferentes à memória traumática.
Pediu à mulher que telefonasse a pedir ajuda e voou estrada acima. [Pareceu-lhe que o fumo começava a ficar mais negro. Entretanto, a noite aproximava-se. Que cores percebem os olhos, quando no dia anterior só se viu fumo preto e labaredas?] Encontrou pessoas das redondezas também alarmadas – pessoas que, antes, tinham sido seus vizinhos: vizinhos que não conhecia, cujos nomes não sabia, com quem nunca havia discutido a meteorologia ou os exacerbados preços dos alimentos nos supermercados. Vizinhos, na verdade, com quem tinha sido irmanado quando o lume tentou penetrar no coração da cidade. Ele e eles – nós de uma mesma rede que tentou suster o monstro. Missão cumprida – missão, porém, que agora voltava a reclamar esforços. O monstro – uma réplica dele, pelo menos – voltava a dar de si, contra a necessidade de descanso.
Quando entrou na quinta, na casa, nas ruínas – como poderia denominar aquilo? –, viu os escombros que, por dentro, incubavam o fumo. Escombros na noite – pedras, carvão e ferros que tornavam o chão uma paliçada. Se havia vidros, não os viu. Ele alcançou um homem que trazia um balde de água. Depois, uma outra vizinha ligou e passou-lhe, do outro lado da rua, uma mangueira. Começou a aspergir, sozinho, os escombros. O fumo, todavia, parecia se alimentar da água. [Que diabo será isto? – pensou ele.] Quando deu por si, ao seu lado estava um homem franzino, também disposto a ajudar. [Nunca tinha discutido com este vizinho a possibilidade de chuva em Outubro ou Novembro, o calor deste Agosto, a carestia de vida, os impostos que levavam couro e cabelo. Quando deu por si, estava a trabalhar lado a lado com este homem, como irmãos que não precisavam de muitas palavras para comunicar.]
O homem franzino começa a deitar as mãos ao entulho – como quem quer esventrar o monstro e descobrir, nas entranhas, a bílis incendiária. Nestas entranhas tinham permanecido bolsas de oxigénio e polímeros – e outros pastos para o fumo que subia. Ambos usaram as mãos como peneiras. Viraram pedras que ferviam – e queimaram-se. Desenterraram farrapos de carpetes e sacos de plástico – e molharam bem o que iam desenterrando. Evitaram os ferros enferrujados que os ameaçavam. Um deles arrancou uma barra de ferro e usou-a para levantar o entulho, enquanto o outro tentava afogar com a mangueira o que estava nas profundezas. Um avisou o outro para ter cuidado – poderia haver vidros no chão, à espera de mãos afoitas. [Havia, de facto – mas ninguém se cortou.] Afogaram enfim o atrevimento do fumo.
[Muito foi já dito e escrito. Neste momento, quaisquer palavras que eu possa ajuntar parecem-me descuidadas, frívolas, apócrifas. Por pouco, aliás, o desastre não me roubava esta crónica. É tempo de agir, de cuidar, de prevenir – e de agradecer. No rescaldo, este é o meu pequeno tributo aos heróis da minha terra.]

[Crónica publicada no JM, 20-VIII-2016, p. 2.]

sábado, 6 de agosto de 2016

Crónica 55 [Uma Infância]

Por causa deste Agosto que ferve, perguntei ao meu interlocutor – um homem com a minha idade, de barba preta e coçada – como tinha sido a infância dele. Boa? Má? Havia me recordado de uma crónica de José Saramago, sobre as férias da infância – «as únicas férias maravilhosas que já tivemos», «esses infinitos meses para os quais não havia projectos, porque então não os fazíamos e porque, mesmo antes de vividos, já eram realização.»
Porém, nem a lembrança desta referência literária nem uma qualquer boa intenção – penso que existiu, a intenção; e que seria boa – me salvaram da avaliação que da pergunta fez o meu interlocutor. Vi que ficou enfadado – ao início. Depois, os seus olhos vestiram uma capa vítrea de perplexidade – pelas memórias da infância que lhe começaram a assomar. E, com vagar, tocou ele uma melodia inexorável na harpa da voz.
Que tinha uma lembrança de quando ainda era bebé de berço. Que tinha a lembrança de uma jovem mulher, de cabelos de ouro, que o olhava do alto – para o berço. [Eu não disse nada.]
Que, passados uns anos, brincava um dia no chão, com um carrinho. Que de repente levantou a cabeça e olhou para a direita, para onde o sol estava. E que lhe advieram perguntas de um canto obscuro. “Porquê isto? Porquê o mundo? Porquê estes olhos, estas janelas? Porquê eu? Por que razão estou aqui? Porquê?” [Acrescentou que hoje tenta adormecer – que faz por adormecer, com ardor – estas perguntas. Calado – eu fiquei calado.]
Que um dia fitou o sol – e que o disco laranja toldou-se para um azul que pulsava. [Ele não usava óculos – nunca usou.] Que a sua professora primária perguntou à turma de que cor era o sol, e que ele – o melhor aluno, laureado com ênfase e regozijo – havia dito que era azul. Que a professora o havia increpado com ênfase e fúria. [Nada ripostei.]
Que ia até ao terraço da sua casa forrado de telas de alcatrão por causa das infiltrações. [No Agosto o alcatrão sobejava e ficava peganhento.] Que aí ficava – subia a uma nespereira raquítica e paciente, cujos ramos nunca partiram com o seu peso. Que olhava – olhava, sem tempo, a fímbria em que o mar se juntava à cor ocre do horizonte. [Assenti com a cabeça.]
Que o irmão lhe havia assinado a cara com um estralo, numa tarde quente de Agosto, perante os outros miúdos das vizinhanças. Que o seu destino tinha ficado escrito a partir desse momento.
Que gaguejava, que era zombado, que lhe teciam brincadeiras nas costas, que o empurravam e lhe espetaram pioneses nos braços. Que era sovado – à entrada da escola, dentro da escola, fora da escola. [Bullying – é assim que se diz, certo? Eu tossi. Continuei a ouvir.]
Que um dia, de noite, ao vir da casa de uns primos após um dia esquecido, viu ao longe três ou quatro miúdos que, para fugir do aborrecimento, de certeza que lhe iriam bater. Que, pressentindo essa intenção, partiu uma cana vieira e, dessa vez, se defendeu com uma coragem imperativa – correndo, depois, com abalo e suor o caminho íngreme até casa.
Hoje – disse-me ele – achava que grande parte da nossa felicidade estava no apaziguamento, ou no esquecimento, das memórias da infância. Apaziguar é difícil e carece de coragem – porque implica um confronto procurado, constante, um projecto de vida. Esquecer é impossível – porque envolve, na soberania da nossa vulnerabilidade, um confronto esporádico, de que se foge. A infância. Feliz? Infeliz? Ele hoje já não sabia dizer.
[E eu não disse nada – que poderia eu dizer?]

[Crónica publicada no JM, 06-VIII-2016, p. 2.]

sábado, 23 de julho de 2016

Crónica 54 [O Surdo-Mudo]

Aqui estava o menino.
Sentado, no fundo do palheiro, tremia do frio da noite, sobre a feiteira que havia servido de cama do gado. Limpou uma lágrima com a manga da camisola rota e viu, por entre as sombras, entrar no palheiro, a coxear, um cãozito – dorido, como ele –, que havia sido atropelado ou espancado por alguém. Viu – não ouviu. O cão dele se acercou e pousou a cabeça no colo. Era surdo-mudo o menino. Com a mão, sossegou o bicho, que cessou de ganir.
Era o único surdo-mudo entre os irmãos – entre toda a família. Os pais carregavam-no de trabalho, de sol a sol, e tratavam-no – assim ele o percebeu desde a mais tenra idade – de forma diferente. Por algum motivo supérfluo – e eram muitos os motivos –, apanhava, ora da mãe ora do pai, pancadarias que horrorizavam alguns dos vizinhos, pelos gritos guturais que lhe arrancavam. No fim de um dia assim, era sentenciado a pernoitar no palheiro, com um resto de pão de casa seco. A irmã mais velha, a única parente que dele se compadecia e que o acarinhava, levava-lhe mais alguma coisa para restabelecimento do corpo cansado e fulminado.
[Quando comecei a escrever esta história, quis que ela acabasse mal. Neste momento, não quero.]
Tinha por companhia os animais. Sossegava um cão temeroso ou raivoso com um simples toque da mão. Apanhava pombos e melros que dele não fugiam porque dele não tinham medo. [Quem isto visse diria que era um prodígio – que o mártir havia se tornado messias.]
Passaram os anos e giraram os estados da vida. O menino, agora homem, veio trabalhar para a cidade e aqui alugou um quarto. Um patrão que nele reconheceu valor para trabalhos manuais diversos, tomou-o sob a sua protecção e pagou-lhe justa e condignamente. [Os colegas da firma e os clientes ficavam maravilhados com as suas capacidades. Bastava-lhe colocar uma mão sobre um electrodoméstico avariado – uma máquina de lavar roupa, por exemplo – para diagnosticar e reverter a avaria.] Do vencimento exigiam-lhe os progenitores uma parcela, que ele de início pagou.
Os colegas apreciavam o quanto bastava a cordialidade – ainda que reservada – do homem. Porém, ficavam um pouco impressionados com a voracidade e a desconfiança – os olhos caninos, sempre de atalaia – com que comia, ao almoço, o que trazia na marmita. Uma colega de trabalho, que não era muda – e que percebeu, desvalorizando, estes jeitos –, apaixonou-se pelo seu ar de fragilidade digna – como o de um animal combalido que se erguia, após ser agredido, com um orgulho cabisbaixo. Foram viver juntos e casaram. As pessoas notavam, incrédulas, a cabal comunicação – sem voz, sem som – entre o homem e a mulher: os olhos e os corpos transmitiam e recebiam a informação e, para completar este perfeito circuito, aí estavam os movimentos silenciosos dos lábios e as mãos – sobretudo as mãos.
O amor dela fê-lo levantar os olhos e ter a coragem de cortar com o que o amarrava à casa dos pais. Na última vez que lá foi, o homem atirou às ventas do pai as últimas notas de dinheiro – a última porção do que ganhava. Deu um murro na mesa da sala e partiu-a. Limpou, à saída, os sapatos no tapete da entrada.
À noite, após a mulher – que estava, hoje, grávida de um menino – se ter deitado, e antes de também se recolher, o homem lançava a mão sobre uma das paredes da sala, a tomar o pulso ao lar. [O vizinho do andar superior deveria ter, pensava ele, algum problema na canalização. De resto, pensava ainda, está tudo bem.]
Aqui está o homem.

[Crónica publicada no JM, 23-VII-2016, p. 2.]

sábado, 9 de julho de 2016

Crónica 52 [Teatro dos Dias]

Sobe o pano. Várias imagens afloram à boca de cena do teatro dos dias – teatro de negativos, de sombras. Imagens assim.
Dois jovens, à mesa de café, debruçados sobre duas maquinetas – e uma poncha dividida e amendoins com casca –, comunicam através de trejeitos e dialecto tribais. Tribais – ou internacionais: se fosse outro o país, no hemisfério ocidental pelo menos, dir-se-ia que pouca diferença haveria. Gestos francos e língua franca – num mundo cada vez mais igual.
Uma mulher olha, com olhos de metal, para o comprimento da saia de outra. Ao olhar parece que se ouve, por entre os ruídos dos carros que passam na rua, uma lâmina a arrancar uma faísca de um escudo.
Um homem percorre a estrada sem tratuário – e tosse com estardalhaço. Ao fazê-lo, tenta acertar cada contração com um passo veemente da perna direita no asfalto.
Uma velhota, no lado contrário da estrada – também sem tratuário –, apoia-se, com lentidão, no braço de um homem que veste um colete sinalizador de verde florescente. O sol demora-se, a pique, nas alturas.
Um homem – um caminhante –, sempre de fato, percorre a cidade com um jornal enrolado debaixo do braço. Vi-o muitas vezes, nas suas deambulações, acompanhado – primeiro de dois outros homens, depois de um só. Por fim – hoje –, está só. Numa tarde, nos arrabaldes da cidade, vejo-o vociferar para o vazio, de olhos postos no céu, e agitar com impetuosidade os braços – com o jornal, agora, na mão à laia de arma.
Mais adiante, um homem franzino, num clímax de raiva, atira o telemóvel a uma parede de crespo. [Depois, a atenção fugiu-lhe para uma coluna de fumo que subia, e que gerava sirenes de carros de emergência. Um outro drama tinha lugar.]
Uma senhora, no passeio de uma rua, assusta-se com uma voz – de cólera, de desespero – que explodiu num carro que passou com velocidade.
Dois velhos recordam, à porta de uma clínica médica, uma bebida que há décadas era consumida em festas e arraiais: uísque à portuguesa, ou seja, aguardente de cana com ginger ale. Um deles pergunta: “Olha, e aquela coisa na Inglaterra? Votaram p’ra sair da Europa e agora os políticos que defendiam a saída ‘tão todos a saltar do barco como ratos?” Diz o outro: “Aquilo ainda vai ficar tudo em águas de bacalhau.” Isto dito, o primeiro homem tira do maço de tabaco um cigarro e acende-o. Diz o outro: “Ainda não largaste isso? Olha que ainda vai aumentar o preço e vai trazer imagens de gente doente.”
Um casal de namorados adolescentes – ele enorme, ela pequenina; ele o dobro do tamanho dela – pára no meio da praça. Ela furiosa, ele desesperado; ela a força, ele a fragilidade. Ela olha para a cara dele; ele olha para os ares. [Há uma coluna de fumo ao longe que se torna mais negra.]
Uma adolescente que vestia de preto e uma velhota andrajosa chocam à boca de uma esquina. [O telemóvel da jovem caiu ao chão. Não ficou danificado.] Espantadas, seguraram-se nos braços uma da outra – um choque, dir-se-ia, que se transformou num simulacro, ou numa intenção, de abraço.
Cai aqui o pano deste teatro.

[Crónica publicada no JM, 09-VII-2016, p. 2.]

sábado, 25 de junho de 2016

Crónica 51 [O Choque]

Era uma velhota.
Todos os dias postava-se à saída da esquina onde estava, no coração da cidade, o seu pardieiro a ameaçar ruína. Ficava, da manhã até à tardinha, de um jeito assim menineiro, como as crianças quando se escondem em brincadeira – por detrás de uma árvore, de um muro, na dobra da esquina, com a cabeça e parte do corpo a descoberto.
Tinha um sorriso que se diria de criança, também, expectante do que viesse a surgir na rua principal. Ia olhando, ora para a esquerda, ora para a direita. Não tinha vizinhos – na medida em que, na cidade, já não há vizinhos. Para ela olhavam os transeuntes e os moradores ao perto, mas era ela invisível e invisíveis eram eles.
O sorriso é que nunca dava tréguas, apesar dos andrajos que apresentavam, aqui e ali, nódoas e manchas de terra. As pessoas passavam mais ao largo quando a viam – não tanto pelas roupas e guedelha desgrenhada, mas pela cara aberta, como um sintoma de demência, como um silêncio que desarma.
Às vezes um ou outro passante, igualmente de idade provecta – como é óbvio –, dirigia-lhe uma ou outra palavra. Não respondia a velhota, nada dizia. Mas a uma pergunta respondeu, numa tarde. “‘Tá à espera de quem, senhora?” “‘Tou à espera da minha riqueza.”
Quer dizer, à espera do filho – o único filho que teve, emigrado há 40 anos, que nunca mandou notícias ou proventos. A espera e a saudade foram, no início, acompanhados de raiva estupefacta – isto é, da razão –, numa casa onde, sozinha, roía a velhota a fome e a privação. Hoje, havia saudade mas não a raiva – nem a razão.
Era uma adolescente.
Vivia, com a mãe, num T1 + 1, no 3.º andar do prédio que ficava defronte da esquina. O pai, de quem guardava boas lembranças, havia falecido há meia década. Amiúde, virava-se ele para a filha gorducha – ainda hoje ela era gorducha – e dizia: “Vem cá, minha batatinha inglesa!” E ria-se alto, perante a cara de indignação da menina, antes de arrematar: “Ah, minha riqueza.”
Era uma adolescente normal – numa idade onde não há normalidade. Detestava o seu corpo, aborrecia-lhe metade dos colegas da turma, tinha boas notas – que alcançava com enfado e recebia com ainda maior enfado –, trajava de cores fúnebres e na rua andava sempre de auscultadores nos ouvidos e olhos pregados no ecrã do telemóvel.
Não gostava muito da mãe, mulher deveras preocupada com as novelas e que não cumprimentava os vizinhos do prédio. Também a filha não cumprimentava. Ninguém cumprimentava ninguém – ninguém via ninguém.
A mãe dizia-lhe para deixar de ser tão séria e, sobretudo, para não andar constantemente com o nariz metido no telemóvel – o que, em boa verdade, era injusto. Quando não estava a trabalhar ou a ver novelas, também a mãe, dada qualquer oportunidade, não largava o aparelho. Ainda mais injusto era – afinal, a adolescente não consumia, no telemóvel, através das redes sociais, o tempo todo a enganar a solidão. Ao invés, lia, em formato digital, literatura oitocentista – um Camilo, por vezes, e autores ingleses românticos.
Ontem – se não me falha a memória, penso que foi ontem – andava na rua a adolescente, como habitual, com os olhos no ecrã do telemóvel. Aproximou-se da saída da esquina onde, como habitual, estava a velhota, que olhava para o lado contrário. Nenhuma delas deu conta da outra.
A velhota e a adolescente chocaram entre si.

[Crónica publicada no JM, 25-VI-2016, p. 2.]

domingo, 12 de junho de 2016

Crónica 50 [A Menina. A Rapariga]

Todas as manhãs, a partir dos seis aninhos de idade, era obrigada a menina a várias tarefas: preparar o café matinal da mãe; cozinhar a refeição que o pai comeria ao almoço; tratar dos irmãos mais novos.
No casebre, situado perto do centro da freguesia, viviam, na altura, os progenitores e cinco crianças. Ela, a mais velha, ainda veria brotarem da mãe mais cinco irmãos – todos vindos a este mundo à razão de um por ano. De todos cuidaria, de todos cuidava – dos novos, dos maduros.
Só depois dos trabalhos da manhã é que – e já depois de ver, à distância, que a janela da sala de aula havia sido escancarada pela professora – podia dar uma carreira até à escola.
Na volta da escola, esperavam-lhe outros trabalhos: o asseio do casebre; cuidar – sempre – dos mais novos; cozinhar; coser; buscar e carregar alimentos, como sacas de semilhas pelos caminhos e veredas da freguesia. [Cansada, encostava-se a um barranco para recuperar forças, com o volume sobre a cabeça; as forças permitiam-lhe carregar o peso, mas não levantá-lo.]
Assim eram os dias. Dependendo do humor e da dureza da mãe, ia sofrendo – assim como os irmãos, uns mais, outros menos; dependia da predilecção – umas malhas de rachar pedras ou vagas. Por vezes, com os primeiros raios de sol dizia a mãe que, no fim da tarde, iria a menina levar um pancume. Noutras alturas, não era preciso esperar muito. Ou o castigo era aplicado na hora, com os instrumentos disponíveis – nada mais havendo à mão, a própria mão bastava; ou somente depois de a supliciada ter tido tempo de, a mando da verduga, ir colher, junto à praia, o instrumento do suplício – uma vara de salgueiro.
[O salgueiro adora o sal da maresia; e de certeza que, se pudesse, protestaria ser desterrado do seu habitat com o intuito de ajudar a espalhar vergões temperados de sal sobre a pele de uma criança.]
Dias cheios – e que mal acabavam. Nas noites, a mãe, enquanto bordava, exigia que, para sua companhia, a menina lhe lesse uma história [Aprendia a menina rápido – tanto as primeiras letras como as agruras do mundo.] Mas a meio da leitura, o sono descia sobre o cansaço. A mãe, para despertar a menina, dava-lhe dedaladas na cabeça.
[Curioso o destino daquele dedal – tanto protegia um dedo como servia de aríete contra o crânio tenrinho de uma criança.]
Bem. A menina fez-se rapariga – fez-se adolescente. Falecido o pai, vem a família para a cidade. A mãe arranja-lhe trabalho – ou escravidão – em casa alheia – a casa de um chefe de família que era um empregado bancário somítico, com uma mulher madraça e enfatuada e duas filhas babosas que até tarde molharam os lençóis.
[Ela lavava todos os dias a mijeira dos lençóis. Fazia isto e mais na casa – do mais imundo ao mais pesado, sem horas contadas. Dias cheios, de facto.]
Passava fome. [Quem visse a beldade que era, com cabelos louros e olhos azuis, não o diria. Mas passava.] Apertando-se-lhe um dia a fome na barriga, viu-se obrigada a... Foi-lhe ordenado que levasse, ao cão da casa, um prato de milho cozido frio para alimento do animal. No curto caminho até à casota, e longe dos olhares da dona, a rapariga devorou o milho. Por azar, na volta, caiu-se-lhe o prato das mãos. Para o castigo não foi preciso um aviso prévio ou uma vara de salgueiro ou um dedal. A mão da patroa bastou.
Malditos dias, esses, que teimavam em não querer acabar – dias cheios em histórias incompletas, em casas vazias.

[Crónica publicada no JM, 11-VI-2016, p. 2.]

sábado, 28 de maio de 2016

Crónica 49 [O Velho]

O velho descia o cabeço – pernas lentas a pisar passadas íngremes – e caminhava até à tasca do sítio. Chegava e sentava-se numa cadeira de plástico à porta. Aí ficava um par de horas, por vezes mais, até partir para outro lado. O tasqueiro já sabia – nada queria o velho, nada pedia.
Os vizinhos entravam na tasca e iam cumprimentando ou entabulando conversa como quem atira palavras ao ar, à espera de que alguma fosse peneirada pelo velho. Este respondia com monossílabos, uma ou duas interjeições desfalecidas, um virar de cabeça. Um sobrinho, ou o mecânico do sítio, ou ainda um outro velho, ofereciam-lhe, de longe a longe, um copo pequeno de vinho seco. E ele aceitava, simplesmente.
O velho, em novo, casou-se com uma rapariga do sítio: olhares trocados no arraial da paróquia, num Agosto quente, antes de a girândola ser posta a rodar; conversas práticas entre as famílias; e, logo, os trapos, dele e dela, juntados.
Viveram alguns anos num humílimo fogo, de três quartinhos, chegado a um emaranhado de silvado que crescia a olhos vistos – e de onde brotavam lagartixas que vinham à cata de sol sobre as pedras negras. Foram poucos esses anos.
O velho, em novo, decalcou o destino dos que lhe antecederam. E assim foi levando uma vida pesada e vagarosa – feita, em parte, do possível, e em parte do esperado. Usava de deferência para com os senhores que viviam na vila. Trabalhava na fazenda, à jorna, e carregava areia e outras coisas. E bebia – antes, durante e depois.
A mulher, não – não copiou qualquer destino antigo. Tinha a lembrança do pai a agarrar nos cabelos da mãe – um grito reprimido, o coração violento. Não admitiu o possível. Contestou, calada, a vida esperada. Chegou a televisão, as revistas, o sonho de uma outra vida por detrás dos lombos da freguesia. Saiu um dia de casa, calada, abrupta, sem aviso. E não voltou.
O velho, ainda novo, ficou. E tornou-se velho. Não mais soube da mulher. Não houve divórcio. Não sabia, até, o que implicava um divórcio. Hoje, deambulava. Tinha: um par de botas de água; um quarto – um só quarto, os restantes haviam sido devorados por plantas e animais – onde se deitava numa enxerga; um bocado de terra, de herdeiros, de onde por enquanto tirava semilhas para o comer.
Quem o visse não poderia falar de resignação, raiva, tristeza, rancor, ressentimento, pasmo. Quem o visse diria que as suas expressões faciais eram iguais aos seus dias: não havia arrebatamento, mudança, fogo ou enxurrada. Dir-se-ia dele que era um enigma simples – um fóssil apanhado pela erosão.
Um dia viu, no caminho, a mulher – bem vestida, bem arranjada – passar dentro de um carro, em passeio. O que viu não parece ter merecido reacção. Talvez virasse a cabeça de forma mais aguda do que o habitual, mas é duvidoso.
Em todo o caso, nesse dia, o velho tresmalhou-se do trilho costumado. Levaram-no as pernas até onde as canas vieiras – e as canas-de-açúcar – mais silvavam ao vento. Levou-o a humidade salina que adubava os salgueiros na orla marítima. Passou assim pelo cemitério do centro da freguesia. Olhou como se desfocasse o olhar – ou talvez não olhasse. Continuou a caminhar – até outro dia.

[Crónica publicada no JM, 28-V-2016, p. 2.]

sábado, 14 de maio de 2016

Crónica 48 [O Espectro]

Chegou a casa, já madrugada adentro, e atirou-se, abatido, sobre a cama. O quarto de dormir era parte de um pardieiro que tinha acabado de alugar. [Uma janela na cozinha era a única entrada de luz. Fora esta divisão e o quarto de banho, todo o espaço era forrado de uma alcatifa que seria, com certeza, um viveiro de luxo para ácaros.] Era a primeira noite que ali pernoitava. Deitou-se de costas e adormeceu logo.
Acordou com um peso sobre as pernas. Saltou da cama, entre a escuridão, e precipitou-se a acender a luz do quarto. [Não tinha luz na mesa de cabeceira. Não tinha mesa de cabeceira.] Procurou em redor, de olhar acabrunhado, mas nada viu. Vagueou pelo apartamento que ainda mal conhecia e nada encontrou. Encolheu os ombros.
Na segunda noite, deitou-se, menos brusco, e adormeceu a entoar uma música de Bruce Springsteen, “The Ghost of Tom Joad”. [Talvez fosse a versão de estúdio ou a tocada ao vivo com a participação de Tom Morello, guitarrista dos Rage Against the Machine. Fosse como fosse, cantava: «The highway is alive tonight / Where it’s headed everybody knows».] Voltou a despertar com uma pressão sobre os pés. Com a luz de imediato acesa, não encontrou nada que lhe desvendasse o sucedido. Isto, pensou ele, é bem estranho.
O dia de trabalho seguinte foi extenuante e, após uma longa viagem na via rápida – tão longa que, a certa altura, parecia-lhe que não sabia para onde ia –, deitou-se de borco na cama. Não conseguia esquecer as duas noites anteriores. Virou o rosto para a direita e conseguiu enfim fechar os olhos, lembrando-se da “Canção dos Borracheiros” que um dia ouviu ser cantada pelo avô, que era do Porto da Cruz. Tornou a acontecer: um peso sobre os tornozelos – o salto da cama. Dessa vez a sua perscrutação foi feita com olhos esgazeados.
Na quarta noite, novamente o mesmo peso, a mesma pressão exercida – com uma diferença. Foi tal a agitação que caiu da cama e bateu com o nariz no chão alcatifado. O espirro que se seguiu só lhe agudizou a dor.
Na quinta noite, não conseguiu dormir. Pensou na sua descrença – característica da sua geração –, na sua recusa de superstições, no seu desprezo por histórias com pendor sobrenatural. Mas nesse momento pensava em ir à bruxa, em pedir à tia velha para lhe fumigar a casa com alecrim, em solicitar auxílio a um padre. Fosse como fosse, pensava, tudo era, mais do que estranho, aterrador. Não dormiu. E portanto, para maior desconcerto, não sentiu, nessa noite, nada sobre as pernas.
Na sexta noite, por mais que cismasse e se atemorizasse, o cansaço de várias noites mal dormidas não lhe permitiu uma insónia. Adormeceu a pensar na vida que levava – a alienação pelo trabalho, a falta de tempo para a sua humanidade. Matutou ainda, por qualquer razão, na chuva constante e na lama que encontrou antes de entrar em casa. Como se não bastasse, pensou, além de tudo isto só lhe faltava agora um fantasma – um espectro.
Acordou na madrugada. A razão foi a mesma. Levantou-se, mais melancólico do que assustado. Notou, logo, umas pequenas pegadas na alcatifa e no chão da cozinha. E viu – um gato. Ou melhor, uma gata – que, afinal, entrando pela janela da cozinha, tinha vindo nessa e nas noites prévias buscar um pouco de calor, um módico de conforto.
Acabou por adoptar o felino – ou o felino adoptou-o a ele. [O que é que isso interessa?] O que lhe causava inquietação acabou por lhe conceder algum consolo. É assim, por vezes, a vida.
Pôde descansar, finalmente, na sétima noite.

[Crónica publicada no JM, 14-V-2016, p. 2.]

domingo, 1 de maio de 2016

Crónica 47 [A Crise]

O homem aguardava sentado, com as costas aprumadas, num sofá desconfortável, a ler uma peça de Shakespeare. Assim estava quando uma mulher veio chamá-lo. Ergueu-se com prontidão, guardou o livro na pasta e seguiu a mulher até um gabinete. Seria entrevistado para um emprego. A tudo o que lhe foi questionado – que não foi muito, diga-se – respondeu com cordialidade, assertividade, objectividade. No final, o entrevistador ficou uns momentos em silêncio a olhar para o CV e disse: “O seu currículo é variado. O senhor é experiente. Vê-se que é trabalhador. Só tenho pena... A sua idade... Percebe?”
A entrevista acabou aí. Levantou-se, apertou a mão do seu interlocutor com firmeza e saiu do gabinete e do edifício. Na rua, a raiva e alguns laivos de desespero tomaram o lugar da esperança. Porquê ser convocado para uma entrevista quando no currículo figurava a sua idade – e quando a idade seria, enfim, a razão para não lhe ser concedido o emprego?
Tinha entrado há pouco no meio século de idade. Até aos 40 anos esteve numa situação profissional estável e bem-sucedida no sector das vendas. Mas foi despedido.
A partir daí fez, como se costuma dizer, de tudo um pouco.
Uma empresa contratou-o, a recibos verdes, para proceder, numa carrinha, a entregas de produtos agrícolas. Começava cedo e acabava tarde. Ainda assim, após terminar as entregas do dia, ou ainda antes de as realizar, o empregador começou a lhe atribuir tarefas relacionadas, não com a firma, mas com a família. Exigia-lhe que fizesse compras para a sua casa, que levasse a filha a determinado lugar, que fosse buscar uma encomenda para a mulher... Chegava-se a meados do mês seguinte e o ordenado ainda não tinha sido pago. A certa altura, o homem – o escravo, melhor diríamos –, pediu quase pelo amor de Deus para ser pago. Alegou que tinha dois filhos para alimentar – com um vencimento parco – e, ademais, que não concordava que lhe fossem atribuídas tarefas que nada tinham a ver com a empresa. Foi-lhe dito isto: “Se não quiser, há outros que querem...”
Uma estrutura hoteleira empregou-o como recepcionista – falava três línguas estrangeiras com fluência – em regime de part-time. Depois, pelo mesmo vencimento, foi-lhe exigido uma jornada de trabalho em full-time. Ele disse que não consentia. Foi-lhe dito: “Se não quiser, há outras pessoas que querem...”
Uma firma do ramo comercial ofereceu-lhe trabalho a manobrar uma empilhadora num armazém. Trabalhava quase 10 horas diárias com a contrapartida de um ordenado mínimo, ao abrigo de um contrato de seis meses. Um novo gerente chamou-o ao escritório e disse-lhe que gostava do trabalho realizado. Contudo, propôs-lhe que, cessando o contrato, continuasse a trabalhar – mas sem contrato, e sem quaisquer outros papéis. Respondeu que não lhe agradava essa situação. Foi-lhe dito: “Se não quiser, há outros...” E acrescentou o gerente que, em virtude da tarefa, preferia afinal um trabalhador com experiência, sim, mas... mais novo.
Sei que estamos em crise. Todavia, como sempre aconteceu desde que o homem é homem, uma crise aproveita sempre a alguém. E, como se não bastasse, para nossa desgraça vivemos num tempo de falácias e convenções absurdas e perversas. A este tempo corresponde, pois, uma sociedade que, com frivolidade, idolatra a juventude, desprezando de forma violenta os seus cidadãos mais maduros e experientes. É uma injustiça social. É um crime colectivo.

[Crónica publicada no JM, 30-IV-2016, p. 2.]

domingo, 17 de abril de 2016

Crónica 46 [Um Homem]

Erguia-se da cama ordenado pelo som do despertador e preparava-se para sair. Todos os dias tomava o cuidado de engomar, com a concentração e o esforço possíveis, uma camisa lavada – que, depois de vestida, cobria com o único casaco que tinha e que sempre usava. [Nesse dia foi obrigado a alisar duas camisas – foi acometido de um ataque de tosse e várias gotas de sangue foram pousar na primeira camisa.]
Depois, pegava numa velha pasta de couro, que nada tinha dentro – talvez apenas, esquecida, uma caneta. Antes de sair do T0 que alugava há já muitos anos, certificava-se por três ou quatro vezes se tinha desligado o ferro de engomar, se tinha apagado as luzes, se não tinha deixado uma torneira aberta, se a chama do fogão não estava acesa. [Uma vez esquecera-se de desligar o ferro de engomar – e nunca mais se tinha esquecido desse esquecimento.]
Trancava a porta de entrada, tornava a destrancar, tornava a dar a volta à chave. Depois de sair do edifício voltava por vezes atrás – como nesse dia, como noutros dias – quando não tinha a certeza de que havia, de facto, fechado o apartamento.
Desembocava na escola para dar as aulas do dia. Entrava na sala de aula e sentava-se. Falava sempre com o mesmo tom, baixo e pausado, e com a mesma postura – de olhos baços e alheados e colados no topo da parede do fundo da sala. Os alunos, de quem nunca sabia os nomes, levantavam-se, saíam da sala, entravam, falavam alto, jogavam papéis e outras coisas, insultavam-no. Não interessa a disciplina que ministrava – assim como assim, nada transmitia ou ensinava este professor, nada aprendiam os alunos.
No fim das aulas dirigia-se para a saída principal, sem dirigir a palavra a colegas, alunos ou funcionários. Quando interpelado, forçava um sorriso e respondia de forma educada, apressada e lacónica. Era imperioso sair da escola.
Era imperioso chegar à tasca. Sentava-se ao balcão, com um cumprimento vago e cordial aos presentes. O tasqueiro tratava-o com reverência, chamando-o de “Sr. Professor”, e dava início ao cortejo de imperiais. À quarta ou quinta cerveja, o tasqueiro aproveitava para lhe relembrar o rol do fiado que guardava a memória de dezenas de outras cervejas. O homem respondia, vagaroso e cordial, que nada estava esquecido. [Após principiar o rol, na verdade, nunca se lembrava da obrigação de saldar esta dívida. Ao contrário de outros esquecimentos, deste esquecimento nunca se recordava.]
Assim era ele – irmanado com a sua dependência. O álcool: tomou-lhe o lugar dos livros; inundou-lhe o lar; incinerou-lhe a família e os amigos num lume escarninho e incessantemente vivo; sepultou-lhe a vontade; plantou-lhe o medo; rasurou-lhe a história; tragou-lhe a alma.
Saía do estabelecimento nunca antes de a noite descer e nunca antes de se certificar, por três ou quatro vezes, se tinha esquecido a pasta ou, por obra do destino, as chaves de casa. [Esquecera-se uma vez das chaves e, resignado, foi obrigado a sentar-se durante a madrugada – a pasta sobre o colo – num banco de jardim.] Cambaleava, enfim, com a dignidade e a concentração possíveis, até casa.
Ninguém há-de contar a história deste homem.

[Crónica publicada no JM, 16-IV-2016, p. 2.]

sábado, 2 de abril de 2016

Crónica 45 [Verdade e Mentira]

Encontrou-me ele ontem e disse-me do alto da sua idade provecta, coroada de poucos cabelos. Eu preparei-me.
«Então, ‘tás bom, Fernando?
[...]
«Ok, certo. Então temos um dia das petas, ou das mentiras, não é? Mas isso não quer dizer que todos os outros sejam dias da verdade.
[…]
«Eu explico-te, Faustino...
[…]
«Ou isso. Mas já reparaste que nós pensamos sempre na mentira de uma forma demasiado moralista, como se fosse principalmente um pecado? Mas a mentira tem outras raízes, também fundas, e ‘tá em todo o lado – mais do que a verdade. A mentira, a falsidade, a imprecisão, a ilusão… – são elas a norma. É uma questão de acção – ou, enfim, de falta de acção ou de método. E depois é uma questão, vá lá, de amor – primeiro pelo erro, e depois pela exactidão, pelo facto, pelo empírico, pelo que se pode verificar e comprovar. Percebes, Fernão?
[…]
«Não, pá. Amor pelo erro, sim. Mas não é um amor incondicional ou, vá lá, romântico. É um amor que abandona a coisa amada – o erro – quando ela muda – ou morre –, ou quando nós mudamos – ou morremos. É assim, Firmino.
[...]
«Não tem nada a ver com filosofias, com essas coisas que dizes – empirismos, racionalismos, positivismos, enfim… Ou melhor, até pode ter. Tem a ver, parece-me, com a forma como nós nos vemos no mundo e como nos vemos com os outros. Ninguém aprecia, propriamente, a verdade como uma coisa bela em si. Bela. Não sei se compreendes, Fabiano...
[…]
«Estética? Eu percebo lá disso ou do que dizem os filósofos… Pode ser, como digo, simplesmente uma questão de método, de amor, de beleza – e depois de esforço e de desprezo pelo poder. Imagina uma conversa como a que eu ouvi há dias. Dois amigos falavam e falavam. Pior – falavam de política. Pois é, quando se trata de política e futebol... Bem, a certa altura, discordaram quanto a uma coisa pequena – um facto. Não uma interpretação, uma opinião, uma análise – mas um facto. Tinha a ver, se bem me lembro, com o ano em que um determinado partido chegou ao poder, etc. Usavam os dois daqueles telemóveis todos artilhados, que acho que são bons p’ra procurar coisas e tal. Mas nenhum deles se preocupou em procurar. Que fizeram eles então? Deitaram-se a adivinhar, a especular, a discordar. Um amigo disse que pensava que era de uma forma – e logo concluiu que de certeza era assim; o outro amigo disse que se calhar era o inverso, p’ra não dar o braço a torcer – e logo arrematou que era certamente assado. E assim andaram, de palavras em palavras, uns bons minutos, até se desentenderem e mudarem de conversa. “Ficas na tua e eu fico na minha” – disse a certa altura um deles. O outro concordou. Entendes, Fabrício?
[…]
«Não, rapaz. Não arredaram o pé do poço em que se meteram porque isso dava muito trabalho. E, quando discordaram, o que interessou a cada um deles foi teimar – teimar em vencer. Vencer uma discussão. Se a discussão era estéril, ou se nada tinha a ver com a verdade, o que é que isso lhes interessava? Com certeza que já sabes a resposta.
[...]
«Bem, mas quanto à verdade, é isto – enquanto sociedade, nós falamos de cor e fazemos de conta. Dá-nos conforto, poder – e dá pouca maçada.
[…]
«Humor? O que é que o humor tem a ver com isto? Isto não tem piada nenhuma. Acho que andas a falar demasiado com aquele teu primo, o Juvenal. Diz-lhe p’ra deixar de beber senão ele não chega à minha idade. Bem, vou andado, Dinarte. Cumprimentos à família.»

[Crónica publicada no JM, 02-IV-2016, p. 2.]

sábado, 19 de março de 2016

Crónica 44 [O Humor]

«Há vários temas tabus na nossa sociedade, mas há um de que não se fala.
[...]
«Pode parecer insólito, uma redundância, mas... É o humor. O humor – o riso, a gargalhada, a graça, a ironia… É verdade, não se fala dele.
[...]
«Está bem: não se fala do humor na mesma medida em que, como se costuma dizer, explicar uma anedota é fazê-la perder a piada. Mas isso é um comentário óbvio e previsível – como tu. Não se fala do humor porque, sendo tão importante, mais importante se torna mantê-lo implícito, desapercebido, como um alquimista cujo vulto não se vê. Se o víssemos e à sua pedra filosofal – se dele tivéssemos a mínima percepção racional –, o alquimista ficaria despojado das suas fórmulas, tornar-se-ia um comum e mortal humano, ganharia vergonha – ou raiva – e fugiria.
[...]
«Certo. Então o que é? O humor, o supremo humor, é – repara! – a resolução do embaraço que nós sentimos face ao absurdo. É o que acontece quando tomamos noção da realidade no que ela mais tem de ilógico e contraditório – a realidade que, quanto mais verdadeira, mais difícil é de aceitar como tal.
[...]
«A realidade é uma convenção, uma pretensão, um pacto social… Está bem, como queiras. Posso continuar?
[...]
«Enfim, isso leva-me a dizer que o humor, o supremo humor, acontece quando existe a exposição da verdade. E rimos porque, tornando-nos conscientes do que é a verdade, rimos para desvalorizar, para nos tornarmos inconscientes, para voltarmos a mergulhar na nossa vidinha.
[...]
«Por exemplo: acontece quando alguém fala com um amigo, ou vai ao psicólogo ou ao psicanalista, e começa a contar, num acto de introspecção – de redenção –, a sua vida, a sua realidade, a sua verdade. Se essa pessoa não rir do absurdo em que está – em que a gente está – mergulhada, restam-lhe outras soluções para além do humor, nenhuma delas necessariamente melhor: desconforto, tristeza, raiva, desespero, enfim... Soluções de quem quer, à força, mudar a realidade.
[...]
«Pois, por isso é que o humor é atributo de pessimistas e de trágicos.
[...]
«Atributo, sim – ao mesmo tempo privilégio e fardo. E pessimistas e trágicos, também. Pode parecer estranho, mas a verdade é que os optimistas – os contentados – estão sempre demasiado ocupados – ocupados em serem sérios ou moralistas.
[...]
«Onde li o que estou a dizer? Eu tenho lá tempo para ler! Ou bem ver – e matutar nas coisas –, ou bem ler. Já sabes, primo, eu ponho-me em casa, ao fim do dia, com um copo com aguardente e meio maço de tabaco, a olhar para as paredes, e saem estas coisas, estas frases, loucas.
[...]
«Sim, humores e piadas há muitos, obviamente. Queres falar de coisas mais comezinhas, não é? Vê, por exemplo, essa grande instituição – a dita piada amarela. Digo-te uma coisa: uma boa forma de conhecer uma pessoa é contar-lhe uma piada amarela. Contar-lhe a sós – e depois num grupo. Se souberes medir as reacções, vais conseguir perceber: quem te aprecia, quem te despreza; quem é bondoso ou é falho de carácter; quem calcula e não calcula; o narcisista, e quem não o é; quem é frívolo...
«Espera, estás aí com esse sorriso amarelo... Vais usar esta conversa numa crónica, não vais? Que tristeza – vais cometer a proeza de escrever sobre o humor sem teres graça nenhuma. A verdade, também, é que nunca tiveste muita piada. Bem, então põe lá, na crónica, que fui eu, teu primo, o Juvenal, quem te disse estas coisas. Só não ponhas aquilo da aguardente e do fumo. Diz que são cada vez mais...
[...]
«Sim, tabus. Cada vez mais.»

[Crónica publicada no JM, 19-III-2016, p. 2.]

sábado, 5 de março de 2016

Crónica 43 [Balança]

«Bem que se pode, se pensarmos nisso, representar uma sociedade através de uma balança. De um lado, num dos pratos, pões penas; do outro lado também. Só isso – penas. [Não se trata da Pesagem das Almas do Antigo Egipto. A não ser que falemos de uma alma colectiva.] Se juntares milhares apercebes-te que os pratos vão começar a ficar cheios – e que a balança vai começar a pender para um dos lados.
«Penas, que é como quem diz: pequenas coisas – das mais pequenas; coisas em que ninguém repara, mas que são, de resto, os compassos quase imperscrutáveis que marcam o ritmo de uma comunidade.
«Um lado e o outro lado, portanto, um prato e o outro prato – silenciosos e leves ao início, vociferantes e pesados no fim. Dois lados sempre concorrentes.
«Queres exemplos? Eu dou-te dois – que passam entre as malhas, cada vez mais lassas, da rede da nossa observação e do nosso discernimento. Porque há coisas que nos deviam chocar; e que nos deviam enlevar – atitudes de descaso e de apoucamento; acções de generosidade. Mas ninguém olha para elas. Cá fora, fora dos pixels e dos padrões das redes sociais, já ninguém tropeça em nada que não seja óbvio – seja bom, seja mau. Bem.
«Dois velhos jantavam – sobre a mesa uma garrafa de vinho, vertido em copos feitos para sumo, e frango assado comido à força de dedos. Ao lado deles um adolescente, que os conhecia. A certa altura um dos velhotes vira-se para o rapaz e diz-lhe algo assim: “Vocês, pequenos, hoje não sabem tantas coisas como a gente da minha altura. Diz-me: quantos são X vezes Y?” O rapaz, solícito e respeitoso, respondeu pronta e acertadamente. O velho inquiridor, não desarmando – e borrifando-se afinal para a resposta –, desinteressa-se do jovem, vira-se para o outro velho e diz: “Pois, mas, no nosso tempo, o que se aprendia na escola era mais do que estes pequenos agora aprendem.”
«O rapaz ficou assim, desiludido, a olhar para o tempo. Percebes o que aqui se passou?
«Ao invés... Entraram uma mãe e uma filha num bar. A mãe pede cigarros e paga com uma nota de 20 euros – depositada com hesitação, algum sentimento de culpa porventura, sobre a mesa. A filha, uma menina que teria uns 10 anos, com voz baixa implora um chocolate – desses que são sorteados quando se inserem, numas máquinas, 50 cêntimos; uma fita de cor dentro de uma bola que é devolvida pela máquina anuncia a qualidade e o tamanho da guloseima. A mãe, não dando ouvidos, sai porta fora. A menina, vencida, segue-a cabisbaixa. Eu e o barman, que é meu amigo, ficámos a observar esta cena. Daí a 30 segundos volta a criança, com 1 euro, e pergunta – como é que fazia para tirar o chocolate. O meu amigo diz-lhe: “Espera, filha, isso não é 1 euro, são 50 cêntimos. Deixa-me trocar o dinheiro.” Vi depois que saíra um desses chocolates pequenitos, que nem a vista alegravam. Intuí o que o meu amigo – ele, a quem já vi dar de comer e beber a gente sem dinheiro – iria fazer. Deu à menina, sem alarde, um chocolate enorme – um bloco rectangular de 12 por 30 centímetros, pouco mais ou menos – que não correspondia ao resultado poucochinho do sorteio da máquina. A menina saiu a correr do bar, no encalço da mãe, felicíssima. Eu virei-me para ele e disse-lhe: “Eu sabia que tu ias fazer isso.” E ele sorriu.
«Não é preciso muito, enfim, para encher os pratos desta balança. E não é preciso muito para que um dos pratos vença, inexoravelmente, o outro.»

[Crónica publicada no JM, 05-III-2016, p. 2.]

sábado, 20 de fevereiro de 2016

Crónica 42 [Palavra e Acção]

Ele foi um jovem vivaço – de olhos que brilhavam e pernas inquietas, sobretudo quando sentado nos bancos de escola. Desde sempre que tinha a cabeça povoada de ideias. Toda a gente – os pais, a família, os professores, até os colegas – lhe vaticinava um grande futuro – um futuro de projectos e concretizações.
Porque projectos tinha – desde sempre. Iria construir o avião mais veloz que alguma vez existiu; seria um pugilista em competições mundiais; escreveria romances como grandes cartapácios; seria, enfim, tudo o que sonhasse… E para esses planos concebia as estratégias mais minuciosas e pormenorizadas. E a toda gente explicava tais pormenores.
Os adultos achavam-lhe piada, até que ele, entretanto, foi também cumprindo, lentamente, a maldição de se tornar adulto. Na fronteira entre a juventude e a vida adulta, pensou em cursar Filosofia, Estudos Literários, etc. Iria ser um académico versado em Wittgenstein ou Padre António Vieira...
Na hora H, de tanto pensar na escolha do curso universitário, não conseguiu se decidir. Ficou a trabalhar, por diligências de um tio, no secretariado de uma pequena empresa – e por aí foi ficando, com um desempenho mediano e, amiúde, medíocre.
Mesmo assim, as ideias não se lhe estancavam no bestunto. Tudo parecia possível. Continuou a planear – e a explicar os seus muitos planos a qualquer interlocutor que se lhe atravessasse no caminho. Dois minutos bastavam para isso. Dizia que sabia exactamente o que fazer – e como fazer. Uma hora era um modelo de construção de casas económicas que iria revolucionar o ramo; outra hora era uma indústria de alimentos gourmet que iria conquistar o mercado internacional; no dia seguinte, ou nos dias seguintes, era… outra coisa.
Na sua cabeça estava tudo resolvido e delineado. Todavia, se em jovem lhe achavam piada, em adulto, pois, sobretudo após chegar à cifra severa dos trinta anos, começaram a vê-lo como aborrecido, frívolo – como um saco roto de imaginações, de devaneios, de “histórias”. Diziam-lhe que, se quisesse fazer alguma coisa, já era a altura de calar e de passar aos actos.
Os seus olhos só brilhavam, agora, quando falava dos projectos; de resto, sobretudo nas manhãs, após a inclemente avaliação do fim do dia anterior e a noite de sono – ou de insónia –, os seus olhos eram de um baço ressequido.
Um amigo, que tinha lido umas coisas e visto uns vídeos no youtube, tentou dizer-lhe que não devia falar tanto acerca do que planeava realizar. Não pelos outros, mas por ele próprio. Dizia-lhe que, enfim, no que tocava a ambições e a projectos futuros, verbalizá-los constantemente poderia criar verdadeiros alçapões – para ele mesmo. Isso era da psicologia: quando se fala demasiado no que se vai fazer, a mente acaba por se convencer de que, efectivamente, tudo já está feito. Por vezes, instava o amigo, temos de calar – e fazer.
Este diálogo não surtiu efeito. O amigo, antes de desistir de ajudá-lo – e porque desistiu – ofereceu-lhe um livrinho do Padre António Vieira, onde estava o Sermão de Santo António aos Peixes. Se a psicologia não funcionava, talvez um pouco de sabedoria...
Ao falar dos defeitos dos peixes, o Padre António Vieira atribui esta prática ao roncador: «O muito roncar antes da ocasião é sinal de dormir nela.» O amigo sublinhou, com tinta carregada, estas palavras. 
Ele disse ao amigo que achava que compreendia – mas que cada vez mais lhe custava adormecer.

[Crónica publicada no JM, 20-II-2016, p. 2.]

sábado, 6 de fevereiro de 2016

Crónica 41 [Então Quem Foi?]

Hoje, caro leitor, quero falar de uma expressão que considero fascinante. Já a tenho ouvido ser dita por vários indivíduos, em diversas ocasiões. [Até por mim, presumo – ainda que não me lembre agora de uma circunstância em especial.] Não me posso assegurar do facto de ser madeirense – no sentido de ser típica, característica, idiossincrática. Na verdade, não tenho forma de comparar com outras regiões do país, mas a intuição – apenas uma singela intuição, ou um singelo exagero – diz-me que, pelo menos, é uma expressão usada nesta nossa Ilha da Madeira. 
Vejamos esta história. Não tem muito tempo que, estava eu a fazer uma compra num pequeno estabelecimento comercial – assim uma mercearia com snack-bar –, ouvi um diálogo entre o funcionário da caixa registadora e o que parecia ser um zelador, ou vigilante, do condomínio. Este disse àquele que uma zona comum estava alagada. O funcionário replicou que compreendia – que era verdade, que também o tinha constatado –, mas que não tinha sido ele o responsável. E, nesta sequência, disse logo o vigilante: “Não? Então quem foi?”
E pronto. Fiquei a matutar. Como disse, já tinha ouvido aquelas palavras, em contextos semelhantes, mas desta vez um rastilho foi accionado na minha cabeça.
Vejamos o contexto a partir do qual brota a expressão – e, depois, o caminho que ela trilha.
Em termos esquemáticos, tudo começa com uma transgressão – pequena ou grande, não interessa. Pequena ou grande – isso dependerá da avaliação de quem irá acusar, avaliação que está, por sua vez, directamente relacionada com manutenção ou busca de poder. Depois, este acusador tem uma suspeita – ou uma certeza, forjada com poucos ou nenhuns factos. Todavia, não quer enfrentar, de peito aberto, o suspeito – ou os suspeitos. Vai então falar com a pessoa, ou as pessoas, de quem desconfia. Relata a transgressão em tom que, na aparência, soa como simplesmente informativo, mas que – quer pela voz empregue, quer pela linguagem corporal, quer ainda pelos apartes – indicia que o interlocutor é acusado e culpado. Este, por sua vez, proclama a sua inocência, dizendo, por exemplo: “Não fui eu.” O acusador, nesta dança, coloca o réu entre a espada e a parede, retorquindo: “Então quem foi?”
De forma dissimulada, esta última expressão afirma basicamente duas coisas. Em primeiro lugar, que a declaração de inocência, e o correspondente arrazoado apresentado, não convencem – e que, portanto, o acusado continua a ser suspeito ou culpado. Em segundo lugar, e ainda que não haja consciência disso, o suspeitoso, não se assumindo culpado, vê-se obrigado a ser um delator. Portanto, se não for culpado, tem de ser no mínimo um bufo. E aqui temos: ou a espada – a culpa –, ou a parede – a delação.
No fim de contas, é uma expressão que contém o seu quê de denúncia velada, o seu bocado de desconfiança, a sua parte de apoucamento dos factos, o seu tanto de acusação, a sua parcela de dissimulação, a sua quota de obrigação à delação – o seu, enfim, quinhão de cobardia.
Espero que um dia esta expressão acabe – que um dia deixe, por tudo o que parece significar e transmitir, de ter livre curso nas bocas e nas mentes deste meu povo. Porque, na verdade, todos nós já a proferimos. [Agora penso que também um dia a disse. Quer dizer, não estou certo – estou a ficar velho e a memória já me vai falhando.] Ai não, caro leitor? Nunca usou esta expressão? Então quem foi?

[Crónica publicada no JM, 06-II-2016, p. 2.]

domingo, 31 de janeiro de 2016

Crónica 40

Telefonaram-me do cemitério, Pai, nessa sexta-feira, dia 08-I-2016. Eu tinha pedido – queria ser informado de quando o iriam exumar. A sua campa foi a n.º 1 do cemitério de S. Gonçalo, no tabuleiro superior, perto do cipreste mais rarefeito e magro que lá existe. [Talvez ali a terra não seja tão fértil; talvez o cipreste tenha sido plantado depois dos outros ciprestes.]
Bem, por um telefonema deram-me a notícia – deixei lá o meu número de telemóvel por duas vezes, pelo menos – que a terra iria ser revolvida. Perguntaram-me se podia estar no cemitério nesse mesmo dia. Mas era dia de trabalho, Pai.
Fui no dia seguinte. Antes, acabei a sexta-feira – e iniciei o sábado – num convívio familiar, já no rescaldo da Festa. Cheguei a casa depois da meia-noite – cheguei a casa, também, algumas bebidas depois. Recebi no início dessa madrugada, antes de me deitar, um telefonema de um número privado. Atendi mas ninguém respondeu.
No sábado de manhã fui ver os seus ossos, Pai. Pensei que iria observar os coveiros desenterrarem os seus vestígios. Mas a terra já havia sido removida. Um quadrado perfeito, de paredes bem aprumadas, estava cravado no solo, e, de entre os dois cadáveres cobertos com o respectivo forro do caixão, o Pai era um deles – no lugar n.º 1.
Fui com a Bruna, que quis ir comigo. Correu tudo bem, Pai. Esperámos pelo coveiro – um homem magro, tisnado, que só deveria aguentar o ofício com uns vinhos secos ao fim do dia – ou até durante. O Pai sabe como é. A gente sabe como é.
Ele entrou no buraco e levantou o véu. Tudo o que de si, Pai, era músculo, nervo, órgãos, pele – tudo o que não era rígido – tinha sido consumido pela humidade da terra. A sua roupa estava intacta, com excepção da camisa, uma boa camisa, que estava em farrapos. Lembro-me da sua gravata, intacta, em tons de roxo.
O coveiro começou a recolher os ossos, limpos, pardos, bem delineados. As meias estavam também completas – e dentro delas os ossos dos seus pés, bem divisados. A sua roupa foi uma peneira perfeita. [Com excepção da camisa em farrapos – uma boa camisa; como eu a vi, parecia que ainda não tinha saído da agulha da bordadeira ou do tear.]
O coveiro, acocorado, suspirava e bufava. Pareceu-me que o osso nasal havia se precipitado para dentro. Não tenho a certeza. O crânio tinha, aqui e acolá, um tom enegrecido. Não quis pedir ao coveiro para ver melhor – o osso nasal e as cores. Ele já tinha feito um molho com o véu - o forro - do caixão. Não vi sinais de madeira. Perguntei ao coveiro, antes do terminado o processo, sobre qual seria o destino dos ossos. Seriam, pois, enterrados na mesma terra que os havia limpado – que a si, Pai, havia consumido parcialmente. O coveiro levou a sua roupa para um vazadouro próximo, e ouvi-o tossir muito. Fumei um ou dois cigarros enquanto lá estive. Viemos, depois, embora.
Escrevo isto, Pai, porque um dia hei-de me esquecer dos pormenores – de todos os pormenores – de tudo. O Pai faleceu a 29-V-2008. A terra onde o seu corpo caiu foi escancarada mais de sete anos depois – a 08-I-2016. Eu estive lá, Pai, no dia seguinte, a 09-I-2016.

sábado, 23 de janeiro de 2016

Crónica 39 [As Setas]

Quando a memória não chega – ou quando a realidade, seja o que isso for, é demasiado semelhante –, usemos a ficção. Como no monólogo que se segue.
«Nesse ano, já no século passado, aluguei um quarto. Nos primeiros tempos foi assim: tudo calmo, nada a reportar. Até que, um dia, apercebi-me que, no percurso que fazia a pé de regresso a casa, em todos os postes de iluminação, semáforos e sinais de trânsito, em todas as canalizações exteriores dos prédios, havia setas pintadas. Sim, setas – que apontavam na direcção do meu trajecto. Cheguei a contá-las mas não me lembro de quantas eram. Eram muitas. Só me lembro que, ao contá-las, e distraído, choquei uma vez com um mal-encarado. Ele prometeu que, se voltasse a acontecer, me rebentava todo – ele e o bando dele. Comecei a ver a vida a andar para trás – no sentido das setas, mas a andar para trás.
[...]
«Cala a boca. Deixa-me terminar a história. O que é que me encalacrou nisto tudo? A última seta ficava imediatamente antes da porta da minha casa. Pois, ‘tás a ver – agora descalça esta bota! O que é que isto podia significar? A verdade é que comecei a caminhar na rua com um medo dos diabos. A cada dia que passava, eu...
[...]
«Posso continuar? Andar armado? Mas eu sou algum Stallone, ou quê? Bem, ainda precisas dos restantes caracteres para acabar esta crónica, ou não?
[...]
«Quase 2000 caracteres. Pois, com espaços. Pronto. Um dia voltava eu, pé ante pé como um gato medroso – já viste um gato com medo? eu nunca vi, mas era assim que eu estava – e, chegado à porta de casa, aí mesmo onde a última seta acabava, vejo um tipo... careca, de barba desgrenhada e olhar um pouco estrábico. Assim como tu. Talvez mais velho ou mais novo, não sei. Tem calma, não te chateies. Ora bem, ao peito tinha ele uma tabuleta e na mão direita um sino. Na tabuleta vi escritas estas palavras: “Lázaro Aforista”. Lázaro, sim – ou leproso. Acho que já lhe tinha caído o nariz. Em todo o caso, ao lado das palavras, lá estava uma seta. Ele tangeu uma vez o sino e disse: «Saber o segredo é antecipar a morte.» Devia ser isto um aforismo. Temi pela minha vida.
[...]
«Tinha de temer, não? Segredo? Morte? Se estivesses lá tu... Bem, ele tocou o sino mais uma vez e pregou, como uma esfinge, outro aforismo – pensei eu: “Aprender pressupõe esta coisa: o amor pelo erro. Mas é um amor não incondicional, não romântico, não narcisista. É um amor que abandona a coisa amada quando ela muda – ou morre –, ou quando nós mudamos – ou morremos.”
«Uma coisa marada. Aprender? Amor? Erro? Para desanuviar, pensei em lhe dar uma moeda. Talvez fosse isso que ele quisesse. Quando levei a mão à carteira, o sino tocou de novo. Era de madrugada e ainda pensei que algum vizinho se manifestasse por causa do barulho. É que o sino e a voz do homem faziam estremecer a rua. Talvez não fosse má ideia se um vizinho chamasse a polícia. Pedi-lhe que me dissesse, afinal, o que queria. Disse-me ele: “No que verdadeiramente importa, se tens de pedir é porque não mereces – ou porque não és considerado merecedor.”
«Bem, já eram altas as horas e eu estava cansado. Era altura de acabar com isto. Tornei a perguntar, a gaguejar, se ele precisava de umas moedas para uma sopa. Ele encolheu os ombros e esfumou-se.
«No dia seguinte as setas tinham desaparecido. Mas a tabuleta apareceu-me no chão do quarto.»

[Crónica publicada no JM, 23-I-2016, p. 2.]