sábado, 28 de outubro de 2017

Crónica 87 [A Escrava]

Quando as labaredas saltaram, naquela casa de perdidos, do fogão gordurento para os lençóis da enxerga, nela estava deitado um menino. O fumo declarou-se através das grossas frinchas da porta sem tranca; alguns vizinhos entraram, levantaram a braços a criança – a quem o fumo não acordou –, saíram, encostaram a porta e deixaram aquelas paredes arder.
A mãe não estava ali – estava longe, na folgança, participando de uma vertigem danada de copos de vinho, a meio de vultos sedentos – quanto mais emborcavam, mais sede tinham para emborcar.
Interveio o Estado. O filho foi retirado à mãe. A mãe foi encerrada numa instituição para doentes mentais. [E o pai – na verdade, o pai não existia; era um qualquer, segundo a mãe que o dizia sem comoção.]
Na casa de saúde fizeram-lhe um diagnóstico – deram-lhe uma sentença como um estigma, gravado nela com um ferrete. Primeiro disseram: era incapaz, negligente, no cumprimento dos deveres parentais – em poucas palavras, má mãe. E depois acrescentaram: era promíscua, ninfomaníaca – e, nessa época, fora e dentro dos muros dessa prisão asséptica, ser ninfomaníaca equivalia a ser louca, privada de asserto, daninha, pecadora, endemoninhada. Portanto, ela era o diabo personificado – e de saias.
[Cá fora, antes e depois, os vizinhos diziam o mesmo, ainda que por palavras de lama e de lodo. Por vezes é isto que acontece: a ciência não acrescenta nada – e só confirma estereótipos e julgamentos e condenações sociais.]
Surgiu uma alternativa. Ou ficavam mãe e filho presos na máquina fria e concentracionária da assistência estatal – ele órfão; ela louca; ou ambos ficavam à guarda de uma família tutora – que, para manter sempre vivo o seu louvável espírito de caridade cristã, teria o prosaico incentivo de receber um subsídio. Optou-se pela segunda via.
A partir daí começou a escravatura.
Todos os dias ela começava pela cozinha, na madrugada fresca, e preparava a primeira refeição, depois de varrer e esfregar. Comia depois de todos os outros comerem. Passava aos quartos de dormir da família – pais e filhos, um magote de gente a ordenar e para servir – e limpava, arrumava, brunia. Assim ia, enfim, de quarto em quarto, compondo e lavando, antes do almoço. Fazia o almoço – e só comia, na cozinha, sozinha, depois de toda a gente comer. A tarde era gasta em outras tarefas, dentro e fora de casa. Por exemplo: era preciso acartar sacos de cimento para vestir paredes – e ela ajudava-se à carga; era preciso mudar a fralda e dar banho a uma idosa da família – também para isso estava ela ali. Não tinha tempo para se sentar, para uma apara de conversa, para alguns minutos de televisão. Não tinha tempo para o filho – a quem proibiram de a chamar de mãe; a quem ensinaram a olhar a mãe, agrilhoada na mesma casa, como uma estranha. No fim do dia, podia finalmente ver a telenovela com a família acolhedora – e via, sentada no chão da sala.
Os erros desta mulher justificaram tudo: o trabalho de escrava; o desrespeito e a zombaria – por adultos e jovens incitados por adultos; os maus tratos e a violência – por todos.
Um dia – entre outros dias –, o chefe de família, um madraço que vivia de engajar apostadores no jogo do bicho, acusou a escrava da falta de algumas moedas. Não esperou por palavras de defesa – acto contínuo, os canhotos eriçados dele arrancaram um baque surdo do osso maxilar dela, sob a pele lassa e enegrecida.
Há vidas que não têm – nunca terão – carta de alforria.

[Crónica publicada no JM, 28-X-2017, p. 19.]

sábado, 14 de outubro de 2017

Crónica 86 [Pela Madeira Adentro]

Numa esplanada um homem, de nariz atacado de rubor, tira um gole de uma garrafa de cerveja. Há muitos desta igualha, pela Ilha adentro, naufragados em terra – com um copo ou uma garrafa como âncoras. São homens desocupados, ou em intervalos de tempo, de pele carbonizada, de frases decepadas e berradas, de andrajos ao deus-dará. São homens perros oleando-se com álcool. [Esta frase, diga-se, é inspirada no poema “Homens que são como lugares mal situados”, de Daniel Faria.]
Reparamos em mulheres de outra estirpe – andarilhas nos caminhos, pressurosas nos trabalhos, risonhas e falastronas nos snack-bars, a contar o dinheiro para o café e para as compras, com outro sentido sobre as coisas e sobre os dias.
É uma Ilha em duas ilhas – uma Ilha dividida por sexos.
Num restaurante, um gato preto e branco aproxima-se das mesas. Vai lento, insinuante. Está doente – assim vemos os olhos remelosos e pesados. Quer estar entre os humanos, entre as suas pernas, sob o toque de talheres em pratos. As pessoas enxotam-no; ele esquiva-se; ele retorna. Ao lado de uma mesa, o gato senta-se e espirra; ouve-se uma pieira saída das narinas felinas.
As primeiras ondas, na maré baixa, de uma praia de calhaus e areia preta, estão sulcadas de aprendizes de desportos marítimos. A um homem estranho à aprendizagem – um intruso em águas ocupadas – um dos instrutores avisa: “Aí há corrente.” Ele ufana-se e diz, de si para si, que ali foi a banhos a sua ascendência – e que a ele ninguém diz ou avisa sobre os perigos dessas águas. A verdade, porém, é que suou para sair do mar – as ondas subiam para a areia; mas por debaixo das ondas a corrente arrastava-o para o oceano. Quando pisou basalto seco, acendeu um cigarro e pôs-se a pensar. [Lembrou-se que aquela praia já teve a fama, segundo os antigos, de ceifar incautos e aventurosos.]
A praia está suja – há tocos queimados e plásticos descolorados, farpas de canas e folhagens esventradas, beatas sobreviventes e pontas de ferro zarcãs de ferrugem. Assim está a praia – e assim estão também outras pequenas praias e falésias, baldios, adros de igrejas, bermas de estradas. Há mãos despreocupadas e aleivosas na forma como se tratam os apêndices – os despojos – da natureza e da civilização.
Pela Madeira adentro há ruínas: palheiros, solares, engenhos; casas de pedra aparelhada – com lintéis ajoujados e ocas de tecto a receber o sol, as lagartixas, os ratos, o lixo, o silvado. Por vezes, ao lado destas paredes onde homens outrora respiraram, levantam-se mastodontes angulosos de blocos e cimento com demãos garridas – já traídos pela humidade e pela passagem de um tempo rápido e sem memória.
Há vilas a viver, durante a semana útil, sob o ritmo cardíaco dos transportes e dos pés dos turistas. Há restaurantes onde se ouve o frigir do peixe-espada, de outro pescado, de carne vermelha para pregos. Os turistas chegam, fotografam, mergulham, comem, falam nas suas línguas, gesticulam, põem-se ao sol, pagam, vão-se embora.
Com olhos nómadas, motor rasante e pena descuidada na escolha das palavras, estas paisagens foram recolhidas em vilegiatura. Percorremos a Madeira rural no final da liturgia eleitoral, eivada de imagens de gente sorridente, e nos dias seguintes, quando a Ilha voltou, cansada, ao normal.
Por que caminhos vais, minha terra? Qual é o teu destino?

[Crónica publicada no JM, 14-X-2017, p. 15.]