sábado, 29 de abril de 2017

Crónica 74 [O Regresso]

Ele encontrou um velho camarada de armas e disse-lhe, com entoação nas primeiras vogais: “Ah homem, ainda não morreste?” Ambos riram. Cada qual falou as poucas palavras típicas deste tipo de avistamento – na rua partilhada por peões e carros, à porta da tasca. [Ele ia a entrar. O outro ia a sair.] Ninguém convidou ninguém para um copo – ou para mais um copo. Tinham coisas a fazer, coisas em que pensar – pouco dinheiro; e pouca saúde. Despediram-se – e as caras vestiram-se de um ricto de embaraço, amarelado, cúmplice.
Ele entrou depois, cumprimentou a funcionária e sentou-se – como costumava fazer, uma vez ao dia, a meia tarde. Para ele, reformado, era este o marco do dia – a fronteira a partir da qual desenhava um antes e um depois. A mulher ainda trabalhava. O neto raramente estava com ele. A casa estava vazia. [A tasca também – mas não havia problema.]
A bica chegava-lhe à mesa, sem precisar de pedir. Durante alguns minutos – os necessários, os suficientes – ficava a olhar para a porta. Os carros, rápidos, temerários e de vários matizes, que por vezes pareciam fazer tremer o umbral do estabelecimento, não lhe enxotavam o olhar fixo.
Nesse dia lembrou-se de um outro camarada de armas, que com ele esteve em Angola. Vários anos depois de voltarem, encontrou-o no Funchal, na Rua Fernão de Ornelas, descalço e de grenha empastada de sujidade. Estava sem casa e sem família. A partir daí, quando o via dava-lhe um cigarro e uma moeda, de cem escudos – inflacionados, no novo milénio, para um euro. Era certo e fatal – tal como era fatal ele acompanhar estas dádivas de uma resonda breve e mastigada. [O amigo sorria e começava uma conversa alheada, como quem tentava dissipar a reprimenda.] Dizia-lhe, mesmo passadas três décadas do regresso do mato em África, com ênfase no primeiro erre: “Ah rapaz, o que tu eras e o que tu és!”
Pensava ele nisto – no amigo; nas vítimas perenes da guerra – quando a funcionária do bar lhe perguntou se ele iria à serra, no 1.º de Maio. Ele levantou a cabeça. Ela repetiu e acrescentou: o 1.º de Maio; feriado; Dia do Trabalhador. Ele riu como quem tosse, como quem não se importava com isso.
Baixou a cabeça, bebeu de um trago a bica sem açúcar e regressou ao novelo de memórias por desemaranhar. Uma memória, tão macerada de tão convocada, começou com parte da Companhia a seguir o jipe. Os homens sabiam o que tinham de fazer: os pés tinham de pisar os exactos lugares desenhados pelo rodado da viatura – nem mais à esquerda, nem mais à direita. Até ver, pelo menos aquele trilho duplo estava livre de minas. Um amigo, que adiante dele caminhava, com a G3 ao lombo e os braços sobre a arma – o direito caído da coronha, o esquerdo pendente do cano –, distraiu-se. O pé direito pousou meia dúzia de centímetros fora das marcas dos pneus e uma mina deflagrou.
A funcionária interrompeu este fluxo de sangue e estilhaços: perguntou-lhe se tinha feito alguma coisa especial dias antes, no 25 de Abril. Ele ficou imóvel. Ela repetiu e ajuntou: 25 de Abril; feriado; Dia da Liberdade; cravos vermelhos. Ele olhou-a e sorriu, com cansaço e bondade.
A medida do dia estava completa. Levantou-se, pagou e saiu. Na rua acendeu um cigarro, que o fez tossir com o pescoço e com o peito.
O homem que foi para a guerra em África não foi o mesmo que veio – assim pensou. E logo simplificou: talvez não tivesse regressado – talvez o regresso nunca tivesse sido possível.

[Crónica publicada no JM, 29-IV-2017, p. 2.]

sábado, 15 de abril de 2017

Crónica 73 [A Carga]

Ele orgulhava-se – sem bazófia, sem fazer gala disso – da força que tinha. No mercado, enchiam-lhe os maiores cestos de vime com bananas. Ajudava-se ao peso – de setenta, oitenta quilos – e, com a base do cesto como uma cunha a lhe trincar o lombo esquerdo, subia, correndo, os degraus até o andar superior. O patrão ficava contente: um dia elogiou-o dizendo – com um jeito trôpego – que era um bom burro de carga. O homem, de pequena estatura – pouco mais de metro e meio –, aceitou como pôde o elogio e viu-se dilatado nos seus brios.
Trabalhou no sector da banana – carregando, outrossim regando, cavando e mondando de joelhos a terra até as unhas começarem a sangrar. Andou depois nas obras, e o encarregado, que lhe apreciava a afoiteza, a desenvoltura e a força, nomeou-o responsável pela condução dos trabalhos nas suas ausências. O homem tanto vestia um pano de parede em tempo inédito como, para dar o exemplo aos serventes – apesar de a isso não estar obrigado –, carregava três sacos de cimento de uma só vez: um às costas, os outros à laia de braçados, cada saco cingido por cada braço.
De maneira que era assim a vida, desde a adolescência – trabalho, trabalho, trabalho. Nada havia de excepcional nisto. O homem, em menino, cresceu vendo pai, tios, irmãos e primos mais velhos – todos baixos, troncos secos; todos bois de força – acorrerem na maré baixa à praia e encherem sacas de areia molhada, que transportavam, à centena de quilos de cada vez, até aos sítios altos da freguesia. Viu isto – e outro tanto. E o que foi vendo, no que ao trabalho concerne, haveria de ser o seu destino – sem drama, sem fatalismo, sem consciência até.
[É bom de ver que estes homens são de molde a envelhecer cedo – de trabalho e de álcool. Amiúde são acometidos de uma trombose. Cedo entrevados e embrutecidos, com os ossos torcidos das cargas, tornam-se, naufragados a um canto da casa, trastes ébrios dedicados a massacrar e a condenar as almas dos familiares. Estes comportamentos também os foi observando o homem da nossa história – agora, todavia, com um certo pressentimento de desgraça.]
Com vinte e picos anos de idade, o homem juntou-se com uma mulher, após um namoro sumário e alegre. O neófito casal foi viver com a família dele. Foi dada autorização para levantar um piso sobre a casa paterna, que era um completo ninho onde coabitavam três gerações e inclusive parentes colaterais. O homem assentou blocos, armou cofragem e deitou, com familiares e amigos, a laje final. Esta tarefa, como se costuma dizer, deu vela – às quatro horas da manhã ainda um verdadeiro cordão humano passava, de braço em braço, baldes de massa.
Mas depressa a convivência se tornou um inferno. Entre pais, sogros, irmãos, cunhados começou um fluxo peçonhento de bilhardices e invejas, de rancores e ressentimentos. Rumores tépidos subiram a gritos. O patriarca, falho de discernimento, optou por culpar o casal recém-chegado – que entretanto tinha tido um bebé. Demente à força de aguardente e por falta de paciência e compreensão, numa noite o pai chamou o homem, o seu filho. Disse-lhe que, se no dia seguinte ele ainda ali estivesse, o mataria, assim como à mulher e ao filho, e cavaria um buraco na fazenda para os enterrar.
No dia seguinte já não estavam. Para o homem, esta carga foi a mais pesada que alguma vez teve de carregar. Uma carga que nunca poderia ser aliviada. Uma cruz.

[Crónica publicada no JM, 15-IV-2017, p. 2.]