sábado, 22 de dezembro de 2018

Crónica 113 [O Que Passa]

«Repara. Ainda ontem parecia que eu tinha acabado de ver o fogo-de-artifício na dobra para o ano novo. E agora o ano novo já ‘tá a morrer. E daqui a dias outro fogo vai rebentar e iluminar – como se fosse, ao mesmo tempo, as exéquias de 2018 e a aclamação de 2019. Ano morto, ano posto. [Não leves a mal – o trocadilho.] E assim há-de ser nos próximos anos, cada vez mais rápidos, menos conscientes, com mais trabalhos, com menos memórias. Parece que ainda ontem tudo começava de novo – e, afinal, vamos a ver, tudo já acabava, tudo já acabou. É assim – até morrermos.
[...]
«Pois, mas repara – qual é o problema? Isto não há volta a dar. Há dias ‘tava deitado, de madrugada, a ver as manchas de humidade no tecto do quarto e as teias de aranha a ondularem, marionetas, fazendo sombras, zombadoras, com os restos da claridade. Mas é difícil – repara –, talvez impossível, as coisas obscurecerem por completo. Os teus olhos encontram sempre uma réstia de claridade. Se quiseres ver. Se não quiseres, também não haverá grande mal. É assim – a vida.
[...]
«Sim, mas... Pronto, tens razão – há mal quando não se quer ver. Se não se procurar para além do sebo da ponta do nariz, sim, tens razão, a coisa não alumia, não se aclara, não te dá a ver o dia após o outro dia – p’ra começar de novo. Talvez, bem, uma solução é fazer balanços, ir avaliando. Mas um balanço muda como muda a tua matemática do tempo. Daqui a dias vais fazer contas: não de meses, nem de estações, nem sequer de anos únicos – mas de lustros, de décadas, de toda uma vida, se tiveres esse azar. Os espaços entre os números com que vais contar a tua vida hão-de ser maiores – e, mesmo que pareça contraditório, esses espaços, ainda quando maiores, hão-de ser galgados com mais rapidez, com o tempo mais sôfrego.
[...]
«Não te importes. Eu falei em azar, sim – qual é o problema, outra vez? Azar ou sorte. Não tens nada ao teu controle, submisso, debaixo do teu poder. Pões na terra, escreves, deitas água, levantas paredes. O que é que te interessa se árvores, palavras e casas vivem depois de ti? Fizeste o teu trabalho – ‘tá feito. Bem, mas eu falava em teias. Vais ver, ou não vais – isto pode ir, como digo, para um lado ou para o outro; azar ou sorte; enfim –, vais ver, nas teias no tecto, o que fizeste e o que viste fazer. E vais ver que foste injustiçado e que foste injusto. E que não quiseste ver o que era p’ra se ver. Que não quiseste saber. Que não agiste quando e perante o que te parecia certo.
[...]
«Exacto. E muito mais. Que devias ter regado com mais frequência aquele cântaro onde puseste um alecrineiro e um pé de segurelha. A segurelha ‘tá praticamente morta – como este ano. Mas o alecrim aguenta-se. Eu não sou supersticioso, mas o alecrim... É preciso cuidar dele. Não queiras ser responsável por faltar água e sol e terra a um alecrineiro*.
[...]
«Sim – é um exemplo estranho. Mas o alecrim é resistente; e também é sagrado – como nós, resistentes e sagrados. Mas há mais coisas, tantas... E vais ver como foste traído, insultado, maltratado, apoucado, o diabo... Podes usar as piores palavras – o pior que pode acontecer, ao fazeres isso, é exagerares um pouco. Vais ver, no fim de contas, que te faltaram à palavra. E que também tu faltaste à palavra.
[...]
«Sim, também tu, também eu. Não é preciso dar a palavra para faltar à palavra. Os nossos maiores compromissos não carecem de voz ou de palavras rabiscadas no papel. Convém saber. Convém ter consciência. Convém não deixar o tempo correr.
[...]
«Deixar o tempo correr é deixar a memória perder o apuro, ficar menos vigilante. Por isso, há que reparar – e lembrar. Há que recordar o que se puder – o mal e o menos mal. E depois – há que tomar conta, cuidar.
[...]
«Sim, cuidar do que passa. O que passa é tudo o que nos resta. Bem, se não nos virmos antes, continuação de uma Boa Festa. Vemo-nos no próximo ano. Até logo.»

[* Esta crónica estava, guardada, no alforge destes últimos anos. Quando mudei de casa o alecrim secou – e morreu. Não me volta a acontecer.]

[Crónica publicada no JM, 22-XII-2018.]

sábado, 8 de dezembro de 2018

Crónica 112 [Um Diálogo (2)]

portanto – já ‘tás a abrir o bico – por causa deste verão de s. martinho retardatário – também eu vi – quando caía a tarde – há dias – quando a tarde tombava sobre a minha – e a tua – cabeça – vi os pés e os calcanhares das nuvens a abrasar – e eu disse – amanhã vai abrir um parêntesis – no tempo incerto dos nossos invernos – clementes – mas de frio molhado e escarninho que morde os ossos – abre parêntesis – fecha parêntesis – amanhã o calor começa – amanhã o calor acaba – retorna o frio – regressa a chuva que vem não vem – metem-se as alergias pelas narinas adentro – pela garganta abaixo – voltamos ao mesmo – às nuvens frias como se fossem abóbadas ajoujadas de chumbo – há que trabalhar – e descansar – que é como quem diz – deitar-se na cama – e esperar o sono vir – se vier – antes disso – és bom filho – faz-te bom filho – é preciso visitar a mãe – telefonar ao pai – és bom cidadão – e pagador – faz por isso – já ‘tás a mexer no smartphone – há que abrir o email sem medos – receber uma conta – tirar a referência – o valor – coçar o casco da cabeça com as unhas negligenciadas – tortas – disse-te alguém – de certeza – por causa do arco imperfeito das unhas – e as linhas quebradas da engomadura do colarinho da camisa – e a cor das calças que não diz com o padrão da camisa – portanto – não tens descanso – trabalhaste o dia – queres encher o focinho com um litro de vinho tinto fora a quarta parte – mas tens a conta p’ra pagar – e hoje não é sexta-feira – nem sequer é sábado – é dia como outro dia – interrompido – e a conta tem de ser paga até amanhã – precisas de ir ao multibanco – vai-te embora – já falamos
           
já voltei – tenho outras contas atrasadas – tenho de ir à loja do cidadão – a vida ‘tá cara como lume – mas isso tu sabes – quer dizer – saber sabes – não te faz é grande diferença – ‘tás-te a borrifar p’ra isto tudo – não vale a pena torceres o pescoço – enfim – não leves a mal – além disso – tenho o carro na oficina – ‘tá a fazer a mosca – quando engata encrenca – parece que vai avariar – assim mais ou menos como tu – pronto – como eu também – daquela abelha já não espero grandes jornadas – entre o mel e a porcaria ‘tá visto quem ganha – o que é que se há de fazer disto tudo – trago sempre grandes ideias p’ra falar contigo – quando combinamos um café – mas depois a conversa não engata – encrenca – dá-se a constipação na alma da amizade – mas tu entendes – nós dois sós – juntos – com palavras – somos a síntese da amizade – o ensaio sem ponto final da filosofia quotidiana do milénio terceiro – palavras cruzadas para quê – mais daqui a pouco vou p’ra casa – abro o youtube – tento ver um vídeo do jordan peterson – aprender a carregar o nosso fardo – aceitar o sofrimento e a dor – aceitar que é o melhor que nos acontece – aceitar – mas custa – custa – dá trabalho – aos poucos vai-se lá – digo eu – nestes 30 e tal anos – nesta juventude retardatária – como este inverno de s. martinho – tu o disseste – há dias eu vi um menino a chorar agarrado à cintura da mãe – neste mesmo café – passava já das vintenas das horas – e a mãe dizia – e o pai dizia – ao menino – que ele ‘tava tontinho – mas ele só queria ir p’ra casa – há algum mal nisso – mete tu agora aforismos sapientes nisto – há gente que não quer fardos – obrigações – cardos – esforços – cuidados – vagas contra o conforto – como o choro de quem depende de nós – mas é preciso parar – recolher – pôr comer ao lume – deitar-lhe sal e pimenta – cuidar – depois pôr a dormir – ver se as portas estão bem fechadas – fechar de novo as bocas do gás – o gás – por falar nisso tenho de comprar uma garrafa p’ra pôr de reserva – esquecer essa tontice da felicidade – essa putaria perigosa – terminante – absoluta – carnívora – pânica – sem pergunta – sem resposta – sem contestação ou réplica – aspirar apenas a um recto e magro contentamento – pode ser sentar-se e puxar de um cigarro – tomar longamente de um fôlego – aceitar um defeito próprio – ou uma falta – ou uma agressão – e adormecer – depois do cuidado carregado – nutrido – sossegado
           
força / toma conta de ti
juízo na cabeça / não bebas muito
deita-te cedo / agarra-te à jorna
um abraço forte / outro p’ra ti

[Crónica publicada no JM, 08-XII-2018.]