segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Crónica 21

1.
Os dois acontecimentos haviam eclodido há já muito tempo, separados por um parêntesis de dez anos. Ambos constituíram duas portas – a entrada; a saída – de uma antecâmara do destino. O primeiro acontecimento assaltava-lhe por vezes a memória. O pai, na voragem do desenlace do divórcio, ao abandonar o lar, culpou-o a ele, somente a ele – o filho do meio, entre os vários irmãos. Lembrou-se de se ter interposto entre o pai quase agressor e a mãe quase vítima – o pai tentando vergar-lhe os braços perante o desespero da mãe. Mas todo ele foi força bruta e orgulho – e os braços como troncos ilesos. Tinha 15 anos. O segundo acontecimento reencontrava-o por vezes magoado. A mãe, na voragem de um enlace amoroso, e sofrendo a desaprovação da conduta do parceiro por parte deste filho – ânimo justo; orgulho –, fugiu de casa. Numa manhã estava; à noite não estava. Tinha ele 25 anos, era o filho do meio entre todos os filhos – e a sentença de culpado ditada pela mãe.
2.
Nesse momento, há um lustro portanto, tomou uma decisão. A de compor um repertório – num caderno de linhas de capa preta, pouco maior do que uma folha A5, de páginas numeradas no canto inferior direito, com entradas datadas no canto superior direito – de factos, dados, acontecimentos, palavras e expressões, ou seja, de todos os insultos, de todas as desconsiderações, de todos os abusos, de todos os desprezos, de todas as injustiças, de todas as violências, dos quais era, não a origem, mas o destinatário. Era esse, desde há um lustro, o seu destino. De tanto arrolar, encheu-se-lhe o caderno. Na realidade, ninguém podia imputar-lhe mau carácter; era tanto amável e justo quanto exigente com os outros, com os amigos – numa refrega constante de procura de afectos e de proximidades. Usava de uma correcção e de uma sabedoria precoce muito consideradas, com efeito, mas ninguém o queria por perto – uma refrega constante, afinal, feita de debandadas, de desconsiderações e de insultos. De tanto escrevinhar, pois, encheu-se-lhe o caderno.
3.
Nesse ensejo, comprou um obscuro folheto de um também obscuro autor: Aforismos para o Dia Seguinte. Folheou várias vezes. Nada lhe fazia sentido – cinco euros mal empregues. Quando os seus miolos ensanguentados redecoraram a parede da sala, o magro volume ficou aberto na página 30, onde se podia ler o «Aforismo 127»: «Ser injustiçado não é uma sucessão de acasos; é uma condição e um signo – ambos atribuídos e, o que não é despiciendo, assumidos.»