domingo, 30 de outubro de 2016

Crónica 62 [O Perfil Errado]

Este homem que agora vejo está no meio da casa dos vintes. [Na verdade, não sei se vejo, se recordo, se imagino. Não interessa.] Encontro-o à porta do centro de saúde, sentado como pode, de cabeça baixa e afunilada – esmagada – entre as mãos grossas. Quando ergue a testa pode ver-se que os olhos, com uma capa salina, latejam. Parecia pasmado – e, ao mesmo tempo, lúcido. Ele espera que a porta abra.
Este homem tem uma depressão. Sabe-o porque, quando acorda – ou quando se levanta da cama; há dias e dias que sofre de insónias –, lembra-se de todos os sonhos e pesadelos que teve. Sabe porque todos os pequenos erros – miuçalha, cisco – da sua vida ainda por viver caem-lhe sobre a cabeça com o lastro de trovões.
Soube-o, porque, num dia em que se lançou ao caminho rotineiro, a meio não conseguiu dar um passo mais. Pareceu-lhe que as pernas se infiltravam pela calçada e ganhavam raízes até à bacia. Pensou que só lhe restava esbracejar – coisa que não fez, por não ter força e por temer que também os braços petrificassem, aéreos, acima da cabeça.
De modo que aconchegou-se-lhe à cabeça pesada – como um lampejo insuspeito, contranatura – a ideia de que poderia, de que deveria, pedir ajuda. Não lhe apetecia muito falar. Mas resolveu-se a fazer alguma coisa.
Abriram as portas do centro de saúde – e ele, em conjunto com três velhotes, um homem, duas mulheres, entrou. [Olharam-no de diferentes jeitos – ele com curiosidade, elas com desdém e tristeza.] Esperou, deixou chegar a sua vez e, na secretaria, perguntaram-lhe o que queria. Ele disse que julgava saber que o centro de saúde oferecia consultas de psicólogo; e solicitava, assim, se possível, uma consulta.
As senhoras da secretaria olharam-no de cima a baixo – uma com indiferença, outra com espanto. Perguntaram-lhe se tinha médico de família. Ele disse que não. Disseram-lhe que deveria ter. Ele disse que compreendia, que estava certo – mas que não tinha. Acrescentaram que só este médico poderia enviá-lo à psicóloga. [Ele ficou calado.] Olharam-no com estranheza. Disseram-lhe, para alívio, que ele poderia falar com a enfermeira-chefe – e que ela, então, ajuizando, lhe poderia franquear as portas da psicóloga. Ele esperou.
A enfermeira olhou-o, de cima a baixo, com inquisição e alguma reprovação. Perguntou-lhe se ele estava desempregado. Ele disse que não. [“Graças a Deus.”] Perguntou-lhe se ele era alcoólico. Ele disse que não. [E pensou – “Nesta situação, quem me dera.”] A enfermeira olhou, de baixo a cima, agora com pena. E disse para ele esperar.
Quando a psicóloga chegou passava já das 09:30. A enfermeira-chefe informou-a de que havia um rapaz – ele – que pedia uma consulta. A doutora virou-se para o lado onde ele estava e deslizou a visão – da direita para a esquerda, da esquerda para a direita – como quem fixa a parede por detrás da cabeça dele. [Ele, confuso, olhou para trás.] Nunca o olhou nos olhos. Disse ela que estava à espera de um adolescente que estava com dúvidas – ou crises – vocacionais. [Ele olhou em redor – não viu ninguém à espera; mais confuso ficou.] Ela entrou no gabinete. [Ele esperou.] Passados minutos, ela saiu e olhou – com o mesmo jeito desfocado. Depois disse que, porventura, o adolescente esperado poderia ainda aparecer. E que, portanto, seria melhor que ele viesse noutro dia.
[Auxílio – seja qual for, pedi-lo e merecê-lo só é lícito a quem tem um perfil convencionado. Há perfis certos – e há perfis errados.]

[Crónica publicada no JM, 29-X-2016, p. 2.]

sábado, 15 de outubro de 2016

Crónica 61 [O Ocaso]

Entrou no hospital com um tumor na garganta.
Bem – entrou no hospital porque, pouco a pouco, os ataques de tosse subiram até parecer que lhe partiam as aduelas; porque cuspia sangue – cada vez mais sangue; e porque ficou, de súbito, com o esófago vedado – a saliva, cerca de dois litros que o corpo produz por dia, tinha de ser cuspida. [Por esta razão, já no hospital, a voz foi se lhe embargando até se tornar um gargarejo cavernoso.]
Exames foram feitos – e perdidos, e achados, e refeitos, e só tarde mereceram a atenção de um médico. Depois de os ver, o médico disse aos filhos: “Ele ‘tá frito.” Era um cancro.
Os filhos, entre o odor esterilizado e as paredes descoradas do hospital, ficaram aparvalhados por esta estocada inesperada – por saberem da doença e por só saberem, nesse momento, o quão grave era o estado do pai. Sentado na beira de uma mesa, o doutor responsável e um outro colega começaram a discutir os presumíveis tratamentos, os prováveis desfechos, as soluções.
Não havia solução. O homem ali ficou, no hospital, com uma dieta intravenosa e de morfina enquanto o cancro ia plantando metástases como minas no corpo. Durante pouco mais de um mês mudou várias vezes de quarto. Por fim, recolheu a um quarto de uma só cama – o quarto de isolamento.
Entre as visitas que apareceram, numa tarde o melhor amigo surgiu e ficou, de pé, de braços cruzados, num dos cantos do quarto, em silêncio cúmplice com o homem doente. Este não conseguia articular palavras audíveis; o visitante não disse nenhuma. Não eram precisas palavras – ali, estando as coisas como estavam, só estorvariam. Por fim, o amigo chamou o amigo doente, despediu-se e mostrou o punho com o polegar virado para o tecto. O homem com o tumor respondeu da mesma forma. 
Um dos filhos perguntou, no ocaso desta história, se o pai poderia dar uma volta rápida. Os médicos e os enfermeiros, com humanidade e face ao inevitável, anuíram – contanto que o passeio fosse mesmo curto. Foi reforçada a morfina ao homem e tirou-se-lhe o cateter. Uma enfermeira forneceu-lhe um pacote de açúcar para que, em caso de fraqueza, levasse alguns grãos aos lábios.
O filho levou-o, primeiro, à freguesia natal, no norte da Ilha. O homem percorreu de carro – não quis apear-se – o seu sítio e olhou uma derradeira vez para a infância e para a juventude.
Depois, quis ir ao local onde trabalhava, numa freguesia do sul da Ilha. Aí desceu da viatura e visitou a equipa que chefiava, que o recebeu com reconhecimento e desvelo. Olhou uma derradeira vez para a sua vida.
Tudo isto feito – percorrido todo este caminho –, no carro o homem levou à boca, de imediato e com fúria, o açúcar e começou a tossir com espasmos violentos. O filho pediu-lhe que tivesse calma, disse-lhe que daí a pouco estariam no hospital, e carregou no acelerador.
Quando o dia seguinte nasceu, o pai já não pertencia a este mundo.
Um outro filho, semanas volvidas, viu as coisas que o pai tinha deixado. Encontrou, desgarrado e solitário, um livro de contos policiais de Patricia Highsmith – O Álibi Perfeito. E depois deu de caras com um exame médico feito um ano antes de o pai entrar no hospital – exame que o pai porventura não leu, ou não soube compreender, e que não mostrou ao médico, e que o médico não exigiu que fosse mostrado. Perdida entre o dialecto técnico e especializado que o documento apresentava, o filho pôde ler esta coisa: “Suspeita de neoplasia.”

[Crónica publicada no JM, 15-X-2016, p. 2.]

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Crónica 60 [A Tertúlia]

Sempre que passo, de carro sobretudo, ali estão eles – sentados sob a copa da acácia, na berma da estrada, num lugar padrão do Funchal suburbano.
À falta de melhor palavra, posso dizer que compõem uma tertúlia. São homens, desocupados, alcoólicos – em cima do muro onde se sentam há quase sempre vinho tinto de pacote, do mais barato possível. [É curioso – são filhos de um Baco incompetente e bêbedo que só faz e bebe zurrapas, mas ficam assim sentados, de perna cruzada, com um ar de dignidade cerimonial. Um dia, um dos homens foi ao supermercado das redondezas – há um supermercado próximo, demasiado próximo para o bem deles – comprar um pacote de vinho e dois ou três papos-secos. As moedas miúdas e pretas que levava não eram suficientes. A funcionária do supermercado julgou que ele iria optar pelo pão. Não – com a costumada dignidade, o homem disse que deixaria o pão e que levaria, sim, o vinho.]
O núcleo duro deste grupo é composto por três homens. Na verdade, melhor será dizer que é composto por um homem. Os outros podem, provisoriamente, não comparecer – mas ele lá está, dia sim, dia sim senhor. [Lembro-me dele de há muitos anos, quando eu trabalhava nas obras durante as férias da universidade. Já nessa antiguidade ora ele vinha trabalhar, ora não se lhe tinha dado para isso. Explicaram-me na altura que dependia do que ele já havia emborcado antes de o patrão o apanhar, às 07:40, na berma do caminho.] Era magriço e todas as manhãs lacrimejava abundantemente. A pele era vermelhaça – tinta, na verdade –, como se ganhasse, por osmose, a cor do líquido que bebia com perseverança.
Outro participante tinha sofrido uma trombose que lhe afundara o lado esquerdo da cara. Por vezes, esta carne facial fendia – e ele bebia, dizendo que o vinho curava tudo.
O terceiro homem, de pele amarela, de dentes amarelos, de olhos amarelos, passava de vez em quando, contrariado e sem aviso aos colegas, uma estadia no Trapiche. Enfim, mais dia, menos dia, ele voltava.
Fora o trio, acontecia que outros homens – bêbados ou não, a maior parte das vezes não – iam passando, estacavam, sentavam-se e demoravam-se.
Não me parece surgir ali a violência que o álcool faz transpirar. [Pode ser difícil de acreditar, mas é verdade.] Os diálogos decorrem amenos, sobre tudo o que vem à mente. Se é para passar o tempo, há que enchê-lo de palavras, debruçadas sobre tudo – sobre nada. Emergem, claro, a par e passo, alguns comentários galhardos, uns chistes sem acrimónia, no seio desta tertúlia e entre ela e alguns passantes.
Numa tarde, um conhecido passou do outro lado da rua e mandou uma boca qualquer. Um dos tertulianos mostrou os dentes apagados e gritou: “Vê lá com’é que t’assoas!” O interlocutor riu e continuou a andar. [Por acaso, a uns vinte metros dali, um velho limpava o nariz com um lenço pardo. Ouviu, interrompeu o ronco e virou a cabeça para quem tinha berrado. Percebeu que não era com ele – afinal, pensou, aqueles homens nunca tinham feito mal a ninguém – e terminou o serviço, deixando um traço luzidio na pele glabra sob o nariz.]
Podemos imaginar alguém que chegasse a esta tertúlia e que perguntasse a estes homens: “Porquê aquela vida?” – “Por que não procurar tratamento?” – “A que lugar quereriam chegar, daquele jeito?” Se estes homens quisessem – ou soubessem – responder, diriam porventura que estas perguntas estão mal feitas. Ou, enfim, encolheriam os ombros e não diriam nada.

[Crónica publicada no JM, 01-X-2016, p. 2.]