sábado, 23 de junho de 2018

Crónica 103 [Explicações]

“Explicação do Poeta”,
de Daniel Faria

«Pousa devagar a enxada sobre o ombro
Já cavou muito silêncio

Como punhal brilha em suas costas
A lâmina contra o cansaço»


Explicação do cronista, em tempos de futebol, a olhar para o computador: segura a duas mãos a enxada; levanta-a; deixa-a cair para trás. Explicação da enxada: começa de novo; levanta os dedos em ângulo recto sobre o teclado; deixa-os cair – mas evita dar erros sublinhados a cor de sangue. Explicação do sangue: há que mantê-lo fluido; há que calafetar as veias. Explicação do calafate: tapa bem os buracos da tua casa; cerra as entradas de lagartixas; fecha as saídas de oxigénio; persegue o ideal de autarcia.
A autarcia: se não começar pelos desejos, não começa por lado nenhum. O oxigénio: mistura-o a teu gosto; com fumo de cigarro, por exemplo; não o mantenhas demasiado puro. O cigarro: não há dias sem marcos, sem ritmos, sem balanços – sem pontos de entrada e de saída. O dia: pesa-o de acordo com os teus pesadelos. O pesadelo: se um peixe falar esperanto enquanto fuma uma cigarrilha – tudo bem; se um homem comum tomar uma simples navalha e atacar, comum e simplesmente, alguém – tudo mal. A navalha: lembra-te do ‘Chavelha’, quando a enterrava no bucho de alguém – “Guarda-me esta até amanhã”; usa-a marinada em metáfora; substitui-a por algo que fira e que cicatrize logo – uma memória, por exemplo, colhida aonde te levem os pés. A colheita: um pão azedo, vindo da nossa eira, traz um conduto doce; se não, deita-lhe vinho. O vinho: deita mais, ou menos, enxofre – como queiras; fizeste o vinho, terás de bebê-lo. O imperativo: bate o pé – na dança, na opinião, na perversidade; no que for, bate o pé – há gente que tem pés mais pesados do que os teus.
A opinião: em caso de encurralamento, defende-te; depois, no rescaldo da refrega, não mintas a ti próprio – e penitencia-te; por vezes, ou sempre, estás – apenas e tão-só –, errado. O curral: deita, no meio dos encurralados, opiniões bastantes e terminantes; afasta-te e deixa cozer; volta quando estiver pronto a servir. A perversidade: veja-se, para melhor dilucidação, a explicação seguinte. A política: a arte de mudar de posição; a arte de mudar consoante a posição. A posição: contra factos e argumentos, há poder. O poder: subestima, sobrestima, defende, ataca – como quiseres; não o percas – se perderes, prepara-te para pagares pelos teus erros e para saldares as tuas dívidas. O erro e a dívida: foge à primeira oportunidade; manobra os ruídos certos. [A ironia: não te canses; não descanses; não t’importes; não uses parênteses.]
O ruído: é necessário preencher os vazios entre os silêncios. O silêncio: o veneno que não mente. A mentira: um pântano é simultaneamente alfobre de morte e fonte de vida. A vida: quem procura terra firme deve começar por drenar o seu próprio paul. O paul: um corpo, uma mente, as mãos. As mãos: uma caneta; um teclado; uma enxada; uma navalha. O início: há que cair e voltar a levantar-se. A criação: há que tombar e erguer-se de novo. A queda: quanto mais pequenas e constantes, maior o seu valor. A constância: subverte em silêncio e em solidão. A subversão: preservação; compromisso; lentidão; quietude; o espírito frenético e plácido no corpo possante e decadente. A contradição: alfobre de morte – fonte de vida.
Segunda explicação do silêncio: conhece por dentro a tua fortaleza. Segunda explicação do ruído: conhece por fora a tua fortaleza. Explicação da fortaleza: mede todas as palavras. Explicação da palavra: a água lava tudo – disse um ancião –, mas não lava línguas bífidas de ressentimento, línguas rugosas de frivolidade, línguas gretadas de omissão. Segunda explicação da palavra: [   ]

[Crónica publicada no JM, 23-VI-2018.]

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