segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Crónica 12

Há 18 anos.
Desci apressadamente as escadas. Já não me lembro se motivado por atraso, ou por qualquer entusiasmo momentâneo, a verdade é que desci célere as escadas. Antes de saltar para o caminho – um salto que me colocaria em perigo se um automóvel… –, recordo-me, afinal, de pensar nisso – que seria perigoso, que não deveria fazer aquilo, que um carro poderia me colher. Mas a constatação não vinha acompanhada do antídoto para a acção; e saltei.
Não ouvi guinada, não ouvi pneus a deixarem um signo sobre o asfalto. Um automóvel, porém, havia parado. Foi com surpresa que o vi, imagine-se, após os meus pés tocarem o solo e olhar para o lado. Um homem – o condutor –, sozinho, com o queixo fora do vidro, admoestou-me, increpou-me, insultou-me. «Vai pr’ó caralho!». As palavras dele, de cortarem o ar de tão violentas, maldizendo-me e ao sobressalto que sofreu – e ao potencial desastre que poderia ter sido –, fizeram-me entrar num abismo de ansiedade; sobretudo as palavras e os insultos – que, com os meus 14 anos, considerei exagerados –, e a ideia também, mas em menor medida, de poder ter sido o meu corpo a deixar um signo sobre o asfalto. Uma taquicardia fez-me saltar com violência o peito.
Ontem.
Subia, seguro, a estrada; não era muito íngreme e no topo havia uma passadeira. Eram 19:20, pouco mais ou menos – o dia estava a acabar. Poderá ser uma frivolidade – neste momento de rememoração preciso de frivolidades –, mas conduzo um Toyota branco, de 2001, comprado em segunda mão – um bom automóvel, fiável, um excelente motor. «Uma peça para um motor Toyota? Esses carros levam peças, mas não é pr’ó motor; o motor não tem fim» – ouvi há dias numa loja de componentes de automóveis. Não se tratava do meu, diga-se.
Bem, eram 19:20. Um miúdo percorria o passeio. Quando cheguei à passadeira, faltavam-lhe alguns passos – e não parecia que fosse atravessar. Abrandei antes de transpor as listas com o automóvel e alguns raios de sol encegueiraram-me por um segundo. Avançava, contudo.
Ouvi um baque contra o capô. Parei, incrédulo. Puxei o travão de mão e saí. Uma taquicardia fez-me saltar com violência o peito.
Hoje.
Estou a tentar reconstituir o que aconteceu. O miúdo tem 13 anos? 14? Saberei logo. Ontem garantiram-me, no hospital, onde ficou para observação, que não era nada de muito grave. «Vai pr’ó caralho!» – digo eu, sem os lábios se moverem, a olhar o asfalto depois de estacionar. Coitado do miúdo.

sábado, 27 de outubro de 2012

Crónica 11

Após revirar os olhos, lançar uma baforada e mastigar em seco para se fazer notar, afirmou: «Os homens não conseguem compreender as mulheres. Quem diz isto? Dizem eles mesmos, os homens, e diz também esta sociedade apressada. Porquê? Por que razão não as entendem? Porque escapam elas à compreensão? Não considero ser de difícil explicação. A dissimulação, a inconstância, a insegurança nas acções e nas reacções delas levam à confusão e à incompreensão. Sim, à confusão deles. E quem suscita confusão e se esquiva ao conhecimento tem acesso rápido e sólido – acesso visceral – ao poder. Confunde e logo enfraquecerás e conquistarás. Aí tens.»
[Afirmou ele. Depois, revirou os olhos, de súbito cobertos de uma película húmida, e dissolveu as seguintes palavras. «E, no entanto, o cantautor entoa, em «The sweetest little song», humilhando o monstro racional satisfeito da existência deste tumor, desta verdade terrífica: «You go your way / I'll go your way too». E, afinal, porque não? Reconheceríamos algo se assim não fosse? Que sobraria, que restaria no fundo do nosso quotidiano? Meu Deus, que até o amor deixámos suar para além do que nos era necessário – a nós, seres de lodo, de barbas e de camisas puídas. Eu era capaz de estacar à soleira da porta dela no fim dos dias – orgulhoso, sim, e de cabeça cabisbaixa, sim, à espera que ela viesse com os últimos minutos de claridade. Eu era capaz de deixar tudo – de decompor o nome dela e, com as letras baralhadas, escrever a última elegia ao mundo. Deus, digo, não é – nunca foi – uma hipótese a considerar. Ela bastar-me-ia como o pão e o sal e o vinho.»
Interrompeu-se-lhe a boca, que ficou semiaberta, e ficou a contemplar o espaço vazio por cima do meu ombro. Se eu não tivesse tossido, os dez minutos teriam durado uma maior eternidade – para mim e para ele.]
A incandescência do cigarro tinha-se extinguido. Acendeu outro. Lançou a primeira baforada, virou a cabeça, com vigor, para a direita, mastigou [de novo para afirmar importância] e concluiu. «O que é que eu estava a dizer? Sim, a confusão deles e o poder delas. A melhor prova disto está no olhar esbugalhado dos homens comprometidos, que negam, quando lhes apresento, este meu curto – mas incontestável – argumentário. Eles negam a verdade e a possibilidade de compreensão, como só se nega uma verdade terrífica. Esse olhar é típico – esbugalhado, bruto, minado –, como quem parece hipnotizado pelo vazio sem dar conta do tempo que passa.»

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Crónica 9

Dispersão é o signo do nosso tempo [Egocentrismo é o outro signo – talvez o verdadeiro signo – mas não falarei disso agora. Não quero – não posso – me dispersar.]
As opções abriram-se na hodiernidade, como nunca na História. E as escolhas urgem e perseguem-nos – em tudo. As ansiedades que nos assolam, patológicas ou não [quem saberá a diferença?], têm por esteio axial a angústia em arrostar uma escolha entre duas, três, muitas opções – nas relações interpessoais, nas coisas materiais.
Ademais, já não há costumes – e já não há normas sociais. Quer dizer, há. Duram pouco, muito pouco, e sobretudo não se admite que sejam ancorados em costumes e normas grávidos de séculos. [Não posso estar a inserir constantes variáveis no discurso; esquematizemos a realidade para que possamos falar dela.]
As nossas opções não são, afinal, as dos nossos avoengos. Dispersamo-nos hoje entre amigos – virtuais, sobretudo, ainda que de carne e osso [Quem pode, hoje, nomear um trejeito ou um meneio de um amigo?]; dividimo-nos entre sentimentos e paixões e amores; espartilhamo-nos entre escolhas de opções profissionais e educacionais; não discernimos entre múltiplas formas de ocupar o tempo, moribundo de tão vazio [e no qual somos moribundos e vazios].
Muitos de nós, portanto, vêem-se deambular entre espaços sem cheiro, sem toque e sem gradações de cor solar – apenas cores aberrantes e sons ajustáveis de imediato. Por aí adiante. Ou por aqui parados.
O mundo abriu-se. Nós, desgraçados, devolvemos-lhe medo, dormência, tédio, insónia, adiamento, dispersão. Na senda de mantermos opções em aberto, nada escolhemos e tudo coleccionamos – experiências, ideologias, agressões, limites, palavras –, como troféus enrodilhados num fio de memória que apresentamos, orgulhosos [pensamos nós], aos nossos semelhantes. E assim fazemos para calar o silêncio incómodo que não suportamos, e para escapar do verdadeiro afinco em tomar um trilho decidido.
De modo que nada nos define. Não somos crentes nem descrentes. Não somos simples nem complexos. Não sabemos algo nem o contrário. Não fazemos isto sem fazer aqueloutro.
Arcamos com uma opressão que os mais velhos não sentiram [e que não compreendem] e que os mais novos não sentirão – e que os fará execrar-nos.
Sobre nós pende o fardo, a impostura, de sermos o tempo da transição – ou de inaugurarmos o tempo da constante transição – e de termos de explicá-lo [a este tempo] aos vindouros. Explicar e justificar as nossas irresoluções. Quem compreende? Quem compreenderá?