sábado, 14 de abril de 2018

Crónica 99 [Desencontros]

Um homem pressiona o telemóvel contra a orelha direita; diz: “Oh pá, tem paciência, mas não falo mais com aquela gente. Não falo. Sempre que falo com eles parece que levo uma malha no juízo. Se quiseres, agora, vai lá tu e resolve.”
Um homem desce a alameda; vai pensando na altura do tratuário; um cão castanho, a farejar o ar, de olhos cobertos de capas opacas, vem do lado oposto; chocam ambos – o crânio do bicho contra a tíbia do homem. Continuam o caminho para onde iam.
Um homem entra numa tasca. O tasqueiro levanta e deixa cair o queixo, inquirindo com mudez. O freguês pede: “Um café de Setembro!” O ecrã da televisão é varrido pelas cores do filme ‘Alice no País das Maravilhas’ [ou seria ‘Alice do Outro Lado do Espelho’?], de Tim Burton. Todos os fregueses – cinéfilos involuntários – estão, ou acabam por ficar, atentos, submergidos, de boca entreaberta. Às perguntas do tasqueiro – “Mais alguma coisa?”, “Dentinho de favas ou de moelas?” – respondem os homens do lado de cá do balcão com um grunhido e um aceno de cabeça.
Na padaria, uma jovem mãe está sentada a uma mesa vazia. Põe a sua bebé sobre a coxa esquerda e enlaça-a com o braço esquerdo; estende este braço, depois o outro, agarra o smartphone e dentro dele fica perdida. A bebé vai lançando os olhinhos em redor, saltando, parando, vogando. Um homem barbudo, feio, enternecido como se alguém o tivesse puxado para outro lugar, começa a fazer caretas furtivas de brincalhão. A bebé ri.
Dois adolescentes – vagarosos, de olhos pesados e com ramelas – vão à cata de cotos de cigarros. Param num cinzeiro à porta de um edifício e começam a escolher. Levantam cinzas sopradas; tomam beatas secas, beatas com milímetros de cigarro por fumar – deitam umas ao chão, outras levam à boca e aos bolsos. Depois desta colheita, vão à procura de terreno mais fértil. 
Um homem, gordo e desconjuntado, vai em ziguezague pela estrada adiante. A cada passo fincado no chão, o maxilar inferior cai-lhe trémulo – como se estivesse na iminência de se desprender da cabeça. Para este homem nada mais existe senão o destino da sua jornada – se é que tem destino; se é que se trata de uma jornada. Não toma atenção a carros, motos, semáforos, sinais, outros peões – por onde passa tudo tem de parar, esperar, ficar suspenso. Não vê nem ouve ninguém – nem o homem que, dentro de um Toyota, o segue com atenção aguçada; nem a mulher que, dentro dum Ford, comenta para o marido: “Vê-me só aquele jeito. Há gente, mesmo, que não tem juízo.” [O marido, enfim, devolve: “Deixa ‘tar. Nã t’importes.”]
Uma mulher e um homem, conhecidos de muitos anos, encontram-se no passeio. Ela está com pressa; ele está com vontade de falar. Ele: “Então, como vão as coisas?” Ela: “Vai-se andando, e lá?” Ele [que se mete à frente de um passo fugitivo que ela deu]: “Olhe, isto é o diabo. Eu não sei p’ra onde é que isto vai. Já viu? É a saúde, o hospital, é as viagens, é os impostos. Mas isto vai mudar. [Ela parece que ouve mas está surda; um só pensamento chocalha na massa cinzenta: “Tenho de me ir embora p’ra casa pôr o comer ao lume p’rós pequenos.”] Tem de mudar – e vai mudar. Desta vez há políticos na oposição aqui – quer dizer, não é toda a oposição, já se sabe –, mas há deles que podem chegar ao poder. Mais do que podem: pela primeira vez, podem – e querem!” Ela: “Basta que sim. Bem, até à próxima.” E foge.
Assim vista – assim inventada, talvez, que vejo eu?, que sei eu? –, a realidade é feita de desencontros – de desencontros entre palavras, entre gente, entre vidas.

[Crónica publicada no JM, 14-IV-2018.]

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