terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Crónica 24

Anda-me este cheiro a enxofre debaixo do nariz…
Acordo. Levanto-me. Acordo. Surpreendo manchas na testa que se escapam para debaixo dos olhos, nestas manhãs ao espelho. As mãos acometem a cara à procura dos sinais; a boca de aparvalhado; o dia que se inicia.
Fumo. Visto-mo. Saio. Fumo. Oscilo entre uma indagação incompetente do contentamento e… uma constatação competente, sem dúvida, do resto. Sorrio. [Escassos indícios existem como este da aceitação cansada do absurdo.]
Vou. Diz-me o Mestre João, adiante, que a “vida é uma merda”, juízo que já estou – não estava, mas já estou – pronto a subscrever, a bem da realidade ontológica e escatológica. Mestre João disserta sobre os tempos vazios; diz ele que são estes a fonte de todo o mal. Felicidade! – diz-me ele. Ouço. Invento. Penso. Não me lembro do mais que disse o homem. Pouco uso teria para as palavras, fossem quais fossem. [Enfim, qualquer coisa sobre manter a cabeça ocupada.]
Mas sei o que penso – a consciência imprime toda a realidade em letra redonda na minha mente. Redonda. Simples. Quer dizer – elimino as arestas; simplifico; faço petrificar. Uma criança a correr, contente, é apenas uma criança a correr, contente. É verdade, poderia também haver gafanhotos – e relva. À parte isso, não sei. Não me lembro. [Um corvo que me entre em casa, por outro lado, já será mais do que um corvo que entre em casa – não é?]
Acciono ontem e hoje [o caminho é longo; não tenho que temer o tempo] um crivo de análise [das impressões da realidade] cheio de pó e de gordura. Quer dizer – irrompe enxofre entre o caos, no devir da ordem. Profundo, não é? Ordem, devir, caos, crivo, fumo, pó – enxofre. O método é este – um facto é arrumado em categorias prévias; as categorias são encerradas em compartimentos da mente; a mente é fechada ao exterior. [Anda-me este cheiro a...]
O Sr. Visconde do Faial, mais adiante, debita experiências de descaminho – qualquer coisa sobre o imperativo do desprendimento das coisas e dos comodismos e dos sentimentos e das noções de outrem. [Mais escutasse, mais imaginaria eu.] Pergunto. Sei. Pergunto na mesma, ao Sr. Visconde, se as impressões da realidade merecem tanta relevância, e o vetusto homem diz-me que hei-de arrepender-me por perder o sal da vida à conta destas frivolidades. Na verdade, tenho tensão arterial alta.
O Mestre João e o Visconde do Faial juntam-se por vezes, na volta do caminho, para falar de mulheres e de álcool. [Não nos admiremos – são temas igualitários.] Imagino. Escuto. Imagino. Interrompi-os, em certo momento, e disse uma necedade – “Não cheirais, caros cavalheiros, este enxofre?”
Sorriram. Disseram. Cuspiram. “Deixa lá essas coisas e vai buscar outra garrafa de rótulo preto! Aproveita e traz mais um copo p’ra ti.”
Fui. Lembro-me. Não me lembro. [Talvez fosse rótulo vermelho.]