sábado, 18 de março de 2017

Crónica 72 [O Rapaz]

No campo batido de chuteiras rotas e ajoujadas – um dos jogadores calçava-as assim, e eram as duas de diferentes qualidades –, o rapaz bolinava contra uma corrente agressiva com a bola, que rolava entre cá e lá, fazendo tabela entre os seus dois pés. Driblou este; confundiu aquele, que ficou para trás; e deixou sentado no chão aqueloutro – o qual, despeitado, desembestou em perseguição e, aproveitando o ressalto da bola até ao nível das cabeças, levantou a pata calçada aos queixos do rapaz. Efeito: sangue a cair de um furo na pele – dor a cair de uma ferida no orgulho.
Era um molho de ossos, o rapaz, e afligia-se por tal razão a mãe, as tias, a avó. Não havia maneira de criar corpo este púbere, a quem a mãe levantava a t-shirt – de nada valiam protestos envergonhados – para mostrar à vizinhança uma pele esticada e cava sobre uma rede de ossos que mais pareciam arame farpado ou espinhas que cortariam como facas de talho. Portanto: um trinca-espinhas – ou chupa-espinhas, como lhe chamava o pai, trocista –, das órbitas oculares até aos pés – que eram os instrumentos únicos que tinha para se afirmar, na escola, depois da escola, no clube, fosse onde fosse. Onde havia uma bola – onde havia quatro linhas e duas balizas, ainda que imaginárias – ele não era magro, não era fraco: era eficiente, admirado e odiado.
De pronto, porque a inveja e o ressentimento nunca dormem, e os métodos de meter alçapões e armadilhas no coração de outrem são infindáveis, os rivais, para além da violência, descobriram o ferrete do ridículo. Por isso passaram a chamá-lo “bailarina” – quando lhe chegava a bola aos pés e ele arrancava contra a baliza contrária, ou em qualquer outra ocasião, dentro ou fora de campo. Quando ouviu este apelido pela primeira vez, atrapalhou-se com a bola de catechu, levou uma canelada – o treinador não viu nada – e foi com a testa à terra. Virou-se, sentou-se e, com os olhos ensopados de raiva, mordeu os canhotos da mão direita. As gargalhadas duplas – pela alcunha; pela queda – ficaram, alarves, a lhe zunir nos ouvidos tapados.
Não havia forma de criar corpo – nem, com efeito, pêlos, na cara e no corpo. E por isso também era gozado, principalmente no balneário do clube. O rapaz explicou à mãe que tinha vergonha, que os outros, da mesma idade – na verdade, alguns mais velhos –, zombavam dele porque era um rato seco, um esqueleto bailarino, e agora uma galinha sem penas. De facto, começaram a multiplicar-lhe os apodos. A mãe, sempre aflita, afagou-lhe o cabelo sobre a testa e rogou-lhe que não desse troco. O pai, que soube pela mãe – não pelo rapaz, porque não havia, ainda não havia, essa relação entre pai e filho –, disse-lhe, categórico, que deixasse de ser um medricas e que começasse a dar uso aos punhos. Nada disto fazia sentido ao rapaz – porque sabia, perspicaz, que nada disto resolveria o problema.
No fim de um treino, no duche, os outros rapazes gargalharam, rotineiros, das características do rapaz – e ajuntaram comentários relativos à falta de pêlos púbicos e ao tamanho dos genitais. O chefe da turba atreveu-se, ademais, a pronunciar calúnias sobre a família do rapaz. Ele reagiu – com todo o seu corpo franzino. Efeito: levou uma malha; caindo no chão de tábuas molhadas do balneário, pontapearam-lhe as pernas – sobretudo as pernas.

[Crónica publicada no JM, 18-III-2017, p. 2.]

sábado, 4 de março de 2017

Crónica 71 [Aranhas]

Existem os animais domésticos que adoramos, que convidamos ao nosso convívio, a que chamamos família. E depois existem os outros – como, por exemplo, as aranhas. 
Nada sei sobre estes invertebrados, mas, numa noite de insónia, imperativa e indomável como uma aranha que nos invade a casa e o pensamento – como um abraço de oito patas –, sou levado a lavrar alguns farrapos de histórias – a acrescentar o meu pouco ao registo transitório do mundo.
Havia um menino que, em momentos de raiva e frustração, saía de casa e, no quintal, olhava para o alto e desfazia-se em brados e exclamações. Numa dessas acometidas, visou e culpou Jesus dos seus males – o mesmo Jesus que, diziam os adultos, chorava quando ele se portava mal. [Afinal, pensava e perguntava o menino: se o Jesus era tão bom e amigo das crianças, por que razão se sentia tão miserável?] Numa dessas acometidas, falava com o Messias e viu, reparando até que o silêncio lhe engoliu a garganta, uma aranha, suspensa numa névoa branca de fios. Era bicho hediondo e severo, do qual sentiu um abrupto medo. E foi um medo que se traduziu – como acontece com muitos medos – num certo fascínio, ou em magnetismo ou perplexidade. [A aranha seria, com grande probabilidade, uma aranha-maria, de seu nome comum.]
Uma menina estava a brincar no chão da sala-de-estar. Levantou-se, pequena, para abrir as duas janelas – era precisa luz para ver melhor os carrinhos. [Sim, esta menina brincava com carros – não havia ali bonecas carecas.] De uma das janelas brotou um aranhiço – talvez, de seu nome comum, uma aranha-das-patas-longas. [Nada de preocupante, nada que oferecesse ameaça, diria um adulto – afinal, não era nenhuma tarântula das Desertas.] A mãe, apressada e prestimosa, limpou a janela do intruso, e tentou sossegar a menina. A verdade, porém, é que nunca mais voltou a criança – rodaram os anos; a menina tornou-se mulher – a se aproximar. E ficava, por vezes, a fitar a janela – esta e outras janelas, nesta e noutras casas.
Um homem tinha, à janela do quarto de dormir, uma agave, de pouco menos de dois metros. Na planta, esticada de folha a folha a folha, estava a casa fiada de uma aranha. [Seria talvez uma aranha-das-tabaibeiras; enfim, não era uma tabaibeira o que se via, era uma agave – mas ao redor era o que se arranjava.] Ao fim do dia, o homem, antes de entrar à porta de casa, fumava mais um cigarro e deitava as cinzas na teia da aranha. Divertia-se, nesta brincadeira sem caução da idade, em ver a aranha, eficaz, saltar de pronto sobre a gota de cinzas e emaranhá-la como se fosse uma mosca ou outro insecto alado. Ao início a aranha fazia isto; depois, foi levando o seu tempo a agir e acabou por ficar imóvel, ignorando assim este logro servido pelo bípede galhardo. [Da parte do homem, não era só feita de folia esta interacção. Por vezes fixava, esgazeado, a aranha – e o pensamento fugia-lhe para outros lugares. Deve ser notado que este homem escreveu, sobre este episódio que estamos a narrar, um torpe poema desalinhavado.] Um outro dia, voltando do trabalho, reparou que jardineiros – uma horda de jardineiros, desordeiros e facínoras como hunos – haviam mondado o jardim à sua janela e cortado as folhas carnudas da agave, demolindo a casa da aranha. Pensou, melancólico, que não esteve ali para guardar e salvar o aracnídeo.

[Crónica publicada no JM, 04-III-2017, p. 2.]