sábado, 26 de maio de 2018

Crónica 101 [Down]

Ele tinha sido o último de uma longa fileira de crias. [Dois ou três anos depois de sair da mãe, ele e os irmãos foram levados a fazer pose perante a objectiva de um fotógrafo; arrumaram-nos em escadinha; e ele ficou no resto direito da fotografia – o mais novo; o mais pequeno.] Quando acabou o parto, feito de gritos e horas revolvidas, a mãe pôde ver um bebé de cabeça achatada, angular, que tinha, a guarnecer os olhos, pálpebras carnudas. Era Síndrome de Down; era, dizia o pai, ‘monguále’.
Não houve causa para alegrias: a família sobrevivia no meio de uma enxurrada por estancar de carências e aflições; eram muitas bocas para pouco pão; era muita canalha para tão pouca paciência. Mas também não foi caso para grandes tristezas: uma boca – rasgada – a mais, um crianço a mais – era o que Deus queria e seria o que Deus quisesse.
O menino cedo deu em resistir a estar quieto; corria muito, ria sem parar – fugia sempre, correndo e rindo, com a língua pendente da boca. A mãe dava os seus berros e mandava os irmãos alcançá-lo. [O pai sacudia os ombros.] Mas, enquanto fizesse barulho – de pés descalços sobre os chãos ou com gargalhadas –, sabia-se que a criança estava por perto, em lugar certo – percebida, ouvida, vigiada.
O primeiro pancume veio aos sete anos. O menino saltava, do lado de fora da janela da cozinha. De repente, parou. No quintal, ao lado de um toco de palmeira de onde agora brotavam ervas de cheiro, encontrou um melro preto; a ave estava rígida, de patas esticadas e papo para o ar; sobre as penas, que já se precipitavam em cinzento, pousavam moscas azuis e verdes; formigas entravam nas cavidades oculares e faziam as primeiras colheitas de provisões. [A morte estava fresca – mas depressa haveria de apodrecer.] O menino agachou-se e ficou deste feitio durante alguns minutos. Pegou na ave, correu até à cozinha e disse à mãe, que começava a desconfiar do silêncio: “Mã, olha.”
Foi o primeiro pancume que levou. [Partiram-lhe os dois dentes de leite que restavam.] Foi o seu primeiro – talvez único – rito de passagem.
A partir desse momento a sua crónica poderia ser contada, se houvesse alguém para contar – dia a dia, surra a surra, com rigor, em vários volumes –, tomando como capítulos as diferentes malhas. O menino sujava-se, levantava a saia às irmãs, caía e raspava os joelhos; o adolescente atacava os pratos de grão-de-bico que ficavam do almoço para o jantar, de libido danada e frenética deixava espalhados pela casa lenços húmidos, roubava umas patacas à carteira da mãe; o adulto não trazia o dinheiro inteiro dos biscates na vizinhança, roubava cigarros ao maço do pai, demorava-se na sexta-feira à noite, quando fazia coisas que os vizinhos bilhardavam, acelerados pelo desregramento moral. Fosse o que fosse, em idade mais tenra ou mais madura, sobejavam sempre razões para uma mão aberta, uma mão fechada, um vime, um bocado de pau, uma correia, um fio de luz… O pai dizia à mãe, sem variar, nas três idades: “Ah rapariga, calma, o pequeno é ‘monguále’, espera, ouve…” E podia dizer o que quisesse – na carnadura do pequeno haveria de saraivar.
O pai faleceu; depois foi a mãe. Em ambas as exéquias, os irmãos tiveram de tirá-lo logo do cemitério. De gritos roucos, agarrava cabelos, mordia canhotos, arrancava flores, jogava-se para o chão sob o féretro.

[Crónica publicada no JM, 26-V-2018.]

sábado, 12 de maio de 2018

Crónica 100 [Mães]

Nessa casa – nesse quarto – estava uma cama: um poiso nocturno de várias cabeças, de vários corpos – cinco crianças, uma mulher. [O primeiro sol do dia não entrava ainda pelas grossas gretas das paredes de blocos nus.] A mulher levantou-se, vagarosa, mas não conseguiu deixar de tocar com o calcanhar gretado na cabeça do filho mais novo. [O menino não despertou – ninguém acordou.] Tomou a sua única roupa, os sapatos ressequidos, uma mala parda – vestiu-se e municiou-se do pouco que ali havia. [Fez isto em silêncio – mas com uma pressa sôfrega.] Chegou-se à porta, abriu e tirou o cadeado, saiu; fechou a porta, colocou o cadeado por fora e fechou-o. Daí a um quarto de hora – calculou ela levantando a cabeça para os matizes da manhã anunciada – passava, lá em baixo no caminho, a camionete para a cidade. Ela ia apanhar a camionete.
Os meninos continuaram a dormir mais um par de horas. Acordaram e descobriram: que estavam sós, fechados, sem luz, sem água, sem comida. Vieram os brados, que trespassaram as paredes. A vizinhança e a família ouviram, entreolharam-se confusos e pasmados, rangeram os dentes, levantaram as mãos ao céu. Amaldiçoaram este caos moral; depois ajudaram as crianças; e esperaram, durante várias semanas, a volta da mulher.
Ela finalmente voltou; às palavras que foi sofrendo na subida do caminho, principiou de responder com rugas de embaraço; por fim, virou-se, retesou o corpo de orgulho [um tanto vacilante, diria quem pudesse reparar] e disse: “Ninguém tem nada a ver com a minha vida.”
*
A menina tinha esse mau hábito – em vendo um animal a dormir, aproximava-se no seu passo devagar, em jeito de emboscada; parava, agachava-se – e começava a afagar o bicho. Podiam ser cães, gatos, galinhas, patos, um porco num chiqueiro [uma vez]. [Quando esta história chegou a mim, lembrei-me que Jorge Luis Borges, num poema, dizia que entre os justos – entre as pessoas que «estão salvando o mundo» –, está «O que acaricia um animal adormecido.»]
A mulher que gerou esta filha, em face do perigo, nada mais podia fazer do que andar armada de vigilância constante. [Um gato arranhou, um dia, a menina; um cão tentou também mordê-la.] Repreensões não tinham efeito – nem uma desesperada palmada.
Na verdade, à filha esta mãe não poupava cuidados, atenções, carinhos e regras nutridas de boa civilidade. [Até aceitava – como ficou contado – um ou outro pequeno capricho ocasional, à laia de contraponto.] Mas nesta tarefa estava sozinha. O marido – o homem que lhe coube em sorte, num casamento contratado – não prestava os mesmos tributos à graça que Deus lhes tinha deparado. Até ver, era indiferente – e incapaz de ter amor e de mostrá-lo à filha invisível. 
De vigilante que era, a mulher tornou-se apreensiva. Algo mudara. A menina começou a acordar com pesadelos e a andar distraída, aborrecida, desobediente, desafiante. A missão educadora parecia estar a ser subvertida por algum agente do caos.
Num dia, a mulher chegou a casa – e viu. O marido – o pai – tentava forçar a filha à mais hedionda ignomínia. A mulher viu – e, resolvida e em silêncio, foi à cozinha; tomou uma faca; aproximou-se por detrás; e passou a faca na jugular do homem.
Quando as autoridades chegaram, ela estava a sossegar a filha, que finalmente adormecera. Levantou-se e disse: “Sim, fui eu. E tenho orgulho disso.”

[Crónica publicada no JM, 12-V-2018.]