esta é a forja
sabes que podes ser tudo – tudo – o que te disserem para ser – o que te baterem para ser – és um entre vários – todos iguais – diferentes – os mais – ou os menos – importantes – deves confiar na identidade – no signo do martelo – que em ti forem gravados – todas as manhãs olha bem a tua testa – aí verás – assim terás – aceita todos os gestos – os trejeitos – os arremedos – são os elos sem princípio nem fim da comunhão – dentro e fora da forja – sai – mas não te esqueças de voltar – sazonal – destemperado – ao umbral da oficina – para seres retemperado pelo fogo – pela eclosão contra a bigorna – e um dia – premido entre as paredes – emparedado entre as superfícies – vais gostar do calor da fornalha – vais querer empunhar o martelo
este é o ninho
voa – ou trepa – e entra de patas descalças e limpas – deita-te após substituíres alguns ramos podres – nunca te levantes sozinho para olhar as estrelas – desperta silencioso – cabisbaixo – lesto – sobretudo acorda igual – ao que sempre foste – ao que sempre te fizeram ser – lembra-te que não precisas de acordar como insecto couraçado para te fazerem cair – ou como larva para seres sugado – basta errares o teu lugar no ninho – ou debicares palavras – ou cresceres penas de uma outra cor
este é o cofre
confia nas aritméticas que compõem o sistema – o cifrão é emotivo e depois orçamental – ou vice-versa – mais é menos – e menos é mais – nada dá resto zero – tudo é debitado e creditado na tua folha – segredos e murmúrios – obrigações e cilícios – quartos e gavetas e celas – risos e esgares – lágrimas e sal na mesa – frustrações e facas serrilhadas – pratos esboucelados – os números misturam-se com os caracteres em moldes de cunha – e sempre chega o tempo da cobrança – no cofre – nesse cofre fechado por dentro – faz por ter as contas em dia – são caras as sete chaves – por isso ouve – ouve muito – diz pouco – ou nada digas – quando saíres – ou quando fores saindo – até tu cumprirás – não o negues – um auspicioso futuro de contabilista de sentimentos
esta é a fortaleza
levanta-te e desenha um mapa – a tracejado assinala todo o território inimigo – a fortaleza como ilha cercada por bárbaros – sobe às atalaias – vigia – se não quiseres ser tu o bárbaro ou o judas submerso nas catacumbas – insidioso de barba acobreada – limpa as facas dia sim dia não – deita-lhes sebo contra a ferrugem – contribui com pedras para a muralha – se não tiveres pedras o teu esqueleto servirá bem como substituto – os ossos afinal acabam por fossilizar e petrificar – presta tributo – presta sempre tributo – traz alimentos e vinho e água limpa – certifica-te – como competente fiel de armazém – que o aprovisionamento é basto e rápido – ou doa a tua própria carne – na fortaleza sitiada tudo acaba por ser aproveitado
esta é a casa
cada injustiça é uma desculpa para fazer injustiças – cada rancor eleva a pira dos rancores – cada grito de cria é mais uma flama a aquecer a casa – cada mecha de cabelos grisalhos é mais um espaço ocupado no lastro do poder
este é o lar
[e se assim não o for – faz de conta – há sempre benefício em ser vítima – em ser um carrasco justificado a haver]
[Crónica publicada no JM, 17-III-2018.]
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