terça-feira, 22 de novembro de 2011

Crónica 8

Sento-me com o fito de lavrar uma crónica – e nada me ocorre.
O problema é maior. E esta crónica, elaborada com a lenta progressão do número de palavras, no canto inferior esquerdo, a perseguir-me – pior perseguição do que aquela animada pela nossa constante vigilância não há –, é o meu diagnóstico e o meu clamor dissonante – a minha assunção, afinal – do medo e do desespero.
67 palavras. Agora, 70. Continuemos.
Nada me ocorre. Ocorrerá, eventualmente, sem dúvida, o mundo não acaba por mim, isso quereria eu, saber-me ponto, vírgula, reticências – e travessão – do mundo. Que fazer, entretanto?
Titubear; prestidigitar; vaguear; olhar; fumar um cigarro – tudo concorre para a mente vazia. E eu que sabia – e sei – que a mente em vácuo, que neutraliza a gestação de germes, era o antídoto para a tristeza. Sabia – sei. Porém, não se vence um peão de infantaria – espada curta, couraça fina de couro a cobrir o tronco, escudo de carvalho – e se sai vangloriado e valeroso. E então o cavaleiro munido de lança, espada longa, armadura de ferro com 3 camadas de cotas de malha que não deixa vislumbrar um ponto fraco? Há glória sem o insucesso certo e a confiança absoluta na sorte? Há…?
Esvai-se, portanto, a tristeza. Quando quero? Sou um semi-deus. Fica o medo. Sorte contra medo? Dá para rir – dá para golpear os peitos a rir.
228 palavras. Neste momento, 232. Está quase.
Sentei-me e imobilizei-me [nunca consigo aquietar e domar as pernas, sintomas da minha obsessão] para uma crónica. Que merda! Que merda de alusão a dois elementos dos exércitos medievais europeus, citados de memória e com imprecisões e anacronismos! Na realidade, tudo se pode e justifica dizer – e escrever – quando nada temos para dizer – e escrever…
O computador acabou de se desligar por sobreaquecimento. Não minto. Como continuo a escrever? Não continuo – continuei depois. Esperei pelo arrefecimento; fumei um cigarro e aproveitei para pensar no fim da crónica – e noutras coisas, sobretudo em projectos que nunca levarei até o fim. [Agora minto, presumo que minto.] Aproveitei para escrevinhar um aforismo. Não devemos vigiar o que nos persegue – mas não devemos, igualmente, fugir do que nos persegue.
360 palavras. Neste exacto momento, são 367. A crónica fica por aqui – e o erro também. Divulgo-a no blogue? Ninguém me lê – e o acto falhado faz-me ainda ganhar uma parcela do dia.
E não mitigo o medo, em movimento frenético, a produzir mais energia e mais calor.

Crónica 7

não me concedes a dádiva de te eclipsares da minha retina enevoada – os teus olhos de pedra lascada emparedados pelas mãos – os teus braços a manter o calor que sempre procuras junto ao peito e às têmporas
és a síntese irresoluta e irredutível de todas as coisas tocadas pelo dedo divino – a criação mineral sincrética – o fruto exumado da terra – os fluidos condutores – a depredação fértil – os suspiros que semeiam os oceanos – a matéria informe disforme – a negação do dia seguinte e do dia passado – o fim do dia inexistente
és a moldura das gramáticas e das noites de rebelião – o nó de enforcado que mantém a tribo – o cadafalso as catacumbas as lâminas as tenazes que salvam a tribo – a miríade de cores dos teus cabelos tinge todas as civilizações – todos os limbos – todos os purgatórios – todos os infernos – todas as ausências – todas as permanências – todos os inícios – todas as negações dos inícios e dos fins
ode a ti – oh mulher intemporal incomensurável insondável – instrumento e padrão das medidas – fora das medidas e das quantificações dos homens – dos homens tépidos líquidos brutos ordenados concluídos
ode e ódio a ti – mulher una e todas as mulheres – pelo homem dividido e pelos homens esboroados
vulto gravado nos átomos partículas gotas – o cosmos na vida íntima – a vida poderosa na vida ínfima – o sentido da inutilidade e da derrota advindos da raiva – do rancor – da força – dos semblantes fuscos e fundos da masculinidade transitória
o calor que cobiças – é a tua única centelha dependente de nutrimento – a tua porta aberta – obsessão após a necessidade – ou desprendimento e desprezo após a voragem e a saciedade – és porta aberta – e porta fechada – e os humores imperscrutáveis – se se ouve um sino não se conhece a liturgia – nem deus rejeita a insinuação completa – e até deus é conhecido e se deixa escrever
tu – tu – tu – vós – a mulher que diz no domínio do indizível – que faz no abismo do intangível – as mulheres que fecham e abrem o círculo da vertigem – da memória colectiva – sem tempo – de todo o tempo
eu – tenho uma memória milenar e individual a que prestar tributo