sábado, 3 de março de 2018

Crónica 96 [Preconceitos]

Falemos de preconceitos – de preconceitos contra: tímidos; velhos; pilosidade abundante; calvície; gente que escapa a categorias simples; gordos; indivíduos que não são progressistas [leia-se – que não são “pá frentex”]; conservadores; indivíduos de direita; direitistas que não acrescentam logo – “Mas democrata!”; ilhéus; gente da cidade; gente dos subúrbios; indivíduos que não fazem piercings, tatuagens e colorações capilares; gente que carrega livros – e que os lê; solitários; quem não se importa com os preconceitos mais mediatizados – e mais diabolizados; quem não abomina os preconceitos mais mediatizados – e mais diabolizados; quem assume que tem preconceitos; quem mete os polegares nos bolsos; quem mete as mãos inteiras nos bolsos; indivíduos que não têm “personalidade forte” [leia-se – que não são rudes e caprichosos]; avarentos; poupados; indivíduos que assobiam em público; quem conta piadas amarelas; quem ri de piadas amarelas; quem ri com estardalhaço; corcovados; desengonçados; feios; cicatrizes; quem tem calma; quem não tem calma; quem olha nos olhos; quem olha com intensidade; desastrados; indivíduos que têm sotaque; loquazes; calados; quem não se limita a ouvir; quem não atura queixumes; gente que dá conselhos sem pedido e aviso prévios; competentes arrogantes; competentes humildes; competentes que exigem competência; enfim; católicos; melancólicos; padres; bons sermões; padres celibatários; celibatários em geral; quem defende a disciplina do celibato para os padres; a bíblia; uma biblioteca; fumadores; viciados em substâncias mortíferas e sujas; viciados em hábitos mortíferos e sujos; carne mal passada; pessoas que comem carne mal passada; pessoas que comem carne; curvas – barrigas, rabos, mamas; gente que nomeia, arrola, descreve e analisa; gente que mostra que, no comércio dos preconceitos, há vários mercados, produtos e redes de distribuição; palhaços; o horrendo; cronistas que não escrevem sobre os dias correntes; cronistas que escrevem sobre coisas estranhas e esquivas; cronistas que não fazem parágrafos; quem não se assusta; quem sorve a sopa; quem não se indigna; gente de origens humildes; pobres altivos e orgulhosos; pobres mal-agradecidos; ponderados; homens e mulheres que dizem sempre – “E quem é que vai pagar isso?”; descrentes; descrentes ou ateus plácidos e tranquilos; gente que não odeia; homens que se levantam quando chega uma mulher; mulheres que não se levantam quando chega um homem; pessoas que não dão mimos materiais a crianças; pais ordeiros; pais solteiros; indivíduos que não gostam de animais domésticos; axiomas e aforismos; quem escreve axiomas e aforismos; quem não acredita em axiomas apócrifos e disseminados nas redes sociais; indivíduos que desconfiam das redes sociais; a história – a memória – o passado; línguas mortas; mortos; gente que vai morrer [“Ave, populus, morituri te salutant!”]; a morte; preguiçosos; listas; gente que sabe – ou inventa – coisas e que as declama como listas; indivíduos que contam, dissecam e inventam histórias; gente que escolhe a barricada errada; gente que peca do lado errado; mulheres e homens que não são feministas; homens; mulheres; heterossexuais; indivíduos que não falam de sentimentos; indivíduos que não falam dos seus sentimentos; cerimónias e formalidades; indivíduos cerimoniosos e formais; indivíduos que não usam eufemismos e jargões; indivíduos.

[Crónica publicada no JM, 03-III-2018.]

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