domingo, 17 de abril de 2016

Crónica 46 [Um Homem]

Erguia-se da cama ordenado pelo som do despertador e preparava-se para sair. Todos os dias tomava o cuidado de engomar, com a concentração e o esforço possíveis, uma camisa lavada – que, depois de vestida, cobria com o único casaco que tinha e que sempre usava. [Nesse dia foi obrigado a alisar duas camisas – foi acometido de um ataque de tosse e várias gotas de sangue foram pousar na primeira camisa.]
Depois, pegava numa velha pasta de couro, que nada tinha dentro – talvez apenas, esquecida, uma caneta. Antes de sair do T0 que alugava há já muitos anos, certificava-se por três ou quatro vezes se tinha desligado o ferro de engomar, se tinha apagado as luzes, se não tinha deixado uma torneira aberta, se a chama do fogão não estava acesa. [Uma vez esquecera-se de desligar o ferro de engomar – e nunca mais se tinha esquecido desse esquecimento.]
Trancava a porta de entrada, tornava a destrancar, tornava a dar a volta à chave. Depois de sair do edifício voltava por vezes atrás – como nesse dia, como noutros dias – quando não tinha a certeza de que havia, de facto, fechado o apartamento.
Desembocava na escola para dar as aulas do dia. Entrava na sala de aula e sentava-se. Falava sempre com o mesmo tom, baixo e pausado, e com a mesma postura – de olhos baços e alheados e colados no topo da parede do fundo da sala. Os alunos, de quem nunca sabia os nomes, levantavam-se, saíam da sala, entravam, falavam alto, jogavam papéis e outras coisas, insultavam-no. Não interessa a disciplina que ministrava – assim como assim, nada transmitia ou ensinava este professor, nada aprendiam os alunos.
No fim das aulas dirigia-se para a saída principal, sem dirigir a palavra a colegas, alunos ou funcionários. Quando interpelado, forçava um sorriso e respondia de forma educada, apressada e lacónica. Era imperioso sair da escola.
Era imperioso chegar à tasca. Sentava-se ao balcão, com um cumprimento vago e cordial aos presentes. O tasqueiro tratava-o com reverência, chamando-o de “Sr. Professor”, e dava início ao cortejo de imperiais. À quarta ou quinta cerveja, o tasqueiro aproveitava para lhe relembrar o rol do fiado que guardava a memória de dezenas de outras cervejas. O homem respondia, vagaroso e cordial, que nada estava esquecido. [Após principiar o rol, na verdade, nunca se lembrava da obrigação de saldar esta dívida. Ao contrário de outros esquecimentos, deste esquecimento nunca se recordava.]
Assim era ele – irmanado com a sua dependência. O álcool: tomou-lhe o lugar dos livros; inundou-lhe o lar; incinerou-lhe a família e os amigos num lume escarninho e incessantemente vivo; sepultou-lhe a vontade; plantou-lhe o medo; rasurou-lhe a história; tragou-lhe a alma.
Saía do estabelecimento nunca antes de a noite descer e nunca antes de se certificar, por três ou quatro vezes, se tinha esquecido a pasta ou, por obra do destino, as chaves de casa. [Esquecera-se uma vez das chaves e, resignado, foi obrigado a sentar-se durante a madrugada – a pasta sobre o colo – num banco de jardim.] Cambaleava, enfim, com a dignidade e a concentração possíveis, até casa.
Ninguém há-de contar a história deste homem.

[Crónica publicada no JM, 16-IV-2016, p. 2.]

sábado, 2 de abril de 2016

Crónica 45 [Verdade e Mentira]

Encontrou-me ele ontem e disse-me do alto da sua idade provecta, coroada de poucos cabelos. Eu preparei-me.
«Então, ‘tás bom, Fernando?
[...]
«Ok, certo. Então temos um dia das petas, ou das mentiras, não é? Mas isso não quer dizer que todos os outros sejam dias da verdade.
[…]
«Eu explico-te, Faustino...
[…]
«Ou isso. Mas já reparaste que nós pensamos sempre na mentira de uma forma demasiado moralista, como se fosse principalmente um pecado? Mas a mentira tem outras raízes, também fundas, e ‘tá em todo o lado – mais do que a verdade. A mentira, a falsidade, a imprecisão, a ilusão… – são elas a norma. É uma questão de acção – ou, enfim, de falta de acção ou de método. E depois é uma questão, vá lá, de amor – primeiro pelo erro, e depois pela exactidão, pelo facto, pelo empírico, pelo que se pode verificar e comprovar. Percebes, Fernão?
[…]
«Não, pá. Amor pelo erro, sim. Mas não é um amor incondicional ou, vá lá, romântico. É um amor que abandona a coisa amada – o erro – quando ela muda – ou morre –, ou quando nós mudamos – ou morremos. É assim, Firmino.
[...]
«Não tem nada a ver com filosofias, com essas coisas que dizes – empirismos, racionalismos, positivismos, enfim… Ou melhor, até pode ter. Tem a ver, parece-me, com a forma como nós nos vemos no mundo e como nos vemos com os outros. Ninguém aprecia, propriamente, a verdade como uma coisa bela em si. Bela. Não sei se compreendes, Fabiano...
[…]
«Estética? Eu percebo lá disso ou do que dizem os filósofos… Pode ser, como digo, simplesmente uma questão de método, de amor, de beleza – e depois de esforço e de desprezo pelo poder. Imagina uma conversa como a que eu ouvi há dias. Dois amigos falavam e falavam. Pior – falavam de política. Pois é, quando se trata de política e futebol... Bem, a certa altura, discordaram quanto a uma coisa pequena – um facto. Não uma interpretação, uma opinião, uma análise – mas um facto. Tinha a ver, se bem me lembro, com o ano em que um determinado partido chegou ao poder, etc. Usavam os dois daqueles telemóveis todos artilhados, que acho que são bons p’ra procurar coisas e tal. Mas nenhum deles se preocupou em procurar. Que fizeram eles então? Deitaram-se a adivinhar, a especular, a discordar. Um amigo disse que pensava que era de uma forma – e logo concluiu que de certeza era assim; o outro amigo disse que se calhar era o inverso, p’ra não dar o braço a torcer – e logo arrematou que era certamente assado. E assim andaram, de palavras em palavras, uns bons minutos, até se desentenderem e mudarem de conversa. “Ficas na tua e eu fico na minha” – disse a certa altura um deles. O outro concordou. Entendes, Fabrício?
[…]
«Não, rapaz. Não arredaram o pé do poço em que se meteram porque isso dava muito trabalho. E, quando discordaram, o que interessou a cada um deles foi teimar – teimar em vencer. Vencer uma discussão. Se a discussão era estéril, ou se nada tinha a ver com a verdade, o que é que isso lhes interessava? Com certeza que já sabes a resposta.
[...]
«Bem, mas quanto à verdade, é isto – enquanto sociedade, nós falamos de cor e fazemos de conta. Dá-nos conforto, poder – e dá pouca maçada.
[…]
«Humor? O que é que o humor tem a ver com isto? Isto não tem piada nenhuma. Acho que andas a falar demasiado com aquele teu primo, o Juvenal. Diz-lhe p’ra deixar de beber senão ele não chega à minha idade. Bem, vou andado, Dinarte. Cumprimentos à família.»

[Crónica publicada no JM, 02-IV-2016, p. 2.]