sábado, 18 de agosto de 2018

Crónica 106 [O Ressentimento]

Naquela madrugada, uma insónia levantou-me da cama. Saí à porta do quarto, não acendi a luz, bati com a mão na parede – já aconteceu com o nariz, mas assim é menos doloroso –, abri bem os olhos e fui para a marquise.
Nunca há cumprimentos; simplesmente: eu chego – ele chega. Escancarei os vidros das janelas e puxei de uma cadeira, com tento para não fazer barulho.
Ele – Não pagas nada?
Eu – Não tenho bebida em casa. Se tivesse, então é que não me livrava de ti.
Ele – Calma, meu velho. Não sejas de manias. Se tivesses bebida, eu se calhar não tinha aparecido. Enchias o copo, metias à boca, ficavas naquele torpor...
Eu – Torpor não é solução – é um veneno sem gosto a apurar na boca, um vírus oculto a se espalhar debaixo da pele.
Ele – Essa ‘tá boa! Olha, aproveita, e mete isso numa crónica!
Eu – …
Ele – E então?
Eu – Diz. ‘Tou a ouvir.
Ele – Um cigarrinho, ao menos?
Eu – Já vou acender um.
Ele – Andas fugido? Vais dizer que não tens saudades das nossas conversas...
Eu – A gente fala praticamente todos os dias.
Ele – A gente fala menos – e com mais pressa. Não te faças de manhoso!
Eu – …
Ele – Mais daqui a dias esqueces o meu nome.
Eu – Veneno? Vírus?
Ele – Deixa-te de coisas. Eu tenho dito, mas tu parece que és surdo – tens de te lembrar sempre, de te lembrar dos males que fizeste, dos males que te fizeram. Precisas de mim p’ra isso. Ficas mais forte, mais rijo, assim…
Eu – Eu sei, assim eu aprendo.
Ele – Sim… Quer dizer, pode ser – aprender, bem, isso é outra coisa.
Eu – Ok. Agradeço o teu esforço, a tua perseverança, a tua pertinácia de coisa untuosa, peganhenta, grudenta.
Ele – Tu és fo…
Eu – Fala baixo.
Ele – A verdade é que, sem mim, nem sequer sabes quem és.
Eu – É possível.
Ele – Tu, como toda a gente, tens a tua identidade. Precisas dela mais do que pão p’rá boca. E a tua identidade começa em mim. É um bom começo – tu sabes. Depois, eu tenho um coração grande – cabe lá dentro tudo. Multiplico-me. Juntas um grão de ódio…
Eu – E tenho rancor.
Ele – Exacto. É bom. Metes uma penada de remorso…
Eu – E aparece ansiedade e depressão.
Ele – É bom p’ra escrever e tal, não é? Deitas um pozinho de descrença e de falta de moral…
Eu – E sai niilismo.
Ele – Pões uma coisinha de frouxidão…
Eu – E dá covardia e inveja.
Ele – Molhas em presunção…
Eu – Deixa-me adivinhar – arrogância.
Ele – Sempre foste um bom aprendiz – um bom seguidor.
Eu – Portanto, existes tu – e rancor – e ansiedade – e depressão – e niilismo – e covardia – e inveja – e arrogância – e também narcisismo – vingança – iniquidade – desespero – destruição.
Ele – Não exageres. Repara: uma pessoa nunca deve esquecer de que é uma vítima…
Eu – Tens uma família numerosa. E tudo boa gente.
Ele – Deixa-te de ironias. Repara…
Eu – Eu agradeço-te – mas estou cansado, e preciso de ir dormir. Façamos desta maneira: eu deixo esta nesga de vidro aberta…
Ele – P’ra quê?
Eu – Contigo, meu velho, meu Ressentimento, é só conversa. E a conversa, e a lamúria, nunca acabam. Ouve de uma vez. Eu vou fechar a marquise pelo lado de dentro. Ficas aqui. Se quiseres te esfumar daqui p’ra fora, vai. Se não, não te preocupes. Ficas aqui, nesta casa, o tempo que quiseres. [Na marquise, o frio da noite não te incomoda; a mim não incomoda – a ti também não.] Eu sou hospitaleiro – dou-te guarida, vivo bem contigo. Bem, vou andar. Esta crónica é um falhanço. Ainda assim, obrigado.
Ele – Eu sabia. Usaste-me.
Eu – E não deverias ficar admirado. Alguma utilidade haverias de ter. P’ra alguma coisa haverias de prestar.

[Crónica publicada no JM, 18-VIII-2018.]

sábado, 4 de agosto de 2018

Crónica 105 [Três Histórias (2)]

O velho estendeu para a lombada a asa direita [a esquerda ficava-lhe bamba pela cintura]. Estava dentro do vale, na margem alagadiça da ribeira, e foi mostrando como cicerone.
«Lá em cima, acolá, ao lado da casa verde..., a outra – daquela casa já fugiram três mulheres. Três ou mais, já nem sei bem. Primeiro, foi uma filha; queria casar, mas não deixaram casar com quem era de seu gosto; um dia a mãe chegou a casa e encontrou as gavetas refundiadas, a lareira da cozinha a escorrer só um fiozinho de fumo, e da filha nem sinal; nunca mais voltou. A seguir, foi a outra filha – mas essa cá casou como queria; ela e o marido ficaram ali; tempos depois fugiu, não sei bem porquê – diziam que ela tinha se metido com um sujeito da cidade; ela voltou – quer dizer, o marido foi buscar, arrastou ela pelos cabelos pela ladeira acima; durante uns dias só se ouvia gritos e pancume; não me lembro quanto tempo ela aguentou; fugiu outra vez. Depois – bem, depois –, foi a mais velha da casa, a mãe; ficou viúva, arranjou um senhor da outra freguesia, os filhos não aprovaram; vai daí, deve ter pensado, remédio bom p’ra novo também é remédio bom p’ra velho, e fugiu também. Isto, bem, já tem uns anos. Os homens daquela casa, filhos e o resto, começaram a ficar emantados, pareciam aluados, de olheiras, andavam sujos, numa nojentice, começaram a dar na bebida todos os dias. O amigo ‘tá a ver – uma casa sem mulheres... Agora – agora acho que não mora lá ninguém.»
«Daquela banda – não, vigie, acolá –, naquela casa, ali era o diabo. Era um casal que depois teve um casalinho. O homem era daqueles que, já se sabe..., desterrava o dinheiro todo na tasca – a tasca ficava ali em baixo, mas já fechou, agora quem quiser tem que subir mais o caminho ao lado da ribeira, este caminho novo que fizeram; bem, quando não tinha mais dinheiro, nem tinha em casa, chegava – veja-me isto – a pegar em álcool, misturar com açúcar e limão, e metia pela goela abaixo. Não durou muito, ‘tá visto – um dia caiu dentro da levada quando tinha ido regar a meio da noite e azougou; deixou a mulher e um casalinho de filhos. Eles foram ficando ali, p’ra ali jogados, a mulher com o bordado, cada vez mais velha e cega, os pequenos foram crescendo... O filho..., bem, o filho deu num canzana de alto, de força; era um estuporado, por tudo e por nada ficava brabo; por tudo e por nada fervia; chegava a bater na irmã e na mãe. Depois – ouça isto –, de noite, de noite começou a se meter na cama da irmã. Já me viu? A mãe, com medo, não teve outro remédio senão dizer assim: “Vem p’ra aqui, deixa tua irmã. Vem p’ra aqui, comigo já não há problema.” Era o diabo. Há uns tempos, parece-me que todos três saíram d’acolá. Não sei p’ra onde foram. Hoje não mora ninguém na casa.»
«Agora olhe p’ra ali. Aquelas paredes de casa, lá em cima. O tecto já deu de si... Aquela casa – a gente vê – já não tem bafo de gente há muitos anos; mas antes morava pai e mãe e filho. Um dia de manhã, a mulher e o pequeno, que devia ter na altura mais ou menos a minha idade, desciam por aquele lado da ribeira; tinha chovido muito, tinha chovido toda a noite; quando eles passavam, ali – ali mesmo – cai uma quebrada. Olhe, foi mãe, e foi filho. O homem, sozinho, deu em maniar, andou por aí como azoado da cabeça e avariou de vez. Ele subiu àquela rocha – sim, aquela – e abicou-se.»
«Isto é uma vida, não é? Bem, amigo, ‘tou a gostar deste bocadinho, mas tenho de ir. Inté à vista. Ouça, espere, não me vai pôr estas histórias no jornal, vai? Ainda vão dizer que parece mentira.»

[Crónica publicada no JM, 04-VIII-2018.]