sábado, 20 de janeiro de 2018

Crónica 93 [Um Diálogo]

Filipe – O que fazer, então, quando a esterilidade nos entorpece?
Dinarte – Não sei.
F. – Mas percebes o que quero dizer?
D. – Penso que sim. Não sei.
F. – Esterilidade e torpor – uma redundância. Não é?
D. – Pode ser.
F. – Se calhar ‘tás a pensar – “Este acordou com os pés de fora do ano novo”. Não?
D. – …
F. – Projectos, ideias, sonhos – tantos. Como manter a cabeça à tona?
D. – À tona?
F. – De água. À tona de água.
D. – Não sei.
F. – Como realizar, entre milhares de ideias enxundiosas, pelo menos uma, enxuta, consequente?
D. – Enxundiosas?
F. – Sim.
D. – Pois. Não...
F. – … Tu, por exemplo, há quanto tempo não escreves um verso?
D. – Tem tempo, tem algum tempo. Exactamente quando, não sei dizer.
F. – E porquê?
D. – …
F. – Não sabes dizer.
D. – Não, não sei. Quando nada há para escrever, que posso eu escrever?
F. – Pois. Há horas assim.
D. – Como esta.
F. – Como esta?
D. – Sim. Quer dizer, não sei.
F. – Amaldiçoada esterilidade de tempos de paz.
D. – Amaldiçoada esterilidade de tempos frívolos – de tempos de guerra surda.
F. – Uma maior precisão nos conceitos – muito bem.
D. – Precisão dos… É possível. Não…
F. – … Não sabes. 
D. – Não.
F. – Há alguma coisa que saibas?
D. – Ninguém sabe nada de relevante quando as perguntas estão mal formuladas.
F. – É o meu caso. A questão da esterilidade.
D. – Talvez.
F. – Esta conversa ressuma penúria.
D. – Bom sinónimo.
F. – Sinónimo?
D. – Esterilidade; penúria; infertilidade; escassez.
F. – Torpor; inércia; langor; prostração.
D. – Isso é outra coisa.
F. – Este diálogo é um beco sem saída.
D. – Não sei. Parece-me, sim, uma estrada sem fim.
F. – E então?
D. – E então – continua.
F. – P’ra onde?
D. – Não sei.
F. – Mais uma linha – mais uma deixa – mais uma inutilidade.
D. – Menos uma leitura.
F. – Não tenho lido nada.
D. – Se não leres, não te é dado o direito de escreveres.
F. – Como assim? Direito dado por quem?
D. – Não sei.
F. – Penso que percebo o que queres dizer. É assim o mundo – cheio de escritores – vazio de leitores.
D. – Bem… Não sei.
F. – Mas é interessante essa ideia – uma relação matemática entre leitura e escrita. 20 000 palavras lidas dariam direito, sei lá, a 500 ou 600 palavras escritas. Seria uma contabilidade por partidas dobradas, lançada num livro – a um lado o débito, a outro o…
D. – … ‘Tavas bem lixado, nesse caso.
F. – ?
D. – Não é essa a medida, quase 600 palavras – 3000 e tal caracteres –, de cada uma das tuas crónicas? Partindo do princípio de que são crónicas.
F. – Não são?
D. – Não sei.
F. – Estávamos ambos lixados, na verdade.
D. – Não sei.
F. – Tu fazes afirmações inusitadas, cirurgicamente inusitadas, e depois desfias um rosário de indefinições.
D. – Não sei. Talvez.
F. – Assim como o pirómano que ateia um fogo e depois fica, em deleite, a contemplar o espectáculo, negando qualquer responsabilidade.
D. – Não sei. Em todo o caso, as cinzas sempre podem ajudar a fecundar a terra – ou o papel…
F. – … Em todo o caso, aprecio estes diálogos contigo, a sério que aprecio. Temos de combinar o próximo.
D. – OK. Quando?
F. – Não sei. Depois combinamos.

[Crónica publicada no JM, 20-I-2018.]

sábado, 6 de janeiro de 2018

Crónica 92 [Palavras]

São simples, não custam nada, estão aí prontas a usar – as palavras dos últimos dias correram, e correm algumas ainda, desemaranhadas e crédulas. [Feliz – Santo – Bom – Natal / Boas – Festas – Entradas – Saídas / Feliz – Bom – Excelente – Ano – Novo.]
Com elas, com elas apenas, vem locupletada a promessa de mudança – assim pensamos, numa época que não se quer melancólica, preocupada, prosaica; e assim ficam descansados e encantados corpos, bolsos, consciências e razões.
Mas palavras há que são engodo, engano, evasão e álibi.
Eu não quereria trazer à liça a impertinente – equivocada e ilusória – destrinça entre palavras, ditas e escritas, e acções. Mas para esse caminho vão, sem cessar, os meus passos mentais – porque nunca, até hoje, alcancei mais e melhor. [E o que alcanço digo-o agora – lá está – em palavras de crónica.]
Mas parece-me que a verdade é esta: dizemos e escrevemos [– e infectamos o silêncio]; controlamos e domamos as palavras; aligeiramos, deste modo, a imperiosidade e o controlo dos actos; esquecemo-nos de fazer, de agir, quando o ar é agitado por votos e pregões beatíficos e bem-querentes; pomos ditos e escritos a fazer as honras da casa, a fazerem a vez – a serem competentes simulacros; livramo-nos de fardos que haveriam de pesar uma vida inteira no prato menos polido da balança.
Ouve-se e lê-se – ou melhor, ouço e leio – e, Deus me perdoe, não consigo deixar de pensar: que quem somente tem palavras nada mais tem – e, com efeito, de nada mais necessita; que há homens e mulheres que desfraldam muitas palavras – e cuja conduta constitui a melhor refutação para as palavras desfraldadas.
Nesta Festa – porque já vou ditando esta crónica aos dedos como quem dá a mão a Sísifo, viro aqui o meu leme – vi coisas de que quero falar.
Vi um sacerdote idoso, numa igreja, a ensaiar crianças com cordofones sobre os colos. De dedo descaído solicitava atenção, pedia a afinação de uma corda dupla, ajuizava do acerto de uma melodia tocada a solo. Falava, mas falava pouco. De velhas mãos maestras, num lado, e de dedos novos a calcar cordas e braços de madeira, no outro, haveria de brotar música.
Vi uma criança a fazer festas na cabeça e na cara de um primo mais velho – bem mais velho, à beira da uma quarentena de anos. Não era costume – não tinha sido costume nos últimos anos – e o homem ficou perplexo, incomodado até, mas não se atreveu a dissuadir o infante.
Vi outra criança que não se importou de receber uma prenda poucochinha e utilitária – duas folhas de dinheiro, simples e coloridas na sua frieza. Vi a criança agradecer como se grande oferenda fosse – e agradecer usando palavras tão-só como acrescento, como reforço.
Vi um rapaz dar um bocado de bolo de chocolate – penso que era bolo; e seria de chocolate – a um cão abandonado que abocanhou a dádiva completamente.
Palavras há que são empecilhos.
E há palavras que trazem, na Festa, advertências e alertas – como muitos sentirão – inoportunos. Escutei uma mulher dizer que as pessoas são esquecidas; e que lhes fazia bem lembrar e conhecer as fomes e os abusos de algumas elites sebosas e abrutalhadas que havia antigamente. 
[Já me ia no esquecimento – no que toca ao direito e ao dever de desejar, para mim e sobretudo para vós, também sou gente, também sou filho de Deus. Portanto – um Bom Ano Novo.]

[Crónica publicada no JM, 06-I-2018, p. 15.]