sábado, 3 de fevereiro de 2018

Crónica 94 [Subidas e Descidas]

A procissão fúnebre descia as escadas abicadas sobre a vila.
Levava à testa um homem, que ia dizendo dos cuidados a ter nos degraus frios e sem medidas certas. Depois, iam quatro crianças – três meninas, um menino –, vestidas de branco, que na lonjura lá em cima haviam-se ajudado a um pequeno, ainda que pesado, fardo. Sobre os seus ombros equilibrava-se um caixão, branco por fora, por dentro perfumado de flores, com um menino morto – um anjinho ido para o céu.
A tarefa não era fácil: suportar uma carga era uma coisa – suportá-la com gravidade, outra. As mães disseram aos infantes que haveriam de levar o esquife: “Juízo” / “Tento na língua” / “Não façam barulho” / “Vão com respeito” / “Livrem-se de rir” / “Cuidado para o caixão não virar e cair”. Na descida da calçada feita de calhaus, porém, os pés doíam, o peso mordia os ombros, o sol abrasava, o aborrecimento entrava franqueado nas jovens mentes.
Três meninas e um menino, pois. Ele, travesso e irrequieto, afinal o irmão mais velho do bebé falecido, levado de um impulso que desafiaria qualquer compreensão adulta, experimentou descer o ombro esquerdo e empurrar devagar, com a mão direita.
O caixão virou, caiu, abriu-se, descobriu o pequeno defunto. As crianças riram-se – nenhuma reação seria, ao princípio, mais natural e instintiva. O adulto – o pai – apressou-se a compor esta descompostura, mastigou em seco e, com transtorno, contraiu a cara enxuta de lágrimas inaugurais.
Aí terminavam as escadas. Mais adiante ficava o cemitério.
*
O menino que sobreviveu ao irmão cresceu.
Saiu como saíam os homens da sua família – da mesma amassadura, da mesma fornada. Era baixo, ensocado, rijo, de pele queimada – e de apetite por zaragatas e brigas. Trabalhava com um objectivo: avaliar as cifras de dinheiro que vencia pelos copos de aguardente que podia pagar na tasca do regedor. [Se ganhasse bebia – se não ganhasse não bebia. Não queria fiados – não admitia róis. A honra é assim: eleja-se a que mais convier; feita a escolha, não há avanços ou recuos – não há subidas ou descidas.]
Não se metia com ninguém – mas dava as boas vindas a quem o apoquentasse; uma vez enterrou uma curta navalha de que era inseparável – uns cinco centímetros de gume – na barriga de um abusador, que foi para casa de mãos tensas a estancar o sangue.
Levava, na freguesia, esta vida simples, sem remorsos ou arrependimentos. 
Um dia um trastalhão – quase dois metros de altura, cento e tal quilos – entendeu em pegar com ele, na tasca. O nosso anti-herói disse: “És grande, mas não és dois.” [Por poucos minutos houve tréguas silenciosas.] Depois de sair à porta da tasca, reparou que estava a ser seguido. Desta vez, escolheu controlar o apetite e ser cauteloso – caminhou para as escadas que, da vila, subiam até ao seu sítio, lá em cima. O perseguidor ia zombando: “‘Tás a fugir? Tens medo? Não fujas!”
Ele galgou os primeiros degraus e disse: “Agora podes vir. ‘Tou aqui. Não fujo mais.” Nestes segundos, neste local, o limbo da memória abriu-se e invocou a imagem de um caixão a cair. [Seria um primeiro remorso? – um remorso inaugural?] Ele sacudiu-se. Puxou da navalha e esperou para usar da vantagem de estar em terreno mais elevado. O gigante subiu, imprudente – e ele, desviando-se de um soco, vibrou a lâmina. O outro, golpeado na têmpora esquerda, ficou estonteado, perdeu o equilíbrio, caiu, e durante as horas seguintes cobriu de sangue este trilho de subidas e descidas. 

[Crónica publicada no JM, 03-II-2018.]

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