sábado, 4 de agosto de 2018

Crónica 105 [Três Histórias (2)]

O velho estendeu para a lombada a asa direita [a esquerda ficava-lhe bamba pela cintura]. Estava dentro do vale, na margem alagadiça da ribeira, e foi mostrando como cicerone.
«Lá em cima, acolá, ao lado da casa verde..., a outra – daquela casa já fugiram três mulheres. Três ou mais, já nem sei bem. Primeiro, foi uma filha; queria casar, mas não deixaram casar com quem era de seu gosto; um dia a mãe chegou a casa e encontrou as gavetas refundiadas, a lareira da cozinha a escorrer só um fiozinho de fumo, e da filha nem sinal; nunca mais voltou. A seguir, foi a outra filha – mas essa cá casou como queria; ela e o marido ficaram ali; tempos depois fugiu, não sei bem porquê – diziam que ela tinha se metido com um sujeito da cidade; ela voltou – quer dizer, o marido foi buscar, arrastou ela pelos cabelos pela ladeira acima; durante uns dias só se ouvia gritos e pancume; não me lembro quanto tempo ela aguentou; fugiu outra vez. Depois – bem, depois –, foi a mais velha da casa, a mãe; ficou viúva, arranjou um senhor da outra freguesia, os filhos não aprovaram; vai daí, deve ter pensado, remédio bom p’ra novo também é remédio bom p’ra velho, e fugiu também. Isto, bem, já tem uns anos. Os homens daquela casa, filhos e o resto, começaram a ficar emantados, pareciam aluados, de olheiras, andavam sujos, numa nojentice, começaram a dar na bebida todos os dias. O amigo ‘tá a ver – uma casa sem mulheres... Agora – agora acho que não mora lá ninguém.»
«Daquela banda – não, vigie, acolá –, naquela casa, ali era o diabo. Era um casal que depois teve um casalinho. O homem era daqueles que, já se sabe..., desterrava o dinheiro todo na tasca – a tasca ficava ali em baixo, mas já fechou, agora quem quiser tem que subir mais o caminho ao lado da ribeira, este caminho novo que fizeram; bem, quando não tinha mais dinheiro, nem tinha em casa, chegava – veja-me isto – a pegar em álcool, misturar com açúcar e limão, e metia pela goela abaixo. Não durou muito, ‘tá visto – um dia caiu dentro da levada quando tinha ido regar a meio da noite e azougou; deixou a mulher e um casalinho de filhos. Eles foram ficando ali, p’ra ali jogados, a mulher com o bordado, cada vez mais velha e cega, os pequenos foram crescendo... O filho..., bem, o filho deu num canzana de alto, de força; era um estuporado, por tudo e por nada ficava brabo; por tudo e por nada fervia; chegava a bater na irmã e na mãe. Depois – ouça isto –, de noite, de noite começou a se meter na cama da irmã. Já me viu? A mãe, com medo, não teve outro remédio senão dizer assim: “Vem p’ra aqui, deixa tua irmã. Vem p’ra aqui, comigo já não há problema.” Era o diabo. Há uns tempos, parece-me que todos três saíram d’acolá. Não sei p’ra onde foram. Hoje não mora ninguém na casa.»
«Agora olhe p’ra ali. Aquelas paredes de casa, lá em cima. O tecto já deu de si... Aquela casa – a gente vê – já não tem bafo de gente há muitos anos; mas antes morava pai e mãe e filho. Um dia de manhã, a mulher e o pequeno, que devia ter na altura mais ou menos a minha idade, desciam por aquele lado da ribeira; tinha chovido muito, tinha chovido toda a noite; quando eles passavam, ali – ali mesmo – cai uma quebrada. Olhe, foi mãe, e foi filho. O homem, sozinho, deu em maniar, andou por aí como azoado da cabeça e avariou de vez. Ele subiu àquela rocha – sim, aquela – e abicou-se.»
«Isto é uma vida, não é? Bem, amigo, ‘tou a gostar deste bocadinho, mas tenho de ir. Inté à vista. Ouça, espere, não me vai pôr estas histórias no jornal, vai? Ainda vão dizer que parece mentira.»

[Crónica publicada no JM, 04-VIII-2018.]

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