sábado, 12 de maio de 2018

Crónica 100 [Mães]

Nessa casa – nesse quarto – estava uma cama: um poiso nocturno de várias cabeças, de vários corpos – cinco crianças, uma mulher. [O primeiro sol do dia não entrava ainda pelas grossas gretas das paredes de blocos nus.] A mulher levantou-se, vagarosa, mas não conseguiu deixar de tocar com o calcanhar gretado na cabeça do filho mais novo. [O menino não despertou – ninguém acordou.] Tomou a sua única roupa, os sapatos ressequidos, uma mala parda – vestiu-se e municiou-se do pouco que ali havia. [Fez isto em silêncio – mas com uma pressa sôfrega.] Chegou-se à porta, abriu e tirou o cadeado, saiu; fechou a porta, colocou o cadeado por fora e fechou-o. Daí a um quarto de hora – calculou ela levantando a cabeça para os matizes da manhã anunciada – passava, lá em baixo no caminho, a camionete para a cidade. Ela ia apanhar a camionete.
Os meninos continuaram a dormir mais um par de horas. Acordaram e descobriram: que estavam sós, fechados, sem luz, sem água, sem comida. Vieram os brados, que trespassaram as paredes. A vizinhança e a família ouviram, entreolharam-se confusos e pasmados, rangeram os dentes, levantaram as mãos ao céu. Amaldiçoaram este caos moral; depois ajudaram as crianças; e esperaram, durante várias semanas, a volta da mulher.
Ela finalmente voltou; às palavras que foi sofrendo na subida do caminho, principiou de responder com rugas de embaraço; por fim, virou-se, retesou o corpo de orgulho [um tanto vacilante, diria quem pudesse reparar] e disse: “Ninguém tem nada a ver com a minha vida.”
*
A menina tinha esse mau hábito – em vendo um animal a dormir, aproximava-se no seu passo devagar, em jeito de emboscada; parava, agachava-se – e começava a afagar o bicho. Podiam ser cães, gatos, galinhas, patos, um porco num chiqueiro [uma vez]. [Quando esta história chegou a mim, lembrei-me que Jorge Luis Borges, num poema, dizia que entre os justos – entre as pessoas que «estão salvando o mundo» –, está «O que acaricia um animal adormecido.»]
A mulher que gerou esta filha, em face do perigo, nada mais podia fazer do que andar armada de vigilância constante. [Um gato arranhou, um dia, a menina; um cão tentou também mordê-la.] Repreensões não tinham efeito – nem uma desesperada palmada.
Na verdade, à filha esta mãe não poupava cuidados, atenções, carinhos e regras nutridas de boa civilidade. [Até aceitava – como ficou contado – um ou outro pequeno capricho ocasional, à laia de contraponto.] Mas nesta tarefa estava sozinha. O marido – o homem que lhe coube em sorte, num casamento contratado – não prestava os mesmos tributos à graça que Deus lhes tinha deparado. Até ver, era indiferente – e incapaz de ter amor e de mostrá-lo à filha invisível. 
De vigilante que era, a mulher tornou-se apreensiva. Algo mudara. A menina começou a acordar com pesadelos e a andar distraída, aborrecida, desobediente, desafiante. A missão educadora parecia estar a ser subvertida por algum agente do caos.
Num dia, a mulher chegou a casa – e viu. O marido – o pai – tentava forçar a filha à mais hedionda ignomínia. A mulher viu – e, resolvida e em silêncio, foi à cozinha; tomou uma faca; aproximou-se por detrás; e passou a faca na jugular do homem.
Quando as autoridades chegaram, ela estava a sossegar a filha, que finalmente adormecera. Levantou-se e disse: “Sim, fui eu. E tenho orgulho disso.”

[Crónica publicada no JM, 12-V-2018.]

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