Duas borboletas monarcas voam sobre um chão urbano devoluto
– regateado lentamente por ervas daninhas, silvas, teias de aranhas. As
borboletas sobem, em círculos concêntricos cada vez mais apertados, como se
guiadas pelo mesmo furacão, como se tivessem por destino o centro de acalmia. Sobem
– e unem-se em pleno ar. [Quem vê este acontecimento, respira alguns segundos
de suspensão.] Caem depois as monarcas, juntas – quatro asas indistintas como
uma só folha caduca, numa paleta desbotada –, e desaparecem por entre as ervas.
Dois conhecidos dão uma mãozada, no meio da cidade ruidosa. Falaram:
“Então, rapaz, foste à tosquia? Essa cabeça… isso foi de gilete e tudo.” “Pois
é – foi por solidariedade.” “Solidariedade?” “Sim – solidariedade para com a
minha mãe.”
Três crianças – três irmãos – enfiam-se por uma levada
adentro. [Daí a horas hão-de chegar a casa, esfomeados e cansados. A mãe
mandará, depois de uma resonda de estremecer paredes e sacudir pilares, que eles
descansem os pés em três banheiras com água e sal.] No meio da jornada, surge
uma matilha de cães – um dos cães ladra – as crianças param – outro cão rosna –
o irmão mais velho tenta dizer, para os cães, mas sobretudo para os irmãos mais
novos, palavras de sossego, de paz, de plena harmonia entre homens e bichos – três
cães avançam – dois mordem o ar, um com um fio de baba no canto da boca negra –
os irmãos tentam recuar – o irmão do meio, de pés petrificados, diz que será
melhor não se mexerem – um cão roça a perna dele – o irmão mais novo chama o
nome do mais velho – e olha para ele em súplica – o mais velho dá-lhe a mão,
range os dentes, fala em calma, em firmeza, em não arredar pé, em nunca fugir –
a matilha avança – todos os cães ladram – o mais velho diz, baixinho – “Olhem
ali. Não se importem com os cachorros. Olhem ali, pró mar.” [Um barco navegava,
solitário, à frente das Desertas.] Quando os irmãos voltam os olhos para o chão
– a medo, à espera de uma sorte abençoada –, a matilha ia-se sumindo entre os
troncos das acácias e dos eucaliptos.
[Qual a relação entre duas borboletas, um filho solidário
com uma mãe doente de cancro e três irmãos ameaçados por uma matilha de cães?
Não sei – e, francamente, não interessa. Nesta toada, termino esta crónica da
mesma forma que terminei outra pretérita crónica caótica – com meia onça de
ego.] Naquela tarde, um homem, amigo do meu falecido pai, quando viu pela
primeira vez a minha cara nas páginas deste JM, avisou-me para ter cuidado –
que isto de escrever coisas nos jornais podia dar problemas, que nunca se
poderia saber das consequências, que era perigoso por causa da política. [Eu
agradeci com sinceridade a preocupação e disse que não haveria problemas – que
não me interessava trilhar por agora esses caminhos; o velho amigo do meu pai
não se convenceu.] Outro homem, naqueloutra tarde, disse-me que lia e apreciava
as minhas crónicas – e, rindo, avisou-me para ter cuidado porque, de contrário,
acabaria eu por entrar – a sério – na política. [Tentei esboçar uma réplica
qualquer, mas só pude ficar calado.] Talvez a Madeira, hoje, seja isto – seja
sobretudo isto: tudo é política, nada existe para além da política. [Sim, eu
sei – tudo é política; uma coisa, porém, é saber que assim é; outra coisa é
querer que assim seja.] Talvez eu exagere – talvez não exagere; talvez um dia
comece a escrever – a sério – sobre política; talvez me digam, na altura, que
só escrevo histórias – e fábulas; talvez me digam que deveria voltar a escrever
histórias.]
[Crónica publicada no JM, 29-IX-2018.]
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