sábado, 30 de setembro de 2017

Crónica 85 [A Velhota]

Numa das mesas da padaria, um velho falava, com alarve acentuação nas palavras. Estalava a língua nos dentes, como se tangesse as letras pela primeira vez, como se revivesse a primeira infância da comunicação. Ou tinha dentes novos, ou uma nova dentadura – fosse como fosse, a luta entre este homem e a sua cremalheira mostrava-se patética.
Noutra mesa estava um casal de velhos. Ele sondava as outras mesas com olhos de cinza e beiços descaídos; ela segurava a duas mãos um jornal e lia, mexendo os lábios inaudíveis, uma crónica de um rapaz de barba a puxar o grisalho, que escrevia sobre África, amores, perdas, desilusões, redenções, saudades.
Quem nestas coisas reparou foi uma velhota, sentada a um canto da padaria. Ela esperou que o jornal vagasse – também apreciava os escritos do cronista, os quais lia após fazer um varrimento pelas letras gordas –, mas a demora acabou por fazê-la desistir.
Levantou-se, pagou o garoto clarinho que tinha tomado, comprou também dois papo-secos e saiu. [Nunca esperava que os restos do café ficassem ressequidos na chávena.]
Dantes, ainda tinha – ou melhor, ainda tolerava – companhia neste ritual matinal na padaria. A ela se juntavam umas vizinhas, todas velhas, que encetavam um campeonato de exibições de fotografias nos telemóveis, de elogios aos caprichos dos netos [ausentes] e de queixumes em relação aos filhos, às filhas, aos genros e às noras [também ausentes]. Ela, sem filhos e sem netos, e negando a frivolidade de redes sociais e de gente que tentava enganar uma perfeita solidão, rapidamente se enfadou.
[Na verdade, trazia-lhe confusão este mundo de gente – novos e velhos; sobretudo velhos – agarrada a ecrãs luminosos. Confusão foi, com efeito, o que sentiu quando, pela primeira vez, viu uma outra senhora, em plena missa, atender o telemóvel. Depois, só alcançou sentir alguma piedade.]
E assim, nos últimos tempos, entrava no estabelecimento e recusava os convites para se juntar a outras mesas – dizia que não ia se demorar, que só queria tomar o café e ver o jornal, que tinha um bolo em casa no forno, que tinha de ir bordar uma toalha para parentes que a iriam visitar no domingo seguinte. [Havia verdade e mentira nestas declarações – era boa cozinheira, era uma doceira de lei, era uma bordadeira mestra; mas não bordava para ninguém; e nenhum familiar remoto a visitava.]
Nos fins de semana, que passava sozinha no asseio da casa – um santuário de ordem e de brilho – e no cuidado de orquídeas, antúrios, de uma miríade de flores feitas da vasta paleta de Deus, por vezes recebia uma visita.
Era uma vizinha, uma jovem mãe, que levava o seu menino. Com ela partilhava segredos de jardim, de cozinha, de agulha e linhas, de vida.
Nesse domingo à tarde, a velhota serviu fatias de um bolo de laranja húmido – cujo aroma beatífico se propagou do forno a toda a pequena moradia –, deitou dois copinhos de licor de nêspera e fez um sumo para a criança. Na sala, instruiu a aprendiz atenta no ponto de richelieu, deixou-a a bordar e sentou-se no sofá.
Fechou os olhos. O menino trepou-lhe para o colo. [A mãe da criança viu e sorriu.] A velhota teve um leve sobressalto, acomodou o menino sobre as pernas e abraçou-o. Ambos dormiram e sonharam um breve descanso.

[Crónica publicada no JM, 30-IX-2017, p. 17.]

domingo, 17 de setembro de 2017

Crónica 84 [Ensaio sobre o Medo]

“Filho… olha. Filho, olha p’ró pai.”
O rapaz, conquanto de coração oprimido na garganta, respondeu à segunda interpelação e levantou a cabeça para o pai. Pensou que ouviria uma frase imperativa e lapidar, em todos os sentidos ditos e entrelinhados, e assim, por breves momentos, arrostou o medo – como se caminhasse até à beira de uma falésia precipitada na escuridão. Sem este gesto – sem esta suspensão do medo, que fez crescer em coragem o pai –, a voz escassa que queria falar não teria cortado o silêncio – e não teria sido escutada.
“Meu filho… não tenhas medo.”
Três semanas passaram – três semanas apaziguadas – e o pai desceu os seus sete palmos de terra, num dia afogado de calor e de humidade colada nos corpos e nos cabelos.
Durante e após o luto, o rapaz teve muito em que pensar – e em que cismar –, no redemoinho dos seus quinze anos. [Quinze anos – e era já maciço como um arpoador de baleias.] Tão pouco ouviu o pai falar, na célere passagem dos anos, que não sabia o que fazer com o pouco que tinha escutado. [Por vezes é assim, a relação entre gerações. Agarremo-nos ao que temos.] Sobretudo, aquela sentença tinha ficado a pairar, dentro de casa, fora de casa, como um outro sentido a peneirar a percepção das coisas e a tecer a convivência com os homens.
A vida continuou, pois, na aparência pouco diferente, na verdade nada igual.
“Não tenhas medo”, pensava – ou ouvia – o rapaz, quando se aproximava, dia após dia, dos portões da escola. Nessa manhã, porém, foi com um sentido mais apurado que percebeu o farejar da matilha de “bullies” que o esperavam. Repetiu, entre dentes: “não tenhas medo” – e, agarrando nesse arpão, aprumou as costas e levantou a cabeça. Tornou-se a imagem do poder, da ausência de medo. Os agressores, como cães, fungavam de facto todos os movimentos do rapaz, à procura de eflúvios de temor que contagiassem o ar. Dia após dia, foram ficando mais mansos, quietos, desviando o olhar e desintumescendo os focinhos. Um deles, interpretando mal os seus próprios instintos de bicho, certa feita atreveu-se – e, abandonado pelos restantes, levou um pontapé no rabo e fugiu.
Sem o rapaz se aperceber, uma coisa que demandava resolução ficou, destarte, resolvida. Sobrava outra.
A sua casa, outrora com quatro viventes, agora compunha-se da mãe, da irmã mais nova e dele. [Uma mulher, uma criança, um adolescente; nenhum homem.] Portanto, ainda hoje – como se hoje, com efeito, fosse diferente de ontem –, esta casa tornou-se, aos olhos de outros, uma casa vazia de poder patriarcal – vazia de um poder a servir de marco, de fosso, de muralha, no teatro de guerra civil entre família e vizinhos. Em face disto, pouco tempo decorreu até que ele, com voz brava, expulsasse de casa tios e tias, primos e primas, que ali iam, sem respeito, dar livre curso a frustrações, vazando-as sobre quem parecia indefeso. [Encontrou coragem adicional para isso quando, cheia de aflição, a irmã pequenita gritou com um tio que tinha cingido, com a pata imunda, o braço da mãe.]
“Não tenhas medo”: nestes tempos – em todos os tempos –, o que de melhor pode dizer – e ensinar – um pai a um filho? Quantos filhos precisam de ouvir estas palavras? E quantos pais precisam de dizê-las?
[Poderá não vir ao caso, mas apetece-me acrescentar: escrevo estas linhas pelos dias em que completo os meus trinta e sete anos. Olhai: 37 – um número feito de arestas e vértices, de lâminas e pontas.]

[Crónica publicada no JM, 16-IX-2017.]

sábado, 2 de setembro de 2017

Crónica 83 [Pais e Filhos]

A mesa era pequena – e as bases dos copos de imperial molhavam o plástico encardido. A dois cigarros, tirados de um maço de ‘King Size’ [‘Rothmans’], deu-lhes a ignição o mesmo isqueiro. O meu pai, quando sentado, acabava sempre por ficar debruçado sobre a mesa – as costas num declive de vale escorregadio, o cotovelo pousado em ângulo fechado, a mão esquerda que desaparecia sob o cabelo preto, da testa à nuca. [Já me disseram que eu, por mais que tente endireitar as arcas, acabo por ficar na mesma posição – até a mão penteando o cabelo mais ralo.]
Contou o meu pai: «Uma vez, o pai tinha cinco anos, mais ou menos, ia mais teu avô [um homem enfezado, de alcunha o ‘Cachimbo’] numa vereda, lá dentro, no Porto da Cruz.
«Aparece um gajo na vereda e pede a teu avô um cigarro – “Oh Cachimbo velho, dá-me um cigarro!” Teu avô disse que não tinha, ‘tás a ver, era uma miséria, não havia dinheiro p’ra nada. Olha, o estupor não faz mais nada – larga uma bolachada em teu avô. Ele virou de cangalhas, caiu p’ra lá, ficou a sangrar.
«Eu era pequeno, comecei a chorar, mas fiquei ali, não larguei a mão de teu avô [e mostrou o punho em sinal de firmeza – uma mão tenra a amparar uma mão madura]. Olha, a gente sai dali, chega a casa, tua avó [uma mulher esguia, de apelido a ‘Cachimba’] arranja lá umas coisas quaisquer p’ra tratar de teu avô, umas ervas, p’ra parar o sangue.
«Bem, isto passou-se.
«Eu nunca me esqueci. Anos depois, venho de Angola, o sangue a ferver [apontou com o indicador da mão direita para a própria cabeça] daquela coisa toda, e um dia vou ao Porto da Cruz. Entro numa tasca da vila e quem é que eu vejo? – Ele. Eu disse p’ra mim – “Nem é tarde nem é cedo, é agora.” Cheguei ao pé dele e disse – “O senhor não se lembra há uns anos, assim assim, o que fez?” Ele olhou p’ra mim, começou a frisar os olhos e fez-se de desentendido. Eu não deixei ficar. Voltei a perguntar. Ele disse – “Ah, isso eram outros tempos.” E eu – “Ah, eram outros tempos?” Olha, vai dali, não fiz mais nada, puxei a mão atrás [falava com narinas e sílabas cheias – e levantou e fez recuar o punho direito, como se uma flecha fosse engatada num arco até ao limite da tensão da corda]. Larguei-lhe uma batata, duas, mais até. Foi uma zaragata e o diabo. Vieram os outros clientes, gente da vila, veio a família toda por aí abaixo – todos p’ra meter calma. Calma, o quê? Eu disse a eles – “Vocês não sabem o que ele fez.”
«O filho dele, que era da minha idade, veio logo falar comigo. Perguntou se eu achava certo. E eu disse – “E achas certo o que ele fez há uns anos? Mas olha, se quiseres continuar, por mim não há problema”. E ele ficou assim, não houve mais nada.»
A máquina da memória é insondável – tanto nos esquecemos, tanto nos lembramos, tanto queremos esquecer como queremos lembrar. Não estou seguro das palavras. Não estou seguro da cadência da confidência de um pai a um filho adulto. Mas devo dizer isto: esta história [a minha 50.ª crónica para o JM], porventura simples, de violência e de vingança, é afinal um elo, tenso como a corda de um arco, entre pai e filho – entre pais e filhos, entre idos e vivos.

[Crónica publicada no JM, 02-IX-2017.]