sábado, 20 de fevereiro de 2016

Crónica 42 [Palavra e Acção]

Ele foi um jovem vivaço – de olhos que brilhavam e pernas inquietas, sobretudo quando sentado nos bancos de escola. Desde sempre que tinha a cabeça povoada de ideias. Toda a gente – os pais, a família, os professores, até os colegas – lhe vaticinava um grande futuro – um futuro de projectos e concretizações.
Porque projectos tinha – desde sempre. Iria construir o avião mais veloz que alguma vez existiu; seria um pugilista em competições mundiais; escreveria romances como grandes cartapácios; seria, enfim, tudo o que sonhasse… E para esses planos concebia as estratégias mais minuciosas e pormenorizadas. E a toda gente explicava tais pormenores.
Os adultos achavam-lhe piada, até que ele, entretanto, foi também cumprindo, lentamente, a maldição de se tornar adulto. Na fronteira entre a juventude e a vida adulta, pensou em cursar Filosofia, Estudos Literários, etc. Iria ser um académico versado em Wittgenstein ou Padre António Vieira...
Na hora H, de tanto pensar na escolha do curso universitário, não conseguiu se decidir. Ficou a trabalhar, por diligências de um tio, no secretariado de uma pequena empresa – e por aí foi ficando, com um desempenho mediano e, amiúde, medíocre.
Mesmo assim, as ideias não se lhe estancavam no bestunto. Tudo parecia possível. Continuou a planear – e a explicar os seus muitos planos a qualquer interlocutor que se lhe atravessasse no caminho. Dois minutos bastavam para isso. Dizia que sabia exactamente o que fazer – e como fazer. Uma hora era um modelo de construção de casas económicas que iria revolucionar o ramo; outra hora era uma indústria de alimentos gourmet que iria conquistar o mercado internacional; no dia seguinte, ou nos dias seguintes, era… outra coisa.
Na sua cabeça estava tudo resolvido e delineado. Todavia, se em jovem lhe achavam piada, em adulto, pois, sobretudo após chegar à cifra severa dos trinta anos, começaram a vê-lo como aborrecido, frívolo – como um saco roto de imaginações, de devaneios, de “histórias”. Diziam-lhe que, se quisesse fazer alguma coisa, já era a altura de calar e de passar aos actos.
Os seus olhos só brilhavam, agora, quando falava dos projectos; de resto, sobretudo nas manhãs, após a inclemente avaliação do fim do dia anterior e a noite de sono – ou de insónia –, os seus olhos eram de um baço ressequido.
Um amigo, que tinha lido umas coisas e visto uns vídeos no youtube, tentou dizer-lhe que não devia falar tanto acerca do que planeava realizar. Não pelos outros, mas por ele próprio. Dizia-lhe que, enfim, no que tocava a ambições e a projectos futuros, verbalizá-los constantemente poderia criar verdadeiros alçapões – para ele mesmo. Isso era da psicologia: quando se fala demasiado no que se vai fazer, a mente acaba por se convencer de que, efectivamente, tudo já está feito. Por vezes, instava o amigo, temos de calar – e fazer.
Este diálogo não surtiu efeito. O amigo, antes de desistir de ajudá-lo – e porque desistiu – ofereceu-lhe um livrinho do Padre António Vieira, onde estava o Sermão de Santo António aos Peixes. Se a psicologia não funcionava, talvez um pouco de sabedoria...
Ao falar dos defeitos dos peixes, o Padre António Vieira atribui esta prática ao roncador: «O muito roncar antes da ocasião é sinal de dormir nela.» O amigo sublinhou, com tinta carregada, estas palavras. 
Ele disse ao amigo que achava que compreendia – mas que cada vez mais lhe custava adormecer.

[Crónica publicada no JM, 20-II-2016, p. 2.]

sábado, 6 de fevereiro de 2016

Crónica 41 [Então Quem Foi?]

Hoje, caro leitor, quero falar de uma expressão que considero fascinante. Já a tenho ouvido ser dita por vários indivíduos, em diversas ocasiões. [Até por mim, presumo – ainda que não me lembre agora de uma circunstância em especial.] Não me posso assegurar do facto de ser madeirense – no sentido de ser típica, característica, idiossincrática. Na verdade, não tenho forma de comparar com outras regiões do país, mas a intuição – apenas uma singela intuição, ou um singelo exagero – diz-me que, pelo menos, é uma expressão usada nesta nossa Ilha da Madeira. 
Vejamos esta história. Não tem muito tempo que, estava eu a fazer uma compra num pequeno estabelecimento comercial – assim uma mercearia com snack-bar –, ouvi um diálogo entre o funcionário da caixa registadora e o que parecia ser um zelador, ou vigilante, do condomínio. Este disse àquele que uma zona comum estava alagada. O funcionário replicou que compreendia – que era verdade, que também o tinha constatado –, mas que não tinha sido ele o responsável. E, nesta sequência, disse logo o vigilante: “Não? Então quem foi?”
E pronto. Fiquei a matutar. Como disse, já tinha ouvido aquelas palavras, em contextos semelhantes, mas desta vez um rastilho foi accionado na minha cabeça.
Vejamos o contexto a partir do qual brota a expressão – e, depois, o caminho que ela trilha.
Em termos esquemáticos, tudo começa com uma transgressão – pequena ou grande, não interessa. Pequena ou grande – isso dependerá da avaliação de quem irá acusar, avaliação que está, por sua vez, directamente relacionada com manutenção ou busca de poder. Depois, este acusador tem uma suspeita – ou uma certeza, forjada com poucos ou nenhuns factos. Todavia, não quer enfrentar, de peito aberto, o suspeito – ou os suspeitos. Vai então falar com a pessoa, ou as pessoas, de quem desconfia. Relata a transgressão em tom que, na aparência, soa como simplesmente informativo, mas que – quer pela voz empregue, quer pela linguagem corporal, quer ainda pelos apartes – indicia que o interlocutor é acusado e culpado. Este, por sua vez, proclama a sua inocência, dizendo, por exemplo: “Não fui eu.” O acusador, nesta dança, coloca o réu entre a espada e a parede, retorquindo: “Então quem foi?”
De forma dissimulada, esta última expressão afirma basicamente duas coisas. Em primeiro lugar, que a declaração de inocência, e o correspondente arrazoado apresentado, não convencem – e que, portanto, o acusado continua a ser suspeito ou culpado. Em segundo lugar, e ainda que não haja consciência disso, o suspeitoso, não se assumindo culpado, vê-se obrigado a ser um delator. Portanto, se não for culpado, tem de ser no mínimo um bufo. E aqui temos: ou a espada – a culpa –, ou a parede – a delação.
No fim de contas, é uma expressão que contém o seu quê de denúncia velada, o seu bocado de desconfiança, a sua parte de apoucamento dos factos, o seu tanto de acusação, a sua parcela de dissimulação, a sua quota de obrigação à delação – o seu, enfim, quinhão de cobardia.
Espero que um dia esta expressão acabe – que um dia deixe, por tudo o que parece significar e transmitir, de ter livre curso nas bocas e nas mentes deste meu povo. Porque, na verdade, todos nós já a proferimos. [Agora penso que também um dia a disse. Quer dizer, não estou certo – estou a ficar velho e a memória já me vai falhando.] Ai não, caro leitor? Nunca usou esta expressão? Então quem foi?

[Crónica publicada no JM, 06-II-2016, p. 2.]