quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Crónica 5

Tudo em redor [dizia-me ele] está pintado em tons de escarlate e de ocre. [O lábio leporino, de tão agitado, quase que se esventrava em mais uma fenda.]
Há dias, juro, vi pessoas a incinerarem-se, chamas que desciam pelas costas e pelas ilhargas, prendendo-se à cintura. As mulheres irrompiam em chamas mais lúgubres, um vermelho de sangue coagulado. Mas juro que vejo isto.
Costumas vislumbrar estes cenários de terror?
Pá, só fazes perguntas estúpidas. Qual terror? Olha ali, olha ali de novo, não vês? Eu tenho dito às pessoas o que vejo.
E elas acreditam?
Mais uma pergunta estúpida. Quer dizer, repara, quando eu falo nas chamas, nas cores de sangue em coágulo, ninguém me riposta, nem um esgar de espanto ou de nojo ou de terror – estás a ver como não há terror? –, todos desviam o olhar, balanceiam nervosamente na cadeira. Há fuga, não há negação, há culpa, não há increpação.
Por que razão achas que tens essas visões?
Pá, foda-se, mas quais visões? Vejo tudo, digo-te. Razões não as tenho – já que perguntas. Nunca vi muitas coisas antes, é verdade. Fui sempre vizinho dos sentimentos, das sensações, dos vícios. Imagina um homem pálido de experiências, tão pálido que a visão forjou o mundo estranho, perdido dos mapas, dos pontos cardeais.
Curioso. Perdido dos pontos cardeais?
Costumas repetir as últimas frases dos outros? Raios. Sim, perdido. A cor lívida do vazio passou a estar impressa na retina. Sem experiência não há visão.
Não será que a experiência é o método individual mais falível de aceder à realidade?
Depende. Quais são as alternativas?
Sei lá – estudo e, precisamente, observação.
Tretas.
Hum?
… Durante muito tempo nada vi, nada senti – é como te digo. Agora que continuo na penúria, vejo chamas, as cadências do rubro, que vieram tomar o lugar do branco da cegueira.
Escarlate e ocre misturados não produzem todos os tons de vermelho.
Ouve-me, faz-me essa vontade.
Ouço-te.
As chamas, que são? – pergunto-me.
Qual a resposta?
Não sei. Tenho medo que a penúria traga agora a escuridão. O meu remédio é o fogo. Penso que serei o próximo a arder.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Crónica 4

O egocentrismo? Muito havia para dizer [ou para dizer-nos].
Começaria por defender que o número dos pecados mortais merecia ser actualizado; em vez de sete, oito, sendo o oitavo – contribuição máxima e paroxística dos nossos tempos – precisamente o egocentrismo [simultaneamente semente e síntese dos restantes].
Muito por onde escalpelizar, com efeito. Permiti-me apenas, por horror à página em branco e à tarefa de escrevinhar palavras forçadas, e porque sou bem locupletado de temores, apregoando-os aos sete ventos, permiti-me, dizia, abordar alguns fenómenos tocantes ao modo como os hominídeos estruturam o diálogo.
Em primeiro lugar, que acontece? Ninguém ouve ninguém. Verdadeiramente falando, ninguém escuta ninguém. Ao invés de diálogo – dois monólogos que nunca urdem uma mesma malha. O tempo ocupado pelo oxigénio tingido das palavras de um “parceiro” é, simplesmente, o tempo no qual o outro “companheiro” se entretém a forjar as suas próprias – e próximas – elocuções retóricas. Faz lembrar, considerações outras à parte, diálogos de crianças que começam a dar os primeiros passos no entrosamento e empatia sociais. E, nesse sentido, decadentista como sou, tenho de proclamar uma verdadeira involução civilizacional.
O diálogo não existe, portanto. A existir, ou seja, quando as palavras são ouvidas – e não apenas lábios a sacudir e a estalar –, não produzirão qualquer efeito no outro. De uma desatenção à forma, passamos a uma recusa do conteúdo. Tudo se centra em torno de nós. Porque eu senti a raiva; porque eu senti o afecto; porque eu é que tenho o medo; porque eu é que sofri; porque eu é que cumpri ou deixei de cumprir a porção – ínfima, na maior parte das vezes – da vivência.
Tu tens as tuas agruras; os teus amores; os teus sofrimentos; sem dúvida, os teus sucessos. Nada do que é teu suplanta – suplantará, jamais – o que é meu. A mera transmissão supérflua de experiência é apenas palco para que se transmita, de modo chão, as nossas incontornáveis experiências.
Desta nascente são vertidas no mundo asserções moralistas – sendo nós o centro do mundo, somos dele também a norma e o protótipo – e, quando não há o outro, também não há o concreto, o objectivo, o que é e permanece diferente.
Sobram categorias e abstracções facínoras.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Crónica 3

Eu explico-vos o que coarcta a mobilidade social de um indivíduo: a tribo.
A tribo que desdenha de qualquer conseguimento fora daquele a que a sua tradição e o seu grupo social pertencem [e a mobilidade passa logo por aí – por pensar e agir fora da tradição e do grupo social a que se pertence]; a tribo que encolhe os ombros perante qualquer sucesso ou dificuldade que provenham de sistemas exteriores aos seus; a tribo que tece comentários de um sarcasmo de cinco tostões; a tribo que desvaloriza e que não reconhece um capital de orgulho novo perante os outros [que estão fora da tribo]; a tribo que olha de soslaio ou boquiaberta no mais simples quotidiano [por exemplo, quando se folheia um livro].
Há quem professe a ideia axial da maior liberdade pessoal possível – há quem a defenda com tudo o que tem e pensa. Quem o faz não pode eximir-se, por conseguinte, da agudeza da responsabilidade individual e social que provem de tudo o que faz e pensa. Logo, tudo o que nos acontece – ou não acontece – advém da nossa acção – ou inacção.
Porém, nunca fez mal a ninguém pensar em termos contextuais. [As ciências sociais, com todo o seu cortejo de ideias transvestidas e garridas, trouxe, pelo menos, o condão de obrigar a matutar no contexto onde nascemos, laboramos e morremos]. Vencer é saber os obstáculos mais próximos – os mais silenciosos, morosos, insidiosos e mortais. Estão sempre aqui ao lado. Vencê-los equivale a respirar: é acção constante, de vigilância contínua, de inspirar a desadequação sentida – em nós projectada – e de expirar o desconhecimento e o desdém que se nos colam.
E pensar em modos contextuais é apenas isso: um conjunto de instrumentos de entendimento. Ao corajoso, exige-se acção. [É pela acção que se lhe concede esse epíteto.] Poucos, no entanto, reconhecem coragem na necessidade de conhecer o que temos de percorrer e de transpor. É esse o primeiro denodo, o primeiro arrojo – e é-o ainda porque a enormidade da tarefa, quando reconhecida, será, porventura legitimamente, o primeiro obstáculo intransponível.
Não há luta de classes. E de certo modo não existe luta de classes porque confinamo-nos, por instinto primordial, ao nosso grupo social. Do grupo social sair-se-á apenas por engano ou distracção [se a tribo deixar – por exemplo, trocando o que acima expus por entusiasmo infantil]. Dando nós fé da situação, a de uma efectiva mudança de estatuto social, duas soluções daí brotam. A filantropia; o desprezo pelos outros – não raras vezes coligados.

domingo, 14 de agosto de 2011

Crónica 2

Nós, os católicos latinos – pueris, agressivos, tribais, afectuosos –, não compreendemos e tememos qualquer distância prévia entre os homens. A distância antecipada, a existir, é uma traição à nossa matriz cultural – ou o produto de sérios traumas, desilusões e frustações [de amor ou de amizade].
Sem prova – retumbante ou continuada – em contrário, entrosamo-nos, aproximamo-nos, damos e solicitamos o possível – quer dizer, tudo! – em troca.
Um dos modos de trilhar, em minutos, as distâncias decorrentes das diferenças de carácter, de sentimentos, de experiências e de mundividência [afinal, as distâncias quase intransponíveis em tempos de agudo egocentrismo], é a confidência. Entenda-se: conceder e partilhar informação que, sem qualquer valor imediato, permite ao outro aceder a um acervo parcial dos nossos segredos; ou, se se quiser, que permite ao outro transpor as portas e ser hóspede da nossa casa [daí, também, a nossa prodigalidade na hospitalidade].
Quando a partilha não se coíbe de invadir a casa de terceiros – aí estamos no terreno da coscuvilhice, esse igualmente excelente expediente de cruzar espaços íntimos mentais e de construir amizades, transitórias ou não.
[Ao mexerico, ou à bilhardice, conceito cunhado pelos meus antepassados, dedicarei uma crónica futura.]
Em tempos de egocentrismo e de perniciosa intrusão de preceitos e cosmovisão trazidos, sem mais, de outras latitudes [ao norte do Velho Continente], a minha geração evita a coscuvilhice [detesta-a por mera auto e hetero imposição progressista, abstracta e vazia].
Daí decorre a relevância, por falta de outras ferramentas, da confidência sem crivos ou filtros. Ao abrir do pano, o espectáculo consiste numa troca de informação, entre amigos, conhecidos e recém-conhecidos, que vai para além de comezinhas discussões. Não sabemos discutir ideias e apetências sem sermos agressivos, indiferentes, surdos, monossilábicos – ninguém pede ao esquilo, que trepa árvores, que voe.
Sabemos e falamos da mecânica do amor e da amizade, tendo-nos por maquinistas. E pretendemos, na primeira pessoa, aprender e ensinar – como eternos alunos e mestres.
O próximo passo, fim do processo de imitação de um ideal pálido e estranho – para nós, filhos de Trento – de impessoalidade, será o de negarmos até este reduto de calor.
Que Deus nos valha.

Crónica 1

Um jovem professor abraça a noção, sobretudo quando a dúvida vocacional se lhe implanta no imo, de que é um agente de mudança do mundo – que cada aluno é uma molécula de uma matéria transformada e transformadora.
[Quando a dúvida vocacional não existe, quando há a descrença na vocação – descrença que é fardo e apanágio de poucos –, presumo que o melhor que o pedagogo pode é aprender uma profissão manual, sem admitir aprendiz.]
O jovem professor reproduz, destarte, geração após geração, um dos enganos mais antigos desde que a humanidade teve de lutar pela sobrevivência [luta que teria de salvaguardar, em primeiro lugar, a sobrevivência do conhecimento]. O engano: que conhecimento é mudança e que a mudança inscrever-se-ia numa linha de progresso sempre ascendente. Veios de transmissão ideológicos e moralistas de uma teleologia bem vincada – afinal, que somos nós, primordialmente? Ainda que zelando pelos saberes tradicionais, conservando-os, que somos nós, quando ensinamos, senão pretensos obreiros de desenvolvimento controlado e ingénuo?
[Meia crónica escrita, parto agora em busca das palavras certas.]
A mim o destino concedeu a oportunidade institucionalizada de exercer, por breve tempo, a profissão mais nobre do mundo. Deste modo: efebo perdido entre uma horda dos entes mais calculistas que pude conhecer.
A adolescência é um conceito que tem o condão de, apenas enunciado, se tornar, por si só, argumento justificável dos comportamentos de uma faixa etária que a história recente fez nascer.
Uma sala de aulas cheia de olhares carnívoros e lúbricos – e o meu corpo assim dilacerado – era o espaço habitual do exercício da profissão.
Fora, a savana rugia, de agressividade e sentimentos contraditórios.
Alguns cães transpunham as entradas da escola e confraternizavam com os estudantes. Elas – sobretudo elas – e eles acarinhavam os bichos. Não obstante, por razões sanitárias – não sei se a favor dos animais ou dos alunos – tratava-se de expulsar os primeiros usando métodos coercivos.
Duas alunas observei, da janela de uma sala de trabalho do 1.º piso. Principiaram a chorar copiosamente quando um pequeno cão foi açaimado de modo grosseiro – e levado. Choravam até que – os meus olhos de espanto sinistro –, em acto contínuo, começaram a gargalhar furiosamente, amparadas uma na outra, curtindo o sentimento de pesar encenado que só podia resolver e explodir em esgares de riso. Este vai-vém manteve-se, não me lembro já, mais uma ou duas vezes: choro, gargalhada, choro, gargalhada.
Afastei-me da janela inseguro, ainda hoje, passados quase 10 anos, do que vi.

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

[Início]

Este blogue pretende ser um depositário de crónicas, dando corpo a um projecto pessoal - o de publicar, pelo menos, uma crónica por semana [com extensão mínima de uma página A4]. O húmus do que escreverei consistirá em ficções, memórias, confidências, costumes, ideias e teses [ou tudo isto mesclado]. Espero cumprir com esta aguda, mas fecunda, auto-imposição - se não cumprir, presumo que nada de funesto ocorrerá.