Dois homens falavam, com os pés sobre a grade da adufa, à frente da tasca. [Semilhas, feijão, regas, madrugadas ao alto, dias tardios, pouco dinheiro, costas que doíam.] Quando se despediram, disse o que tinha a cara mais curtida do sol e do vinho: “Olha, ‘tou bastante contente... ainda bem que a gente se encontrou. Daqui a uns anos a gente encontra-se outra vez, aqui mesmo, pode ser? Se houver saúde e se ‘tivermos vivos... Sabes o que é que eu queria? Queria ir ao funeral dos meus amigos. [O ouvinte contraiu as beiças num ricto amarelado.] Percebes? Há dias diziam-me assim: não gostavas que os teus amigos fossem ao teu funeral? Eu disse que sim – e disse que também gostava de ir ao funeral dos meus amigos. Bem, foi bom este bocadinho. Força.” Entraram nos carros e foram embora.
Uma pessoa ouve, lê, pasma. Ele é Jack Kennedy, é George
Orwell, é Churchill, é Lampedusa, é Huxley, é o Fernando Pessoa das “Pedras no
caminho” [“Guardo todas, um dia vou construir um castelo”.] [Um castelo ou um
pardieiro apócrifo – é igual.] Ele é citações cansadas, vindas a despropósito e
a armar ao pingarelho. Enfim, parece que o “Citador” online anda a bater
válvulas – e parece que há gente que só ontem começou a virar frangos, sobre
lenha húmida, ou que anda a mondar silvado com mãos macias e unhas de manicura.
Um homem aproximou-se de outro. Meteu o dedo à frente dos
olhos do receptor, olhou para a testa dele e abriu a boca: “Tu nunca mais
t’atrevas a falar assim comigo, senão largo-te uma relampada na ouvideira que
ficas a zunir até ao ano que vem, ‘tás a compreendestes?” O outro deixou correr
uns segundos – e ripostou: “Da próxima vez que falares assim comigo, largo-te
uma batata na tampa da cabeça que racho-te até ao forro das grãs, ‘tás a atremastes?”
A seguir, ficaram fechados numa suspensão – sem ponteiros e sem perturbação do
exterior. Finalmente, sacudiram-se a rir, de costas curvadas e palmas a bater
umas nas outras e nas pernas. “Vai-se tomar uma cerveja?” “Vai-se – mas não vai
ser cerveja. Hoje ‘tou a tomar pastilhas.”
A nossa época criou – ou passou a valorizar – uma
competência especial, uma vocação inédita, um talento sem par – a actividade
permanente nas redes sociais [no Facebook]. Sem mais questionamentos, dúvidas ou
hesitações, indivíduos há que são considerados relevantes – na opinião pública,
no mundo da política, no clima cultural e mental – simplesmente porque estão no
Facebook – e porque aí são constantes, pletóricos, cirúrgicos, em ‘posts’ e
comentários e etc. Além disto – ou em relação com isto –, há indivíduos que, na
construção do eu, da sua imagem, do seu perfil, têm tanta coragem, tanto
denodo, tanta boa-fé, tanto aprumo moral que... precisam de um perfil falso –
ou de perfis falsos – para o resto.
[Apenas mais um parágrafo caótico e mal-vestido – uma
história de ego, porque também mereço e porque já era para a ter contado.] Um
dia – lá vão muitas quinzenas –, passava eu no centro do
Caniço. Saiu de dentro de um ‘snack-bar’ um homem alto – mais alto do que eu, o
que é raro –, entroncado, sulcado e calejado pelo tempo. [Posso estar enganado,
mas pareceu-me reconhecê-lo – era um dos homens que, nos finais dos dias da
semana, estacavam às portas das tascas nas redondezas da Igreja de São Pedro.]
Chegou-se ao meu pé. [Com o braço direito, empurrei a minha mulher para trás de
mim e esperei.] Primeiro, falou – dir-se-ia – para um interlocutor imaginado:
“Deixa-me aqui cumprimentar este senhor.” Depois, estendeu a mão e acrescentou:
“Gosto muito das coisas que escreve. Muito obrigado.”
[Crónica publicada no JM, 09-VI-2018.]
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