sábado, 13 de outubro de 2018

Crónica 109 [Maternidades e Infâncias]

Mulher e homem acordaram com a enxerga de palha molhada. O homem abriu o lençol e o cobertor, revolveu nas pontas dos dedos uma camada da humidade que sentiu na cama e mastigou de aborrecimento. Sem olhar para a mulher, levantou-se, vestiu-se e saiu da porta para a rua.
A mulher deixou-se ficar mais uns minutos na cama. Disse alto à filha mais velha, de um quarto para o outro quarto: “Maria, traz-me o café.” A criança trouxe uma aguadilha preta bem adubada de açúcar. A mãe verteu um pouco do café bom da xícara para o pires, arrefecendo-o, soprou, aspirou um gole e ordenou: “Maria, vai chamar a Umbelininha.”
A criança missionária levantou as costas e o queixo, em dois passos estava no terreiro, subiu a vereda e deu uma carreira da vila até o outro sítio da freguesia. Daí a duas ou três horas, estavam a mãe e a parteira dentro do quarto de dormir, com as portas trancadas.
Antes, avisou-se as crianças daquela casa: “Não façam barulho, estejam quietos, que vai chegar um menino.” Um dos irmãos mais novos, para pacificar a espera – e a inquietude –, foi vigiar, de pescoço esticado até ficar entontecido, a passagem do avião que iria deixar cair o menino das alturas celestes. [Era assim que vinham os bebés – explicava-se.]
No quarto, Umbelina deu princípio ao seu ofício de mãos e de rezas inaudíveis. A mãe saiu da cama, agachou-se, mordeu o lençol torcido e fechou os olhos. Fora do quarto, nem o mais pequeno farrapo de um gemido se pôde perceber. Quando as crianças ouviram, por fim, um choro primevo, uma avioneta passava nos ares.
A filha mais velha, dois ou três dias corridos, foi inquirida pelas senhoras dos senhores ricos da vila: “Então, rapariga, já tens mais uma maninha?” “Tenho, tenho. As senhoras não viram? Foi aquele avião que passou aqui há dias que trouxe.” E as senhoras escancaram as bocas, como hienas taralhoucas, como cascavéis súbitas saídas de uma rocha, rindo do saber inocente das crianças.
            
Era um bebé gorducho e glutão – era um bebé voraz. [Bebé e voraz – duas palavras na aparência desagregadas, feias quando na mesma vizinhança; mas correspondem à verdade.] A mãe levantava-o do berço, punha-o no colo, embalava-o – e logo aquela boca abria-se para a mama que estivesse mais à boca de mamar. Enquanto a mãe não se descobrisse, o bebé ia cabeceando, arremetia como um aríete, abria e fechava a boca como a metade de um losango que se expandia e contraía, na senda do maná maternal. Depois, com as pequenas narinas esborrachadas contra a pele da mãe, sugava e mastigava com avidez.
A família ficava orgulhosa – estas coisas eram sinais de sã maternidade e de sã infância, de fecundidade, de comunhão, de bênção de Deus. Ficavam pai e irmãos pasmados, satisfeitos ou admirados, a ver aquele prodígio de apetite.
Numa madrugada, a mãe exaurida acabou de dar a mamada, desceu a camisola sobre o peito e o tronco, levantou-se e deitou o bebé, de costas, no berço. Depois, sentou-se de novo no sofá e logo entrou no sono.
Quando despertou – não sabia que tempo havia passado –, ouvia um manso gorgolejar. [Mansidão e gorgolejo – duas palavras aparentemente contrárias, quando juntas – e feias quando se referem a um bebé; mas foi assim que foi.] A mãe olhou – viu a sua camisola molhada de sangue, sobre o peito, e viu o bebé vomitar sangue.
Houve gritos, pressas, choro e angústia – houve um carro desembestado no caminho para o hospital.
Livrado o bebé de qualquer perigo, o médico desvendou o que a mãe secretamente já sabia – o mamilo esquerdo, de tanto ser sugado, tinha gretado e sangrado; o bebé havia se alimentado do leite – e do sangue da mãe.

[Crónica publicada no JM, 13-X-2018.]