sábado, 7 de julho de 2018

Crónica 104 [Perdão]

Não esperava – não estava preparado – para o que ouviu. Na altura – ou tantos anos passados – as palavras que recebeu – e que lembrava – deixavam-no sempre – ao adolescente – ao ente maduro – do mesmo jeito burro – a boca escancarada – os olhos arregalados – toda a cara caída no limbo do espanto. Ouviu, e ouvia: a velhinha pedia-lhe: “Perdoa-me.”
Poderia ser uma capitulação, uma derrota, silabada com saliva rogatória, num idioma entaramelado pela segunda – ou terceira – trombose. Se outros, que não ele, tivessem sido os receptores da súplica – talvez saltassem, exultantes, a espanejar os rancores, no terreiro desse lugar pequeno da Madeira, na ressaca de eras passadas na injustiça e na violência. [Talvez – mas é duvidoso.]
Se outros, que não ele… Porém, as palavras que ouviu – que lhe resvalavam nos ouvidos, dia inesperado sobre dia inesperado – não foram vitória – e também não foram derrota.
A velhinha tinha sido uma mulher de força, de armas, de resistência – assim parecia, era dito nesses moldes, era o modo como falavam vizinhos e conhecidos. [No Funchal, para onde emigrou a família, saída da freguesia “lá dentro”, esta mulher passou a conhecer toda a gente: grande e pequeno, gente “de ter” e borra-botas de solas esburacadas, o sr. dr. da política e o pedinte que destrocava as notas, gato e cachorro.] Era um colosso, uma fortaleza – pensariam e diriam, com tais palavras se tais palavras estivessem à mão, as pessoas que conheciam a mulher fora do sufocado meio familiar. Mas os filhos, alguns filhos, souberam e sentiram o que não saía da porta para a rua: a rudeza de carácter, a prepotência – a tirania que os subjugou.
E porquê? Não vale a pena gastar muita tinta.
Esta mulher deitava diferenças sobre os filhos; de entre todos elegia uns – e não escondia as suas preferências. Isto tinha começado, verdade seja posta a claro, pelo marido; duas décadas mais velho que ela, tinha como predilectos os filhos que eram parecidos com ele – os louros e alvos. Mas ele morreu – e morreu cedo. Célere e imediata – e longeva – veio a vingança. Os restantes filhos, os morenos, foram os preferidos da mulher; os louros foram até o fim os martirizados.
[Nunca se deu por isso, portas afora. [[Se se deu, não se fazia caso. Esta mulher cedo chegou ao patamar dos veneráveis.]] Neste seio familiar não morou a igualdade; ali a justiça não teve portas abertas e guarida; o amor entre homens e mulheres do mesmo sangue… bem, passava em veias distintas e trocadas.]
[Gastemos um pouco mais de tinta.] A mulher deixava a pele das filhas mais velhas eivada de hematomas: havia beliscões de dedos que torciam no sentido dos ponteiros do relógio – um relógio, dois relógios; se houvesse dedos e carne macia, mais corda se dava ao tempo e à dor; havia vergastadas de varas de salgueiro, prometidas de manhã, dadas à noite, em dias inesperados que se tornavam certos – e esperados. Havia beliscões e vergões – e chapadas em filhas casadas e mães de filhos. [Os genros, as noras, os filhos – todos tremiam; uns de medo; outros por dissimulação, mesquinhos por terem a carne livrada.]
Aos filhos preteridos reservou um destino – o de serem evas e adões primevos, obrigados a aprender o princípio de tudo, expulsos do éden materno para o chão imundo; aos preferidos, estendeu-lhes, lá fora, um chão imaculado. A uns e outros, deu-lhes lâminas fratricidas.
O que é um perdão? O que é um pedido de perdão? Passados os tempos, sujos de esquecimento, para que servem estas coisas reclamadas? Para o neto, então e agora – servem para nada.

[Crónica publicada no JM, 07-VII-2018.]