sábado, 24 de junho de 2017

Crónica 78 [Inferno]

Uma mulher grita porque, entre o fumo e a densa copa das árvores, vê a primeira língua do fogo que subia a encosta. [No topo estava a sua casa.] Perto dali, um casal lança mão de uma mangueira e de um balde com uma alça que rompia as mãos. Têm – e sabem-no – apenas água e força e exaustão para dar.
Entre a névoa fulva, sobre as telhas de uma casa, um homem vigia de braços cruzados o caminhar do fogo – que se aproxima vindo de este, de oeste, de cima, de baixo. Protege os olhos com óculos escuros – nada mais tinha à mão – e sobre o nariz e a boca apertou um tecido humedecido. Os vizinhos vislumbravam esta figura bíblica, que ficava imóvel durante horas, e dela colhiam um módico de alento e de coragem.
As labaredas chegam e há homens e mulheres e crianças que correm, que gritam, que digitam números nos telemóveis, que tossem, que matam o lume com água, com ramos, com panos, com os pés, com as mãos, que destrancam carros esquecidos para não arderem, que põem a salvo garrafas de gás para não explodirem, que soltam os animais, que esquecem os animais, que não conseguem respirar, que tapam a boca, que tapam os olhos, que cobrem as bocas e os olhos e os corpos dos filhos, que fecham bem as casas, que não conseguem respirar porque o ar é negro de fumo e saturado de faúlhas e de cinzas, que entram em casa para poder respirar, que não abandonam os seus lares, que correm para os vizinhos, que recusam fugir após ordens das autoridades, que pedem a familiares para levarem as crianças para que eles possam ficar para trás, aflitos porém mais descansados, que caem e se levantam, que choram, que se esquecem de instintos de sobrevivência, que só têm instintos de sobrevivência, que não desistem, que acabam por desistir, que se lembram de tempos doces e de horas de trabalho e de dias de descanso e de eternidades de aflições – aflições que não estas –, que não sabem se são lutadores ou heróis, se são resistentes ou sobreviventes.
No cabeço que amanhece negro, com a terra ainda quente sob as botas, entre as árvores decapitadas e esventradas pelas labaredas vê-se a raiz de um eucalipto que ainda tem no seu seio a gestação de carvão. Não há fumo, não há lume – há apenas um crepitar que brota com manha, zombador, como se quisesse crescer despercebido. Um homem vê isto e atira muitas pazadas de terra. O crepitar é sufocado.
Longe, para lá de uma vedação de ferro retorcido, de plástico liquefeito e caído ao chão, há os cotos calcinados de uma vegetação raquítica, que durante a noite ardeu longe dos olhos dos homens. Entre a vegetação um eucalipto permanecia alto, incólume – como se se vangloriasse da sorte, do desvio do vento que o subtraiu ao infortúnio.
Um homem desce a um dos seus poios. Na ameixieira, ele vê os frutos cozidos, tintos e enegrecidos, pendentes dos ramos que sobreviveram. O fogo, pensou o homem, matou-lhe a ameixieira como se ela tivesse sido lançada para dentro de um forno. [Morreram-lhe muitas árvores, mas aquela não.] Com fuligem na cara e dois dias e duas noites de vigília, o homem pega num machado e numa foice de mato. “Tenho de limpar isto. O que foi – foi. Se voltar, vai ser pior.”
[A tragédia de Pedrógão Grande, nos últimos dias, trouxe-me memórias vistas e contadas dos incêndios neste rincão madeirense – em 2012, 2013, 2016. Quando é que o nosso Portugal se livra deste inferno estuporado?]

[Crónica publicada no JM, 24-VI-2017, p. 2.]

sábado, 10 de junho de 2017

Crónica 77 [Vizinhos]

A mulher entrou no quarto e farejou o ar peganhento de medo – as narinas do filho eram verdadeiros foles, insuflados pelo que vinha a caminho. A mãe apanhou o vime de cima da mesa, onde este instrumento descansava nas horas desempregadas, e cerrou-o bem na mão. Este maestro, com esta batuta – frenética –, iria dar começo ao concerto e ao bailado do dia. 
“Qu’eu – já – t’disse – [a cada berro, a cada sílaba rugida, descia ou subia o vime] p’ra – nun – ca – mais – t’a – tre – veres [o filho, de voz a tremer: “ai mãe, pel’amor de Deus”] – qu’eu – rach’-te – os – ossos – seu – estu – por [e assim continuava].”
O pai era mais austero – não apreciava tragédias longas, dramaturgia elaborada, tempos calmos enchidos com lágrimas e correrias de evasão. O pai era mais seco. Uma mão, aberta ou fechada, de uma só vez, era o suficiente para acometer o filho, que certa feita passou por cima do sofá, à conta da força empregue.
Uma comunhão estranha, a desta família. Os pais irmanavam-se nos castigos ao filho – e o filho transgredia e recebia castigos como quem aceitava uma dádiva e estabelecia um elo. [Não havendo carinhos de mãe e de pai, um vime ou uma chapada já eram alguma coisa – já eram um veículo de comunhão.]
Neste bairro ruidoso, os vizinhos iam sendo espectadores destas coisas quotidianas. Alguns viam com escândalo; outros não – enfim, não sendo hipócritas, não se podiam indignar com o que se passava em casa alheia quando na sua própria casa rareava a dignidade.
O casal do número ao lado, a quem o filho dos vizinhos tinha partido uma vez três ou quatro cântaros de sapatinhos, era quem mais se afligia com os gritos e os uivos. Este casal não tinha filhos e, por isso, suportavam-se, marido e mulher, da forma mais correcta que encontraram. A mulher, doméstica e boa costureira, envergava uma compleição melancólica de que o marido, um bom pedreiro, tentava, com trabalho incessante e pesado, evitar o contágio. [Tentar, tentava. Não conseguia.]
Uma vez disse ele à mulher que estava a precisar de um ajudante para os biscates do fim-de-semana. Ela ouviu mas não soube o que responder. O marido dirigiu-se aos vizinhos da casa ao lado, avistou-os, disse boa tarde e pediu para falar com eles. Para dar suporte às palavras, levantou a mão hesitante, sem ameaça, e disse que precisava de um servente: tinha reparado que o filho dos vizinhos já tinha idade e tamanho, pensou que certamente teria força, que talvez fosse bom para ele, que se calhar dava-lhe jeito dinheiro para a escola, que estava disposto a levá-lo e a pagar-lhe, que…
O pai, desconfiado – não disse, não diria, palavra nenhuma –, encolheu os ombros. A mãe atalhou logo: “Leve, leve. Leve ele. Se quiser pode ser durante a semana. Ele também nunca deu nada p’rá escola. Nem p’rá escola nem p’ra nada.”
Destarte, o vizinho pedreiro tomou a seu cargo o vizinho rapaz e encetou, com ele, um trabalho incessante e pesado – um trabalho de construção de dignidade. Ensinou-lhe a manejar materiais e ferramentas toscas e precisas – e a ser educado; ensinou-lhe a levantar casas – e a respeitar e ser respeitado. O rapaz aprendeu uma arte – e aprendeu, afinal, a ser homem.
Anos volvidos, o rapaz desta história, já adulto, falava com um amigo dos idos da adolescência, que nunca tinha saído do bairro. Recordavam as malhas que levaram e o amigo, jocoso, disse: “Então tu… eras um triste”. Ele devolveu: “Eu… eu tive sorte.”

[Crónica publicada no JM, 10-VI-2017, p. 2.]