sábado, 26 de novembro de 2016

Crónica 64 [Na Camionete]

Vai esta camionete à cunha, cheia de gente, tristeza e cansaço, quase a desmanchar-se por caminhos esburacados, afunilados, íngremes. Vai pela Madeira rural adentro.
Um dos últimos passageiros a embarcar entalou-se à frente, de pé no corredor, perto do chofer. Olhou com desafio – com alguma malícia inócua, talvez – os restantes passageiros. Entre estes, alguns repararam e ficaram tementes, ou resignados – ali onde estavam nada poderiam fazer –, com o que viesse a acontecer. O homem jogou a nuca para trás – e inaugurou um fado magoado. Quem seguiu este concerto – quem não o fez olhou com melancolia, passados poucos segundos, através das janelas embaciadas – não pôde ter outra opinião: estava bem cantado, sim senhor. O condutor atirou uma repreensão – onde é que se já viu uma coisa destas? – mas o artista não se retraiu. Interrompeu a toada e os versos e ralhou de volta – não estava a maltratar ninguém, também ele tinha pagado bilhete, também ele tinha direito a estar ali.
Numa bancada do lado esquerdo, com três cadeiras, aí pelo meio das entranhas deste animal de seis rodas que rastejava, estava uma família – pai, mãe, um filho, outro filho. Estavam arrumados como podiam. O pai começou a instigar, em sussurro, um dos miúdos, o mais novo, a malhar no mais velho. “Vai, anda. Dá-lhe.” O miúdo jogou um soco – ou um beliscão; enfim, coisa ligeira – ao irmão e a mãe, que tomou ciência destas coisas, começou a brigar, em murmúrios, e a tentar civilizar estes homens futuros. O pai pousou as mãos sobre a barriga e olhou, com satisfação alarve, em redor.
Noutra bancada, agora do lado da epístola deste templo móvel – nesta cerimónia do fim do dia, perfumada, ao invés de incenso, com eflúvios corporais ferventes, frios, requentados –, via-se parte de outra família – uma mãe, um filho adolescente. A mãe pensava no jantar, na conta da luz, no trabalho – e sobretudo naquele filho de 15 anos, enorme quando ainda ontem dava três passos e caía, que ali estava, ombro com ombro, ao lado dela.
O filho já mal cabia na cadeira de estofo húmido e roto que lhe punha as pernas dormentes. Ia cabeceando, de sono, de aborrecimento, de pensamentos. Neste dia lembrava-se, por exemplo, do gato cor de ouro que encontrava sempre no passeio do caminho antes de chegar à escola, no centro da cidade. O passeio era ladeado de prédios altos – quem viveria naqueles blocos? – e pavimentado de remendos de cimento com manchas de humidade e pastilhas elásticas vetustas e fossilizadas. O gato, ele sabia-o, permanecia assim no meio desta rota diária em demanda de afagos e atenções, a que correspondia o jovem. Mas nesse dia, quando passou, o felino entoou um miado lancinante – um fado magoado, dir-se-ia. Ao lado do bicho, no recipiente onde os vizinhos lhe depositavam comida, muitas baratas se calcavam sobre o repasto.
Estava o adolescente nesta recordação quando um pé se lhe deslizou no piso escorregadio da camionete e foi parar na canela do vizinho da cadeira da frente. O homem, com uns trinta anos, virou-se desconfiado. O rapaz pediu desculpa. O homem esbofeteou-o. O rapaz, aturdido, ficou sem reacção. E mais agredido foi – uma segunda, uma terceira vez – quanto menos reacção teve. Alheados, ou fingidos, nenhum dos passageiros acudiu. Acudiu a mãe: encheu o punho e atirou-o como uma pedra às ventas do agressor. Este petrificou de espanto. Toda a camionete ficou suspensa. O homem afundou-se de vergonha na cadeira.
A camionete continuou a sua viagem.

[Crónica publicada no JM, 26-XI-2016, p. 2.]

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