sábado, 2 de abril de 2016

Crónica 45 [Verdade e Mentira]

Encontrou-me ele ontem e disse-me do alto da sua idade provecta, coroada de poucos cabelos. Eu preparei-me.
«Então, ‘tás bom, Fernando?
[...]
«Ok, certo. Então temos um dia das petas, ou das mentiras, não é? Mas isso não quer dizer que todos os outros sejam dias da verdade.
[…]
«Eu explico-te, Faustino...
[…]
«Ou isso. Mas já reparaste que nós pensamos sempre na mentira de uma forma demasiado moralista, como se fosse principalmente um pecado? Mas a mentira tem outras raízes, também fundas, e ‘tá em todo o lado – mais do que a verdade. A mentira, a falsidade, a imprecisão, a ilusão… – são elas a norma. É uma questão de acção – ou, enfim, de falta de acção ou de método. E depois é uma questão, vá lá, de amor – primeiro pelo erro, e depois pela exactidão, pelo facto, pelo empírico, pelo que se pode verificar e comprovar. Percebes, Fernão?
[…]
«Não, pá. Amor pelo erro, sim. Mas não é um amor incondicional ou, vá lá, romântico. É um amor que abandona a coisa amada – o erro – quando ela muda – ou morre –, ou quando nós mudamos – ou morremos. É assim, Firmino.
[...]
«Não tem nada a ver com filosofias, com essas coisas que dizes – empirismos, racionalismos, positivismos, enfim… Ou melhor, até pode ter. Tem a ver, parece-me, com a forma como nós nos vemos no mundo e como nos vemos com os outros. Ninguém aprecia, propriamente, a verdade como uma coisa bela em si. Bela. Não sei se compreendes, Fabiano...
[…]
«Estética? Eu percebo lá disso ou do que dizem os filósofos… Pode ser, como digo, simplesmente uma questão de método, de amor, de beleza – e depois de esforço e de desprezo pelo poder. Imagina uma conversa como a que eu ouvi há dias. Dois amigos falavam e falavam. Pior – falavam de política. Pois é, quando se trata de política e futebol... Bem, a certa altura, discordaram quanto a uma coisa pequena – um facto. Não uma interpretação, uma opinião, uma análise – mas um facto. Tinha a ver, se bem me lembro, com o ano em que um determinado partido chegou ao poder, etc. Usavam os dois daqueles telemóveis todos artilhados, que acho que são bons p’ra procurar coisas e tal. Mas nenhum deles se preocupou em procurar. Que fizeram eles então? Deitaram-se a adivinhar, a especular, a discordar. Um amigo disse que pensava que era de uma forma – e logo concluiu que de certeza era assim; o outro amigo disse que se calhar era o inverso, p’ra não dar o braço a torcer – e logo arrematou que era certamente assado. E assim andaram, de palavras em palavras, uns bons minutos, até se desentenderem e mudarem de conversa. “Ficas na tua e eu fico na minha” – disse a certa altura um deles. O outro concordou. Entendes, Fabrício?
[…]
«Não, rapaz. Não arredaram o pé do poço em que se meteram porque isso dava muito trabalho. E, quando discordaram, o que interessou a cada um deles foi teimar – teimar em vencer. Vencer uma discussão. Se a discussão era estéril, ou se nada tinha a ver com a verdade, o que é que isso lhes interessava? Com certeza que já sabes a resposta.
[...]
«Bem, mas quanto à verdade, é isto – enquanto sociedade, nós falamos de cor e fazemos de conta. Dá-nos conforto, poder – e dá pouca maçada.
[…]
«Humor? O que é que o humor tem a ver com isto? Isto não tem piada nenhuma. Acho que andas a falar demasiado com aquele teu primo, o Juvenal. Diz-lhe p’ra deixar de beber senão ele não chega à minha idade. Bem, vou andado, Dinarte. Cumprimentos à família.»

[Crónica publicada no JM, 02-IV-2016, p. 2.]

Sem comentários:

Enviar um comentário