domingo, 31 de janeiro de 2016

Crónica 40

Telefonaram-me do cemitério, Pai, nessa sexta-feira, dia 08-I-2016. Eu tinha pedido – queria ser informado de quando o iriam exumar. A sua campa foi a n.º 1 do cemitério de S. Gonçalo, no tabuleiro superior, perto do cipreste mais rarefeito e magro que lá existe. [Talvez ali a terra não seja tão fértil; talvez o cipreste tenha sido plantado depois dos outros ciprestes.]
Bem, por um telefonema deram-me a notícia – deixei lá o meu número de telemóvel por duas vezes, pelo menos – que a terra iria ser revolvida. Perguntaram-me se podia estar no cemitério nesse mesmo dia. Mas era dia de trabalho, Pai.
Fui no dia seguinte. Antes, acabei a sexta-feira – e iniciei o sábado – num convívio familiar, já no rescaldo da Festa. Cheguei a casa depois da meia-noite – cheguei a casa, também, algumas bebidas depois. Recebi no início dessa madrugada, antes de me deitar, um telefonema de um número privado. Atendi mas ninguém respondeu.
No sábado de manhã fui ver os seus ossos, Pai. Pensei que iria observar os coveiros desenterrarem os seus vestígios. Mas a terra já havia sido removida. Um quadrado perfeito, de paredes bem aprumadas, estava cravado no solo, e, de entre os dois cadáveres cobertos com o respectivo forro do caixão, o Pai era um deles – no lugar n.º 1.
Fui com a Bruna, que quis ir comigo. Correu tudo bem, Pai. Esperámos pelo coveiro – um homem magro, tisnado, que só deveria aguentar o ofício com uns vinhos secos ao fim do dia – ou até durante. O Pai sabe como é. A gente sabe como é.
Ele entrou no buraco e levantou o véu. Tudo o que de si, Pai, era músculo, nervo, órgãos, pele – tudo o que não era rígido – tinha sido consumido pela humidade da terra. A sua roupa estava intacta, com excepção da camisa, uma boa camisa, que estava em farrapos. Lembro-me da sua gravata, intacta, em tons de roxo.
O coveiro começou a recolher os ossos, limpos, pardos, bem delineados. As meias estavam também completas – e dentro delas os ossos dos seus pés, bem divisados. A sua roupa foi uma peneira perfeita. [Com excepção da camisa em farrapos – uma boa camisa; como eu a vi, parecia que ainda não tinha saído da agulha da bordadeira ou do tear.]
O coveiro, acocorado, suspirava e bufava. Pareceu-me que o osso nasal havia se precipitado para dentro. Não tenho a certeza. O crânio tinha, aqui e acolá, um tom enegrecido. Não quis pedir ao coveiro para ver melhor – o osso nasal e as cores. Ele já tinha feito um molho com o véu - o forro - do caixão. Não vi sinais de madeira. Perguntei ao coveiro, antes do terminado o processo, sobre qual seria o destino dos ossos. Seriam, pois, enterrados na mesma terra que os havia limpado – que a si, Pai, havia consumido parcialmente. O coveiro levou a sua roupa para um vazadouro próximo, e ouvi-o tossir muito. Fumei um ou dois cigarros enquanto lá estive. Viemos, depois, embora.
Escrevo isto, Pai, porque um dia hei-de me esquecer dos pormenores – de todos os pormenores – de tudo. O Pai faleceu a 29-V-2008. A terra onde o seu corpo caiu foi escancarada mais de sete anos depois – a 08-I-2016. Eu estive lá, Pai, no dia seguinte, a 09-I-2016.

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