domingo, 1 de maio de 2016

Crónica 47 [A Crise]

O homem aguardava sentado, com as costas aprumadas, num sofá desconfortável, a ler uma peça de Shakespeare. Assim estava quando uma mulher veio chamá-lo. Ergueu-se com prontidão, guardou o livro na pasta e seguiu a mulher até um gabinete. Seria entrevistado para um emprego. A tudo o que lhe foi questionado – que não foi muito, diga-se – respondeu com cordialidade, assertividade, objectividade. No final, o entrevistador ficou uns momentos em silêncio a olhar para o CV e disse: “O seu currículo é variado. O senhor é experiente. Vê-se que é trabalhador. Só tenho pena... A sua idade... Percebe?”
A entrevista acabou aí. Levantou-se, apertou a mão do seu interlocutor com firmeza e saiu do gabinete e do edifício. Na rua, a raiva e alguns laivos de desespero tomaram o lugar da esperança. Porquê ser convocado para uma entrevista quando no currículo figurava a sua idade – e quando a idade seria, enfim, a razão para não lhe ser concedido o emprego?
Tinha entrado há pouco no meio século de idade. Até aos 40 anos esteve numa situação profissional estável e bem-sucedida no sector das vendas. Mas foi despedido.
A partir daí fez, como se costuma dizer, de tudo um pouco.
Uma empresa contratou-o, a recibos verdes, para proceder, numa carrinha, a entregas de produtos agrícolas. Começava cedo e acabava tarde. Ainda assim, após terminar as entregas do dia, ou ainda antes de as realizar, o empregador começou a lhe atribuir tarefas relacionadas, não com a firma, mas com a família. Exigia-lhe que fizesse compras para a sua casa, que levasse a filha a determinado lugar, que fosse buscar uma encomenda para a mulher... Chegava-se a meados do mês seguinte e o ordenado ainda não tinha sido pago. A certa altura, o homem – o escravo, melhor diríamos –, pediu quase pelo amor de Deus para ser pago. Alegou que tinha dois filhos para alimentar – com um vencimento parco – e, ademais, que não concordava que lhe fossem atribuídas tarefas que nada tinham a ver com a empresa. Foi-lhe dito isto: “Se não quiser, há outros que querem...”
Uma estrutura hoteleira empregou-o como recepcionista – falava três línguas estrangeiras com fluência – em regime de part-time. Depois, pelo mesmo vencimento, foi-lhe exigido uma jornada de trabalho em full-time. Ele disse que não consentia. Foi-lhe dito: “Se não quiser, há outras pessoas que querem...”
Uma firma do ramo comercial ofereceu-lhe trabalho a manobrar uma empilhadora num armazém. Trabalhava quase 10 horas diárias com a contrapartida de um ordenado mínimo, ao abrigo de um contrato de seis meses. Um novo gerente chamou-o ao escritório e disse-lhe que gostava do trabalho realizado. Contudo, propôs-lhe que, cessando o contrato, continuasse a trabalhar – mas sem contrato, e sem quaisquer outros papéis. Respondeu que não lhe agradava essa situação. Foi-lhe dito: “Se não quiser, há outros...” E acrescentou o gerente que, em virtude da tarefa, preferia afinal um trabalhador com experiência, sim, mas... mais novo.
Sei que estamos em crise. Todavia, como sempre aconteceu desde que o homem é homem, uma crise aproveita sempre a alguém. E, como se não bastasse, para nossa desgraça vivemos num tempo de falácias e convenções absurdas e perversas. A este tempo corresponde, pois, uma sociedade que, com frivolidade, idolatra a juventude, desprezando de forma violenta os seus cidadãos mais maduros e experientes. É uma injustiça social. É um crime colectivo.

[Crónica publicada no JM, 30-IV-2016, p. 2.]

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